Tarcísio é Bolsonaro

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Lá de cima do trio elétrico, ficou claro que Tarcísio de Freitas, o carioca que é governador de São Paulo, é o escolhido de Jair Bolsonaro para ser seu herdeiro político — pelo menos até aqui.

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Tinha outros governadores no palco, como Ronaldo Caiado, de Goiás, e Romeu Zema, de Minas. Representante raiz do agro, Caiado não foi sequer mencionado no discurso de Bolsonaro e quase foi esquecido por Michelle em sua fala. Zema foi citado por ambos, mas de forma bastante discreta. Tarcísio não foi só elogiado pelos dois, como teve chance de discursar. Em parte, porque era sua casa eleitoral. Mas também porque é a maior aposta do bolsonarismo hoje para faturar o espólio de votos do ex-presidente inelegível.

Pra quem acha que Michelle teria essa prerrogativa, basta ver a cara de enfado do marido enquanto ela fazia seu louvor político-religioso. Bolsonaro já disse com todas as letras que não a quer como candidata à presidência.

Tarcísio, homem, branco, militar, desponta como favorito e fez questão de enaltecer o padrinho no microfone. Seu discurso de quase sete minutos foi uma ode ao que ele classifica como legado de Bolsonaro. Ele enfileirou algumas das alardeadas conquistas da gestão do ex-chefe, a quem chama de amigo. Falou de rodovias, área que ele comandava como ministro da Infraestrutura, e disse que não era ninguém quando Bolsonaro o nomeou. Lembrou algumas outras obras que não pareciam empolgar tanto a plateia. E Bolsonaro soprou, então, no ouvido de Tarcísio: o PIX. Aí, o público aplaudiu mais.
Tarcísio contou que estava na sala quando Paulo Guedes e Bolsonaro estavam reunidos e o ex-presidente disse: se fecharem tudo, as pessoas não vão ter como viver. E elogiou o auxílio emergencial.

E também massageou um tanto a pauta de costumes. Ao se dirigir ao amigo Bolsonaro, disse: “Você não é mais um CPF ou uma pessoa. Você representa um movimento. Representa todos eles que descobriram que vale a pena brigar pela família, pela pátria, pela liberdade. Você nos ensinou valores e nos mostrou o caminho”.

Ainda falou de como o ex-presidente dobrou os joelhos para orar pelas pessoas e sempre respeito Israel.

Tarcísio de Freitas completa integralmente a cartela do bingo bolsonarista. Ex-militar, formado pela Academia Militar de Agulhas Negras, linha duríssima e sanguinária na Segurança Pública, liberal do tipo Paulo Guedes, católico que flerta com os evangélicos, cúmplice do negacionismo na pandemia da Covid e, na função de governador de São Paulo, próximo de uma parcela muito expressiva do agronegócio. Tá tudo nele.

Então, por que se insiste em dizer que Tarcísio de Freitas é “moderado”? Será que ele é mesmo? O que poderia embasar essa afirmação?

No dia 15, perguntado sobre a operação da Polícia Federal que investiga a tentativa de golpe de Bolsonaro, falou que o pessoal “está criando muita coisa”, que não via nada que levasse a uma “responsabilização” do ex e que sempre vai estar junto dele.

Mas, dois dias antes da BolsoFolia que tomou a Paulista domingo, Tarcísio participou da posse do novo presidente do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e exaltou a Justiça Eleitoral. Teria inclusive servido de fiador no STF de que Bolsonaro não faria ataques no palanque contra ministros da Corte.

E nas eleições de 2022, disse confiar nas urnas eletrônicas, no sistema eleitoral.

Então, vá lá, talvez Tarcísio não seja um golpista convicto — e aqui cabe, sim, questionar se um político dessa estatura, governador do Estado mais rico da nação e ex-ministro da República, não se torna imediatamente golpista ao se manter aliado a um golpista. Mas, em nome da argumentação, vamos supor que ele realmente não seja um golpista, não deseje uma ruptura do Estado Democrático de Direito. É esse o parâmetro para torná-lo imediatamente um “moderado”? Ou, como ele tenta se vender, alguém mais à centro-direita?

É disso que quero falar aqui hoje com vocês.

Eu sou a Flávia Tavares, editora executiva de conteúdo premium do Meio. No domingo, eu estava lá na Paulista e a gente fez uma edição extraordinária do Mesa do Meio em que eu contei tudo que vi. Essa parte aqui, de vídeo, e a nossa newsletter diária, com uma curadoria das principais notícias, são a parte gratuita do jornalismo que a gente produz. A newsletter passou de 200 mil assinantes que não pagam nadinha pra receber essa curadoria. Estamos muito felizes! Mas sabe quem financia esse jornalismo grátis? As assinaturas premium, que dão direito à Edição de Sábado, ao Meio Político e à editoria de Economia na newsletter diária. Assina! São só 15 reais por mês.

Tarcísio falou no domingo que estava na sala com Guedes e Bolsonaro quando eles discutiam a política do “não fique em casa” no auge da pandemia. Sabe onde mais ele estava? Sentado ao lado de Bolsonaro numa live em que o ex-presidente riu do aumento de suicídios na pandemia. Era dia 4 de março de 2021, faz três anos só, embora pareça uma vida. E naquele dia morreram 1.786 pessoas. Mas, na Paulista, Tarcísio glorificou a “sensibilidade” de Bolsonaro, que chorou tanto por ver as geladeiras vazias de quem visitava nesse período.

É um tipo bastante peculiar de sensibilidade esse de Bolsonaro. O próprio Tarcísio já disse que faria diferente na gestão da pandemia. Mas não diferente do que o governo de que era parte fez. Diferente do que fez seu antecessor, João Doria. “O governo [federal] olhou muito as pessoas, em São Paulo se delegou muito a gestão para a equipe médica, sem olhar todos os contornos e repercussões da decisão.” Imagina só, numa pandemia, olhar muito a gestão da equipe médica, gente! Tentar produzir vacina o quanto antes e tal… Que absurdo! E o governo federal olhou para as 700 mil pessoas mortas?

Eu quis começar já com o pé no peito da pandemia para apontar como é difícil falar em moderação quando se trata de Tarcísio porque, como é natural e lamentável, a gente está aos poucos se esquecendo do que foi essa dor.

Mas convém a gente fazer uma análise mais fria, puramente política, do que Tarcísio representa.

Bolsonaro e Lula terão imensa dificuldade de fazer sucessores que, ao seu lado, não pareçam anódinos, sem graça, “postes”, como gostam de falar jocosamente. São dois líderes extremamente carismáticos, cada um a seu modo. Despertam paixões, têm oratórias marcantes e, não por acaso, remetem a uma ideia de “gente como a gente” que é difícil emular se você não tem, de fato, uma origem popular.

Essa popularidade é o único ponto de equivalência que dá para traçar entre os dois, claro. A consequência disso é que é muito raro que se forme novas lideranças políticas em torno de figuras tão fortes. Lula vem tentando pelo menos desde 2010. E, pelo que se viu em 2018 e pela escolha para o ministério da Fazenda, cargo central para sua gestão, parece que vai seguir apostando em Fernando Haddad, que tem um perfil diametralmente oposto ao seu no que diz respeito a carisma e oratória. Haddad é professor universitário, tem uma fala e uma postura bem mais de elite intelectual do que de homem do povo. Em termos de conteúdo, especialmente na economia, Haddad projeta a ideia de ser um Lula mais moderado. Ainda que devote ao chefe uma lealdade absoluta.

Isso porque Lula sabe que, com a guinada ao reacionarismo que o Brasil assumiu, no plano nacional dificilmente terá forças de construir uma sucessão à esquerda. Vai precisar olhar para o centro. Claro que ele não abre mão de fomentar outros líderes mais à sua imagem e semelhança, como Guilherme Boulos, por exemplo. Mas mesmo ele já deu uma modulada no discurso para tentar se viabilizar prefeito de São Paulo. Faz parte.

No caso de Bolsonaro, isso tudo fica mais embaçado, porque o ex-presidente é um extremista, pelo menos no discurso — na prática, cede ao Centrão quando precisa de abrigo. Bolsonaro está, ideologicamente, a milhas e milhas do centro. E boa parte de sua base eleitoral, idem. Então, um eventual “moderado” bolsonarista é, ainda, um bolsonarista, alguém com uma pauta bem lá na ponta da direita, não na centro direita.

E Tarcísio prova isso diuturnamente no governo de São Paulo.

Quero pegar apenas três áreas, tidas pelos eleitores como cruciais numa gestão executiva: Saúde, Educação e Segurança.

Tarcísio importou a cumplicidade negacionista da pandemia para o estado. Colocou como secretário executivo na saúde o médico Sergio Okane, que foi braço direito de Marcelo Queiroga e um dos que incentivavam remédios sem eficácia contra a covid.

Aliás, um parêntese, essa foi uma estratégia de Tarcísio para simular moderação: nomear poucos secretários puramente bolsonaristas e lotear o segundo escalão para o grupo. Até o irmão de Michelle Bolsonaro entrou na dança, virando assessor especial do governador.

Além disso, Tarcísio anistiou multas por desobediência às regras sanitárias, inclusive as impostas a Bolsonaro e sua turma nas motociatas.

Mantendo a onda negacionista, Tarcísio vetou projeto de vacinação contra HPV nas escolas estaduais. Antes, tinha vetado um projeto de lei que concedia validade indeterminada a laudos médicos que atestam o Transtorno do Espectro Autista (TEA). E justificou que o transtorno em crianças poderia “deixar de existir”. Só recuou quando levou pito do apresentador Marcos Mion, mas entendam o nível. O governo Tarcísio ainda é acusado pela Defensoria Pública do Estado de dificultar propositadamente o acesso ao aborto em casos legais nos hospitais. É bolsonarismo em estado puro.

Na Educação, Tarcísio botou como secretário Renato Feder, vindo do Paraná. Olha, aqui teve de tudo, mas, resumindo muito, foram duas as principais polêmicas. Uma foi o fato de que Feder quis fazer uma digitalização do material didático das escolas estaduais na marra, sem levar em conta o imenso abismo entre as condições de se digitalizar entre uma escola e outra, e impondo aos professores uma série de slides repletos de erros, como um que dizia que a capital paulista tem praia e outro que Dom Pedro II assinou a Lei Áurea.

O outro, ainda mais sintomático, foi um desmonte quase absoluto da política anterior de escolas de ensino médio de período integral e a prioridade para escolas técnicas. Vocês sabem quem era um defensor contundente dessa ideia na educação, não é? Sim, o ex-ministro bolsonarista Milton Ribeiro. Ou seja, é uma visão essencialmente bolsonarista na educação também.

Eu deixei a segurança pública por último. O secretário é Guilherme Derrite, ex-policial e bolsonarista militante. Sua visão de política de segurança está muito clara nas operações no litoral paulista, em que já se matou mais do que no Carandiru. É uma estratégia típica de esculacho, de retaliação, de morte. Basta ver que pelo menos 60 pessoas já foram mortas nas operações da PM no litoral e há denúncias de abusos e tortura. E quem tentou resistir minimamente a isso — e claro que há pouca resistência nas polícias — foi exonerado, simplesmente. Trinta e quatro coronéis de uma vez. Nas mudanças, botaram um ex-Rota na Corregedoria da PM.

Mais que isso, Tarcísio e seu secretário desidrataram a política de câmeras corporais que foi como se a tivessem encerrado. E, por falar em desidratar, cabe aqui uma subchave na segurança pública. Não bastasse ter nomeado uma secretária da Mulher que é discípula de Damares Alves, do mesmo partido do governador, Tarcísio tirou os recursos das delegacias da mulher do Estado, mesmo no ápice dos casos de feminicídio por aqui. E ainda desobedeceu uma regra federal de manter as delegacias abertas 24h.

Tarcísio projeta algum verniz de moderação porque é capaz de se reunir com Lula e rir de uma piada e porque não grita, não xinga, não comete crimes diante de câmeras de live. Mas, em três pilares básicos de políticas públicas, tirada a casquinha dos discursos estridentes e abertamente criminosos, Tarcísio é Bolsonaro. É só olhar bem nas outras que está tudo ali.

De acordo com pesquisas na Paulista, que certamente dariam mesmo esse resultado, mas também outras nacionais, os eleitores de Bolsonaro já veem em Tarcísio o favorito para sucedê-lo. Mas, para se eleger presidente, ele vai precisar de mais do que os 25% de bolsonaristas. É por isso que ele tenta parecer moderado, ou de centro direita, navegando numa suposta ambiguidade.

Então, qual o limite de bolsonarismo que o Brasil estará disposto a aceitar? Elogiar Justiça Eleitoral e servir de interlocutor com Alexandre de Moraes só quer dizer que talvez, muito talvez, ele não seja golpista, não que não seja de extrema direita.

Basta não ser golpista para a extrema direita ficar imediatamente higienizada? É uma discussão importante essa e, mesmo estando longe de 2026, vale começarmos a pensar nisso, já que ao que parece Tarcísio foi ungido sucessor do bolsonarismo. O que não dá é para fingir que Tarcísio é um “moderado”, por mais que ele queira convencer dessa ambiguidade. Não, ela não existe.

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