Vai-Vai e a censura da Polícia

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O álbum Sobrevivendo no Inferno do grupo de rap Racionais MC’s é considerado uma obra-prima, na época foi chamado de revolucionário. Ele aborda a vida de jovens negros na periferia, desigualdade social, encarceramento em massa, racismo e repressão policial. Sobrevivendo no inferno é também o nome de uma ala que a escola de samba Vai-Vai desfilou no sábado, no sambódromo do Anhembi, em São Paulo. Na leitura da escola, nada melhor para representar o inferno cantado na música do que o batalhão do choque da polícia militar de São Paulo por meio de diabos com chifres e asas. Já deu para imaginar a confusão, né? Quem é que gostaria de se ver dessa forma?

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Os policiais não gostaram. O Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo emitiu um manifesto de repúdio ao desfile da Vai-Vai, segundo o qual a escola teria tratado “com escárnio a figura de agentes da lei”. Disseram mais: “Com direito a chifres e outros itens que remetiam à figura de um demônio, as alegorias utilizadas na ala ‘Sobrevivendo no Inferno’, demonizaram a Polícia —algo que causa extrema indignação”.

Mas vou chegar na parte que nos interessa. “Ao adotar tal enredo, a escola de samba, em nome do que chama de ‘arte’ e de liberdade de expressão, afronta as forças de segurança pública, desrespeita e trata, de forma vil e covarde, profissionais abnegados que se dedicam, dia e noite, à proteção da sociedade e ao combate ao crime, muitas vezes, sob condições precárias e adversas, ao custo de suas próprias vidas e famílias”.

O comunicado segue dizendo que o Sindicato espera que a escola reconheça o que eles consideram um erro e que se retrate publicamente. Também não faltaram manifestações de repúdio de políticos, influenciadores e jornalistas de direita. É também sobre isso que eu gostaria de falar. São as mesmas pessoas que levantam a bandeira de liberdade de expressão, que se colocam contra regulamentação do uso das redes sociais, que defendem que piada não pode ser censurada.

Nessa eu tenho que concordar, piada não pode ser censurada, já falamos sobre isso. Piada não pode ser censurada assim como peças de teatro, performance em museus, quadros ou músicas. E, pasme, não pensei que esse dia chegaria, mas temos que falar: enredos de escola de samba não podem ser censurados, a não ser que façam apologia a crimes. Mas não foi o que a Vai-Vai fez, apesar de ter deixado muita gente ofendida. Como eu sempre digo e repito, se organizar direito, todo mundo fica ofendido e não pode mais nada. Um dia você se ofende por uma piada e quer que o humorista seja cancelado, no outro, a sua peça de teatro ofende a religião de alguém e vai ter que enfrentar gritos de censura. Pense nisso.

A atitude do sindicato e de todos que se revoltaram com a ala da Vai-Vai, que mostra a face violenta da polícia, revela como o autoritarismo da as caras quando a gente nem imagina. E, olha, isso nem é exclusivo da direita. Justiça seja feita, nunca fui processada por ninguém de direita ou de extrema-direita. O único processo que encarei partiu de um blog petista. Só rindo.

Mas o autoritarismo no episódio da Vai-Vai revela mais do que uma atitude antidemocrática. Mostra a falta de entendimento sobre liberdade de expressão, falta entendimento sobre o papel da arte na educação e conscientização, como expressão de resistência, como denúncia, como subversão e crítica.

Escolas de samba são expressões de arte, que oferecem mais do que entretenimento, como temos visto. A Vai-Vai mentiu sobre a violência policial?
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Não é novidade que o Carnaval leva para avenida temas políticos. Para você ter uma ideia, em 1986, só um ano depois do fim da ditadura, a Império Serrano desfilou com o samba “Eu Quero”, que exaltava a democracia. Tinha um trecho assim: “Cessou a tempestade É tempo de bonança Dona Liberdade Chegou junto com a esperança.” E fizeram isso na raça porque o serviço de Censura de Diversões Públicas funcionou até 1988, e os carnavalescos tinham medo de serem censurados, claro.

Em 1989, a justiça proibiu um carro alegórico da Beija-Flor que retratava o Cristo Redentor como mendigo no enredo “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”. A Arquidiocese do Rio de Janeiro conseguiu uma liminar proibindo o carro. Mas não contavam com a astúcia de Joãozinho Trinta, que cobriu o Cristo com um tecido preto e estampou a frase: “mesmo proibido, olhai por nós”.

Em 2018, a Mangueira veio com uma crítica pesada ao então prefeito Marcelo Crivella, que até hoje não sei como se elegeu prefeito de uma cidade que é tudo o que ele despreza: samba, carnaval, praia, futebol. Em 2020, teve a São Clemente que falava de fake News, trambique e mamatas, numa clara referência ao ex-presidente Jair Bolsonaro e ao seu entorno.

Esses exemplos são só alguns desde a redemocratização. A Vai Vai desagradou policiais porque retrata uma realidade do país, a violência da qual policiais são responsáveis. Há muito o que se discutir sobre as condições precárias de trabalho, a pressão, os baixos salários, desvalorização, problemas de saúde mental, violência institucional. Não há dúvidas de que a profissão de policial no Brasil enfrente uma série de desafios complexos que requerem medidas abrangentes e coordenadas para melhorar as condições de trabalho dos policiais, fortalecer a aplicação da lei e, principalmente, reconstruir a confiança entre a polícia e a sociedade.

Mas esse não é o papel da arte. Essa é uma tarefa para os políticos, inclusive aqueles que acham que a polícia deveria ser mais violenta, os mesmos que se ofendem com uma ala numa escola de samba e gostam de brincar de censor quando não gostam da forma como são retratados? É aquela coisa, Narciso não gostou de se ver no espelho.

A Vai-Vai levou para a avenida o enredo “Capítulo 4. Versículo 3 – Da Rua e do Povo, o Hip Hop: Um Manifesto Paulistano”, a escola fez um manifesto contra o preconceito, inspirado no álbum dos Racionais, Sobrevivendo ao Inferno. A letra do samba fala sobre os locais ocupados por pessoas negras e a sua importância na criação e manutenção do rap e no hip-hop. Mano Brown, dos Racionais, participou do desfile, além dos rappers Dexter e Rappin Hood.

A letra da música que inspirou o samba fala o seguinte: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial / A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras / Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros / A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo / Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente…”

É mentira? Todas as estatísticas mostram como a violência policial ainda é um problema no Brasil. A Vai-Vai se defendeu dizendo que sua ala mostrava a polícia paulista nos anos 1990, na época em que os Racionais lançaram Sobrevivendo no Inferno. É verdade que a polícia de São Paulo, hoje, não figura entre as mais violentas no país, resultado de investimento e treinamento das tropas.

O Anuário Brasileiro da Segurança Pública, edição de 2023, mostra que São Paulo e Santa Catarina diminuíram a letalidade Policial. Não é coincidência que sejam estados que investiram em câmeras corporais para os agentes, justamente uma das críticas de políticos e eleitores de direita. São Paulo ficou atrás de estados como Paraná, Pará, Goiás. Bahia e Rio de Janeiro lideram com distancia o número de mortes causadas pela polícia, concentrando 43% dos casos. Ao todo a polícia brasileira matou 18 pessoas por dia.

Divido com vocês alguns dados que mostram que a arte é um meio de denúncia e crítica. O Anuário Brasileiro da Segurança Pública aponta que a noventa e nove porcento das vítimas da polícia são do sexo masculino, oitenta e três porcento são negras, quarenta e cinco porcento são jovens entre 18 a 24 anos e noventa e nove porcento foram mortas por arma de fogo.

Tem alguma mentira no enredo e na ala da Vai-Vai?

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