Lula não entendeu quem foi Hitler

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Existe um motivo pelo qual nunca nenhum político responsável, nenhum diplomata, jamais compara qualquer ato que esteja ocorrendo com o Holocausto. É porque nada se compara com o Holocausto. Nem genocídios unanimamente considerados genocídios por todos os lados, como o do Camboja durante o governo Pol Pot, nem estes são comparados com o Holocausto.

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O problema, aqui, não é apenas que Lula tenha perdido por completo o senso de proporção. O problema aqui é que alguém tem de ter a frieza de olhar para o discurso de Lula na política externa e dizer que não há qualquer coerência interna por nenhum critério objetivo. Nem a estratégia Sul-Sul explica como Lula vê o mundo. Na mesma entrevista coletiva na qual comparou a Guerra de Gaza com o Holocausto, saiu em defesa do governo russo a respeito da morte do líder de oposição Alexey Nalvany.

Lula, nisto, é que nem Bolsonaro. É incrível. Sempre defende Vladimir Putin. No caso de Bolsonaro a gente compreende, é por irmandade ideológica. No caso de Lula? Compreende-se alguma cautela em acusar um governo. Tudo bem. Mas frases como “para que essa pressa de acusar”? O presidente parecia tão indignado com a acusação contra a Rússia quando estava com as mortes em Gaza. A ditadura russa mata jornalistas, mata líderes de oposição, mata traidores. Ou, então, somos obrigados a acreditar que há uma imensa coincidência no fato de que as vozes mais altas contra Putin tendem a ter misteriosas mortes violentas.

Nós não sabemos quantas pessoas morreram durante a Guerra da Chechênia. A Anistia Internacional coloca em 30 mil civis. Pelo menos dez mil civis morreram diretamente ligados à intervenção russa na Síria. O número de mortes na Guerra da Ucrânia já passa dos 100 mil com facilidade. Dependendo de quem conta, passa dos 300 mil. Putin é o ditador mais sangrento do mundo, neste momento. Para ele, Lula guarda toda cautela. Israel é comparada com a Alemanha Nazista.

Números da ONU. Já morreram 150 mil pessoas na Guerra do Iêmen. Ela está ocrrendo neste momento. Há estimativas de mais de 200 mil mortos. Ao fim de 2023, o Sudão acumulava quase seis milhões de pessoas deslocadas de suas casas por conta da guerra civil. Estão ocorrendo neste momento, em todo o mundo, mais de 30 conflitos, a maioria deles em países africanos. Em Myanmar morreram quase 15 mil pessoas no ano passado, mais vinte mil no ano anterior.

Estes números são todos estimados. ONGs, Cruz Vermelha, Anistia Internacional, imprensa. É difícil contabilizar. De acordo com o Hamas, o total de mortos hoje, 19 de fevereiro, chegou a 29 mil pessoas. É mais de 1,5% da população de Gaza. É muito, tá? Muita gente. Israel tem um governo de extrema direita exatamente igual a Trump, a Orbán, a Putin. Ao nosso Bolsonaro. Por uma década as eleições terminaram com a população rachada em dois dando para a coligação de Benjamin Netanyahu aquela fração mínima a mais para formar governo. É o primeiro governo israelense que abandonou por completo negociações de paz desde que Yitzhak Rabin apertou a mão de Yasser Arafat, em 1993. É também um governo profundamente impopular, desde o momento em que não foi capaz de evitar o pogrom de 7 de outubro do ano passado.

Governos populistas de extrema direita são um problema, são um problema grande. São uma ameaça à própria população e aos vizinhos. Nós tivemos o nosso. Imagina Bolsonaro presidente e Nicolás Maduro ameaçando invadir a Guiana? Vocês imaginam? A gente viu o que ele fez durante a pandemia.
Tem algumas conversas que a gente precisa ter. Mas a primeira de todas é entender o que o Holocausto foi. Porque o Holocausto foi grande demais para usarmos seu exemplo como quem compara dois times de futebol.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Adolf Hitler baseou o movimento que o levou ao poder, na Alemanha, na ideia de que houve uma facada pelas costas. Segundo ele, que era do baixo oficialato do Exército alemão durante a Primeira Guerra, o país estava vencendo o conflito, em 1918. Mas um grupo de pessoas muito poderosas convenceu o governo do contrário e, assim, a Alemanha se entregou. Sim, a história é absurda. Mas numa Alemanha aos frangalhos da virada dos anos vinte para os trinta, colou com gente o suficiente. Este grupo de pessoas misteriosas era formado por gente muito poderosa, muito distante, que toma decisões sobre os destinos de sociedades inteiras com o objetivo de fazer dinheiro. Judeus.

O antissemitismo já existia na Europa antes de Hitler. Sempre existiu contando essa história mesmo: o judeu é o estrangeiro em sua própria terra, é o que nunca tem em vista os interesses de seu país, é ganancioso, articula por fora. E, naquela época, muitos governos levavam como se fossem verdade científica ideias ligadas a eugenia. Isso é o contexto. Mas o Partido Nazista era algo especial, era diferente até naquele contexto. Hitler chegou ao poder em 1933 e a expressão “o problema judaico” se estabeleceu no vernáculo alemão. Em 1934, ataques frequentes a sinagogas, lojas cujos donos eram judeus, ações de boicote, já eram comuns. Mais de uma fogueira de livros escritos por judeus foi armada.

O ponto fundamental aqui é o seguinte. O Nazismo é um tipo muito particular de fascismo. Ele tem o nacionalismo, aquele bando de gente uniformizada, o líder carismático, o populismo, a defesa de um passado heróico da nação, a ação violenta, tem tudo isso. A ideia de uma sociedade pesadamente hierarquizada, Estado centralizador. Um fascismo como os outros fascismos. Mas o nazismo se organiza pelo antissemitismo. Nenhum outro era assim. O nazismo existe porque há um inimigo interno por derrotar na Alemanha e este inimigo são os judeus. Todos os judeus. E, se possível, todos os judeus da Europa. Eles são os inimigos alemães antes de qualquer outro grupo. Antes de quaisquer outras nações. Essa convicção orientou as decisões militares alemãs.

No início de 1935, saiu a primeira orientação do governo contra judeus. Era uma recomendação aos cartórios para que não emitissem licença para casamentos entre judeus e não-judeus. Aí, em setembro daquele ano, houve a grande manifestação de Nurenberg. Milhares de afiliados do partido, suásticas por toda parte, Leni Riefenstahl filmando O Triunfo da Vontade. É o filme que inventou a propaganda política moderna. Hitler anunciou as Leis de Nuremberg ali. Casamentos terminantemente proibidos, mas não só. Relações sexuais entre qualquer não-judeu com judeu foram proibidas também. Mulheres alemãs com menos de 45 foram proibidas de trabalhar em casas de famílias judias. Sabe como é. O que poderia acontecer com uma moça jovem numa casa de judeus. Judeus foram proibidos de usas símbolos que representassem a Alemanha, pois afinal não eram cidadãos plenos.

Veja, estamos em 1935. Cinco anos antes da guerra. No ano seguinte, médicos judeus foram proibidos de trabalhar nos hospitais e clínicas públicos. O direito de votar foi cassado para todos os judeus.

A gente não chegou ao Holocausto ainda. Mas Lula não falou em Holocausto, não é? Falou, essas são as palavras dele, “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.” Bem, esta é a história de como Hitler começou a construir o Holocausto e já é radicalmente diferente da relação entre Israel e Palestina. Israel se ergueu com uma ideologia, o Sionismo, que pretende criar uma terra para os judeus viverem e terem autonomia para se defender. Hitler criou uma ideologia baseada no extermínio de um grupo de pessoas. Israel existe como existe porque o Holocausto aconteceu.

As estrelas amarelas com identificação obrigatória na roupa vieram só em 1941. A quantidade de leis, vocês não têm ideia. Judeus foram proibidos de ter acesso a telefones, de ter animais de estimação, de ter rádios. Judeus cegos foram proibidos de andar com sinais que os identificassem como cegos. E a gente não chegou no Holocausto ainda.

Durante nove anos, entre 1933 e 42, lentamente o cerco foi fechando. Os guetos, bairros fechados nos quais todos judeus eram obrigados a viver em condições subhumanas, dos quais nunca podiam sair, foram estabelecidos entre 1941 e 42. Hitler já vinha falando em eliminação total dos judeus da face da Europa desde um discurso em 1939. Mas era no discurso, não havia nada organizado. Até o ano de 42, um milhão de pessoas morreram por serem judias. Mas é porque podia matar. Não estava organizado ainda. Não era eficiente. Não se entende o Holocausto sem compreender que o Holocausto foi eficiente.

É importante a gente botar isso aqui em números. Em 1933, ano no qual Hitler foi eleito, 9,5 milhões de judeus viviam na Europa. Correspondiam a mais da metade dos judeus do mundo, o resto espalhado principalmente pelo Oriente Médio e Norte da África, mas em crescente imigração para as Américas. Uma população total de pouco mais de 15 milhões de pessoas. Até 1941, por conta do cerco nazista se fechando, já haviam morrido um milhão. Em 1942 a Solução Final foi implementada. Os guetos onde todo mundo estava essencialmente preso foram esvaziados e as pessoas transferidas para os campos de extermínio. Precisaram inventar soluções tecnológicas para matar uma quantidade grande de pessoas ao mesmo tempo. As câmaras de gás foram isso. Uma máquina eficiente, documentada, projetada com o único propósito de exterminar gente em quantidade na menor quantidade de tempo possível. E não basta matar rápido. É preciso se livrar dos corpos rápido. Não é fácil matar milhões de pessoas em três anos. Ao todo, morreram seis milhões de judeus.

Vale assistir As 200 Crianças do doutor Korczak, do cineasta polonês Andrzej Wajda, sobre como era viver no gueto imediatamente antes da Solução Final. O Ovo da Serpente, do sueco Ingmar Bergman, é sobre esse lento crescimento do nazismo. Como a coisa foi engolfando todo mundo. Tem um filme recente, está na HBO Max, se chama Conspiração. Com Kenneth Branagh, Stanley Tucci, Colin Firth. Sobre como se organizou a Solução Final. Nenhum destes é filme sobre os campos de concentração e extermínio. É sobre como se chegou aos campos.

É possível argumentar que os nazistas só perderam a guerra porque investiram tanto esforço em um único propósito inútil para a vitória militar. A Solução Final. Eliminar todos os judeus da Europa. Olhs, só nesta década em que entramos, a de 2020, a população de judeus do mundo voltou ao seu número pré-Hitler. 80 anos depois. Só agora cruzou-se a marca dos 15 milhões no mundo. Isto é um genocídio. Isto foi o Holocausto.

Segundo números oficiais da Autoridade Palestina, a população palestina era de 1,7 milhões de pessoas em 1948. São, hoje, 14 milhões de palestinos. Isto não é um genocídio. Essas pessoas precisam do seu país.

Benjamin Netanyahu, o premiê de Israel, é um Jair Bolsonaro. É também o primeiro-ministro mais impopular da história de Israel. Por quê? Porque não foi capaz de cumprir com sua obrigação mais básica: proteger de uma chacina de grandes proporções a sociedade. Sim, Israel é um país que nasceu de um trauma profundo. É um país obcecado com sua segurança. E cercado por muitos vizinhos que incentivam ou diretamente defendem seu extermínio. Netanyahu boicotou o que pôde, durante dez anos, um acordo de paz. Mas, agora, um acordo de paz será preciso. A sobrevivência de Israel depende do nascimento do país Palestina. E este é um direito de todos os palestinos. Direito à sua própria terra.

Guerras são brutais. Guerras matam. Guerras são tragédias. Durante guerras sempre ocorrem crimes de guerra. Sempre. Em 2003, a ONU declarou Grozny, capital da Chechênia, a cidade mais destruída do mundo. Foi praticamente posta abaixo pelo governo Putin. Século 21. Aleppo, a cidade mais populosa da Síria, foi posta no chão. Pelos russos, tá? Ao final de 2016, não havia mais nenhum hospital funcionando. Aliás, a tática dos sírios e dos russos foi a de atacar hospitais primeiro. Bombas de gás letal foram jogadas sobre a população. Morreram entre 30 e 50 mil pessoas só lá. Em Aleppo. Sempre depende de quem faz a conta. Essas contas em guerra nunca são precisas.

Lula está errado. O que está acontecendo na Faixa de Gaza já aconteceu antes, não é muito raro. Ele devia saber disso. Nós humanos fazemos essas coisas. O que só aconteceu uma vez foi o Holocausto. Daquele jeito, daquele jeito precisou de um governo muito específico que era simultaneamente muito tecnicamente capaz, de um nível de ódio racista abissal e de uma burrice estratégica sem tamanho.

O que, na boa, a gente precisa se perguntar não é quem se parece com Hitler. Ninguém se parece com Hitler. O que a gente precisa é parar com indignação seletiva a respeito de que guerras nos doem, que mortes choramos e quais ignoramos.

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