O Real mudou tudo

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Deixa eu contar uma história pra vocês.

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Meio da campanha eleitoral de 2022, segundo semestre, e Lula não falava sobre sua política econômica. Dizia algo na linha do já governei o Brasil por duas vezes, ninguém tem de me fazer esse tipo de pergunta. É ruim pra candidato não dizer o que planeja fazer, pedir carta branca para o eleitor. Mas, claro, do outro lado estava um golpista. Só que repórter tem de fazer pergunta. Aí me sentei com um economista muito envolvido na campanha, alguém que de fato se tornaria uma pessoa importante no pensamento da política econômica, e pergutei para ele. A gente estava se aproximando como repórter e fonte. “Mas qual é o caminho? Vai ser mais pra Palocci ou mais pra Mantega?” Porque são duas concepções muito diferentes, né? Aí ele me contou essa história.

“Uma das primeiras reuniões que tive com o Lula foi direto com vários economistas do PT.” Ele me contando, né? Ele chegando na campanha, conhecendo as pessoas. “Eles estavam tendo um embate, lá, uma conversa tensa. E, numa hora, o Lula interrompe todo mundo. Vocês me falaram que o Plano Cruzado ia dar certo, eu confiei, fiquei repetindo. Aí vocês falaram que o Plano Real ia dar errado, eu confiei, fiquei repetindo. Por que devo confiar em vocês?”

Não estou sugerindo, de forma alguma, que Lula não confie em seus economistas. Isso é uma briga interna deles, lá, um dia de cabeça quente. O ponto dessa história é só um. Os economistas do PT erraram feio na leitura que fizeram de política econômica nos anos 80 e 90 e o presidente Lula sabe disso.

A Nova República tem uma história. Tem uma afirmação que faço frequentemente aqui que é, possivelmente, a coisa mais importante de se registrar a respeito deste momento que vivemos no Brasil. Nenhum período da República fez mais pela sociedade brasileira do que este nosso. Do que o regime que começou no dia em que Tacredo de Almeida Neves foi eleito presidente em voto indireto pelo Congresso Nacional. E poucas políticas públicas fizeram tanto, para que os muitos governos da Nova República entregassem o que entregaram à sociedade, do que o Plano Real. Se você juntar Plano Real e Bolsa Família, só esses dois, possivelmente nada na história do Brasil republicano teve um impacto tão profundo na vida de tantas milhões pessoas. E um é indissociável do outro. Um pôde acontecer porque, dez anos antes, o outro havia acontecido.

São dois os momentos em que o número de miseráveis despencou. Caiu quase 20% entre 1993 e 95. Mais quase 20% entre 2003 e cinco. No total, a queda foi maior nos governos Fernando Henrique do que nos dois governos Lula, mas é importante lembrar que é isso aí. O problema já era menor. Tinha coisa ainda para resolver, mas era menos. Fome acabou no Brasil, até Bolsonaro.
Na semana passada, o Plano Real completou 30 anos. Foi anunciado sob condições muito adversas. Num período de seis meses, Itamar Franco teve três ministros da Fazenda. Ninguém jamais imaginava um cara temperamental como o Itamar presidente. Ele calhou de ser o vice de Fernando Collor, o primeiro sujeito eleito pelo voto direto desde 1960. Um candidato construído por propaganda de TV num tempo em que o Brasil estava desabituado a votar. Inflação era um problema gigante. Quem era criança nesse tempo, ou quem não era nascido, não tem ideia do que foi viver num país com hiperinflação. Quando todos os preços dobram de um mês pro outro. Em alguns períodos, mais do que isso. Você perde por completo a noção de quanto o dinheiro vale. É receber num dia o salário e ir imediatamente pro supermercado no dia seguinte. Porque senão você perde aquilo. A vida com dinheiro vira uma gincana. E quanto mais pobre você é, se não tem banco onde pode fazer investimentos para ter alguma correção monetária, dinheiro na mão é pânico. É gastar o mais rápido possível porque senão você perde aquilo que passou o mês lutando pra ganhar.

Só que ninguém conseguia resolver. Entre 1979 e 83, o governo João Figueiredo tentou três planos econômicos pra resolver a inflaçãoo. Não deu certo. O governo Sarney teve cinco planos. As pessoas lembram de coisas como o Plano Cruzado, mas não lembram de Plano Bresser, de Plano Verão. Lembram do Plano Collor, mas não lembram que o governo Collor apresentou quatro planos em dois anos para resolver a inflação. A gente vivia num país que não tinha moeda. Em que viver era profundamente inseguro. Não dá pra planejar o futuro. E Itamar Franco teve três ministros da Fazenda em seis meses. Não conseguia sequer manter alguém naquele diabo de cargo. Aí teve um escândalo, essas coisas são sempre assim, né? Ele precisou trocar o ministro Eliseu Resende às pressas.

Itamar ligou para o senador Roberto Freire, era líder do governo, “preciso de um novo nome”, e o Freire sugeriu Fernando Henrique Cardoso. Um sociólogo. Vejam, não é que Fernando Henrique não tivesse o perfil para o cargo. Ele era um político já bastante importante, tinha sido fundamental no desenho da Constituição, mas Fernando Henrique era um sociólogo. Economia não era a praia dele. E ele estava numa função que parecia talhada para seus talentos, como ministro das Relações Exteriores. FH era o chanceler brasileiro.
Foi uma decisão improvisada. A cara do Itamar, improvisar coisas assim. Só que Fernando Henrique era do PSDB e o PSDB tinha uma coisa muito especial naquela época. Tinha um time de economistas muito especiais. E eles tinham um plano.

Vamos conversar?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Arthur Lira está sob ameaça. E, olha, não é só por conta do governo, não, tá? Também o Centrão está de olho no poder que ele tem. A eleição para presidente da Câmara se aproxima, as negociações esquentam, e aos poucos o atual líder da casa está sendo fritado. O que pode acontecer? A gente contou essa história na edição deste sábado. Se você assinar, pode ler tudo agora. Assina. Seja um assinante premium.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Não tinha fórmula para resolver a inflação brasileira. Não tinha nos livros. Ninguém conseguiu fazer porque não estava claro. Inflação parece ser um problema genérico, né? Os preços ficam aumentando, a moeda fica desvalorizando. Só que esse é o sintoma. Por que a inflação acontece? O Brasil tinha um tipo bastante particular de inflação. Inflação inercial. E isso começou a ser causado pelos militares que inventaram um negócio chamado indexação. A gente já tinha inflação antes da ditadura, tá? Agradeçam a Juscelino Kubitschek. Mas aí, para simplificar a sua vida, a Ditadura começou a usar um gatilho para reajustar automaticamente as coisas. Você tem um contrato? Você põe lá um índice de reajuste pela inflação de tempos em tempos. Os salários começaram a ser reajustados automaticamente. Tudo. Aí alguém dirá: nada mais justo. Pode ser. Mas isso gera uma inércia. Os preços não param de subir nunca. Não só já existem as forças da economia contribuindo pros aumentos como se soma a isso uma pancada de preços que aumentam independentemente. E quando tudo começa a aumentar o tempo todo, cada coisa sendo reajustada com índice de todo tipo, isso é um emaranhado. Calcular quanto se tem é difícil.

Bem, muita gente estudava isso no Brasil e essa muita gente incluía um grupo de economistas que, no final dos anos 70, formou uma pós-graduação na PUCRio. Edmar Bacha, Pedro Malan, e, claro, seus muitos alunos como Pérsio Arida e André Lara Resende, como Armínio Fraga. Nos anos 80, Pérsio e André sacaram do bolso uma ideia completamente original. Tão original que, pra muita gente, pareceu um pouco excêntrica demais.

Vejam, inflação tem um componente que é de política econômica. Mas tem outro componente que é psicológico. Olha, eu era adulto quando veio o Plano Real. Já tinha salário. Ainda assim, eu adulto, meu pai e minha mãe haviam já passado todas suas vidas adultos num país com inflação alta. As pessoas se acostumam com o fato de que os preços vão aumentar. Elas já partem do princípio de que tudo aumenta sempre. E é por isso que fica difícil resolver. Porque se você ataca os problemas na base da economia, continua tendo contrato e imposto e preço de coisa que o próprio governo controla aumentando todo mês porque está indexado, e isso é inflação. E todo mundo fazendo transações, botando preço nas coisas no mercado da esquina, já está acostumado com esse fato da vida que é: os preços sobem. Então você remarca, e remarca, e remarca. Um dos grandes motivos de a maioria dos planos terem dado errado é que, mesmo quando outros aspectos foram encarados, esse componente psicológico nunca foi resolvido.

Então, ainda jovens, ainda no tempo da ditadura, Pérsio e André apresentaram essa ideia numa conferência de economistas em Washington. E a ideia era a seguinte: e se o país tivesse, num período, duas moedas? Quer dizer, você tem ali a pilha de maçãs na feira e ela tem uma plaquinha. O preço por quilo na moeda atual é tanto, mas na moeda nova é outro. Aí você volta na semana seguinte, e o preço na moeda atual mudou, mas o na moeda nova, não. Continua o mesmo. Vem outra semana, vem uma quarta, vem uma quinta. Você vai criando na cabeça das pessoas o costume dessa coisa maravilhosa que é: tem um preço que nunca muda. Enquanto isso, o governo está operando responsavelmente. Não está gastando mais do que arrecada, não está gerando inflação nova. Só precisa lidar com a inércia. Aí você tira os índices dos contratos, os reajustes automáticos. Bota ali só os valores na moeda nova. Um dia, as pessoas acordam, e a moeda antiga não existe mais. O que vai acontecer com a moeda nova? As pessoas vão remarcar? Ou aquilo já fincou na cabeça?

Essa era a ideia deles. Tem um economista, possivelmente o economista alemão mais importante do século 20, um cara que tinha sido professor dos dois no MIT. Rüdiger Dornbush. Ele estava comentando a ideia maluca do André e do Pérsio aí se virou pros dois e falou, olha, vou chamar essa coisa de Larida. Lara Resende e Arida. O apelido pegou. Por uns dez anos esse plano ficou lá como uma ideia teorica sobre como fazer. E dá-lhe Plano Cruzado I, II, Verão, Bresser, Plano Collor, ô Zélia Cardoso, foi indo, um plano afundando após o outro. Até o dia em que Itamar Franco ligou para Fernando Henrique Cardoso e o convidou para ser seu ministro da Fazenda. Ele topou, mas tinha uma condição. Precisava de carta branca. Precisava do salvoconduto para deixar seus economistas trabalharem. Vieram Pedro Malan e Edmar Bacha, Pérsio e André. E trouxeram debaixo do braço o Larida. Que a gente hoje conhece como Plano Real. Agora já não era mais com duas moedas simultâneas, porque não precisava, né? Era uma moeda de verdade, o cruzeiro, e uma moeda fictícia. A Unidade Real de Valor. Que uns meses depois os brasileiros acordaram chamando de real. A moeda do Brasil.

Tem um motivo pra eu ter começado o Ponto de Partida de hoje contando essa história do presidente Lula. História, história como a gente a conhece, não vem pronta. A maneira como lembramos das coisas, os episódios que procuramos ressaltar, isso é parte de um acordo no qual contam muitas vozes. Historiadores, claro, jornalistas também, mas entra nessa lista líderes. Lula, em seu primeiro mandato, repetia muito aquela frase, não é? “Nunca antes na história desse país.”

Se o Estado existe para alguma coisa, o Estado numa democracia liberal, é para garantir uma vida digna para todos seus cidadãos. Para garantir que nossos instintos por competição não nos levem à destruição. Todo o valor que esse regime inaugurado pela Constituição de 1988 tem está no fato de que esta é a ordem que a Constituição dá aos governantes. Garantia de dignidade, garantia de que oportunidades serão dadas a todos, e esse trabalho foi feito. Não terminou, mas muita coisa foi feita. Coisas difíceis. Problemas crônicos. As conquistas sociais no primeiro governo Lula são imensas. As conquistas sociais nos governos Fernando Henrique são imensas. Lula governou um Estado que havia sido arrumado, organizado, um Estado que já tinha tirado milhões de brasileiros da miséria. Não tem Getúlio, não tem JK, não tem um presidente na história do Brasil, não tem período da República, que tenha avançado como nós avançamos. Mas esta obra é coletiva. Isso é trabalho da sociedade. Não de um grupo político, mas de alguns grupos cooperando e disputando numa democracia. E o que começou esse trabalho foi também um coletivo. Um coletivo de economistas que se juntaram na PUCRio para olhar o Brasil e imaginar como resolvê-lo. Como dar, aos governantes, a oportunidade de poderem construir em cima de um país estável. Sem esse país estável, não há como construir.

É só olhar para quanta gente, por quanto tempo, fracassou para entender como aquele trabalho não teve nada, absolutamente nada, de trivial. Esses trinta anos precisam ser celebrados. Por todos os brasileiros.

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