O que querem os evangélicos?

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É inevitável que a gente fale sobre evangélicos. Na verdade, mais do que isso. Temos duas pesquisas importantes sobre as quais conversar. Uma é da Quaest, a outra da Atlas. A primeira trata da queda da popularidade do presidente Lula e de seu governo, a segunda faz um retrato da polarização brasileira. Sim, a Atlas também mostrou queda de popularidade — todas as últimas mostraram. Mas como a Quaest foi a que ligou o alarme vermelho no Palácio do Planalto, porque, sim, ligou, vamos trabalhar com ela.

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O número de pessoas com visão positiva do governo seguiu mais ou menos constante. Mas o número de pessoas que têm visão negativa subiu de 29 para 34%. E a gente sabe onde que mundou. Evangélicos. A visão do governo era negativa entre eles para 36% em dezembro. Para os evangélicos pulou até 48% em fevereiro. Mais de dez pontos percentuais num período de dois meses.
É claro que comparar as ações de Israel com as de Hitler não ajudou em nada, 60% dos brasileiros acham que Lula exagerou. Quer dizer, todo mundo que não gosta de Lula mais uns tantos que gostam do presidente acharam que ele errou feio. Mas não é só isso.

A presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, se manifestou sobre isso no programa de entrevistas do jornalista Leandro Demori, na TV Brasil. Boa entrevista a do Demori. Vamos ver dois trechos. No primeiro a deputada fala sobre a desinformação, às vezes nascida inclusive de pastores.

Pronto. Agora neste outro pedaço, o Demori pergunta sobre como o governo Lula pode chegar aos brasileiros evangélicos.
“Não dá pra tratar os evangélicos como uma categoria religiosa, tem que tratar como uma categoria social.” O que é isso de categoria religiosa versus categoria social. O que diferencia? Gleisi dá a deixa na primeira resposta. “Esta é uma questão de luta de classes.”

Sabe qual é o problema de ideologia? Não é que ideologias não existam. É quando você perde a noção da sua própria ideologia. Todos pensamos sobre política ideologicamente. Eu penso, todos vocês pensam. Porque ideologia é uma lente e, nas democracias ocidentais contemporâneas, há três grandes ideologia disputando espaço. Da esquerda indo em direção à direita, Socialismo, Liberalismo e Conservadorismo. Todos terminamos em uma dessa três caixas. A gente interpreta o mundo através da lente que escolhemos usar. Mas se você perde a noção de que está enxergando o mundo através de uma lente, se você passa a acreditar que sua lente é a única possível, aí você deixa de perceber que os outros também estão usando lentes.
Gleisi, muitos no PT e isto inclui o próprio Lula, perderam a noção de que estão usando lentes. E isso está impedindo eles de compreender o Brasil.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

A gente está falando de evangélicos mas deveríamos falar também do Agro. Sabe por quê? Os dois grupos podem ser principalmente bolsonaristas mas são muito diferentes. E maconha é um negócio que pode ser tão bom para o agro que, ali, tem conversa para abrir a sociedade. A Luciana Lima escreveu sobre isso na última edição de sábado do Meio. A direita para quem abrir espaço para cannabis é bom. Você já é assinante, entra lá no site que você encontra. Tem jeito de falar com a direita. Você não é assinante? A matéria explica muita coisa. Eu, se fosse você, assinava. Vem.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Nós liberais botamos a pessoa, o ser humano, no centro de nossas preocupações. Socialistas, não. Socialistas põem a sociedade no centro de suas preocupações. Conservadores põem a família. Só daí, deste ponto de partida, já orienta demais como a gente compreende o que está acontecendo no mundo.

Sabe o que é? Eu vou estar preocupado que a pessoa viva sem alguém, público ou privado, impondo escolhas a ela. O socialista vai estar preocupado com a qualidade de vida média do total de pessoas, mesmo que isso queira dizer atropelar um grupo menor. O bem coletivo impera. E o conservador está preocupado com a manutenção de famílias bem tradicionais, a manutenção das hierarquias internas da família. Aquele núcleo é a coisa mais importante do mundo para ele, que o pai e a mãe sejam os que fazem as escolhas para os filhos, que eles possam controlar o que chega de fora para os filhos, como vão criar as crianças, os adolescentes, e poder encaminhá-los de um determinado jeito para o mundo.

Pergunte a cada um desses qual deve ser a prioridade do Estado e cada um vai dar uma resposta muito diferente do outro. Respostas, muitas vezes, antagônicas.
Numa democracia funcional, a gente responde a este problema negociando os espaços. É negociação, mesmo, um cede daqui, o outro dali. Às vezes um grupo está mais forte, às vezes outro está mais, por aí vai. Só que não temos uma democracia funcional. O liberalismo, que a gente também pode chamar de centro, foi esmagado. Um bom naco se bandeou para o lado conservador, quem sobrou ficou meio sozinho. Isso é importante porque, quando na conversa só tem direita e esquerda, as arestas viram escarpas. Quando só tem conservador e socialista, não tem muito espaço de negociação. O centro, por ter pontos de contato com ambos, é uma peça fundamental na construção de conversas possíveis. Na construção de maiorias para determinados projetos.

Qual o erro de avaliação da deputada Gleisi Hoffmann, do presidente Lula? Eles acreditam que o problema é econômico. É aquele modelo de política do James Carville, para o Bill Clinton, nos anos 1990. É a economia, estúpido. Se a economia vai bem, o presidente se reelege. Se vai mal, ele perde. Esse modelo não funciona mais há pelo menos dez anos.

Mas uma das razões fundamentais que os levam a compreender a coisa como um problema econômico é ideologia. Eles acreditam que a luta de classes é o que organiza os conflitos na sociedade. É uma briga de espaço entre quem tem dinheiro e quem não tem. Acreditam que, naturalmente, quem não tem dinheiro vai perceber quando um governo tem seus interesses econômicos como prioritários. Como a deputada diz? “Esse governo do presidente Lula é o que dá acesso à renda, é o governo que dá acesso à saúde, é o governo que fez Farmácia Popular, é o governo que está reabilitando o Fies, é o governo que está fazendo os institutos federais, é o governo que está dando oportunidade pro seu filho estudar, crescer, trabalhar.”

Só que não é esta a preocupação do evangélico. Veja, não é que ele não queira Farmácia Popular, Fies ou outros programas. Ajuda. A pessoa quer. E, sim, ela quer que o filho estude e trabalhe. Mas que escola é essa? O que vai ser ensinado nessa escola? Que professores são esses e que ideias eles trazem para os filhos? E tem outra. Essas pessoas querem trabalhar, querem crescer por conta própria, enriquecer. Não querem passar a impressão de que estão ganhando alguma vantagem. Olham com profunda desconfiança para uma penca de ideias que vêm da esquerda sobre gênero, sobre raça, sobre sexualidade. Porque estão convictas de que estas ideias ameaçam a natureza de suas famílias. E elas querem ter o controle sobre o que entra no ouvido de seus filhos. O máximo que der.

Essa ideia é chave. Gleisi acham que essas pessoas estão sendo enganadas, estão recebendo mentiras e por isso não estão preocupadas com o que deveriam realmente se preocupar. Não é isso que está acontecendo. Essas pessoas têm valores reais e querem ser ouvidas a este reespeito.

As eleições não são mais tanto sobre economia. Não é que economia tenha se tornado desimportante, é só que valores se tornaram mais importantes na maneira como o eleitor decide seu voto. Gleisi pode olhar para estas pessoas, para a maioria delas, e pensar: a sociedade é organizada pela luta de classes e estas pessoas são pobres. Portanto, o governo que as beneficia é um governo de esquerda.

O que os evangélicos estão dizendo, para quem estiver realmente disposto a ouvi-los, é outra coisa. Eles estão dizendo que sua preocupação fundamental é com ter o controle sobre o que ocorre com suas famílias, é com um determinado conjunto de valores, eles olham para o governo e acham que o governo não compartilha destes valores. E sua leitura está corretíssima. Este governo não compartilha destes valores que eles têm.

Acontece. Eu também não compartilho de muitos destes valores. Eu acho que é bom meus filhos ouvirem na escola ideias diferentes das minhas. Acho que é bom que tenham aula de educação sexual desde cedo. Acho ótimo que convivam com pessoas com valores distintos, aliás, pessoas diferentes de todas as formas. Mas eu sou liberal, não sou conservador. Acredito em formar filhos com autonomia. Que sejam diferentes de mim. Conservadores acreditam em formar filhos que levem adiante suas tradições, suas ideias, que perpetuem em novos núcleos familiares aquele jeito de viver. Conservadores querem preservar a sociedade do jeito que ela é faz tempo. Liberais e socialistas, não.

Na pesquisa da Atlas sobre o nível imenso de polarização do eleitorado brasileiro, há um dado interessante. 23% prefere um candidato que não seja nem lulista, nem bolsonarista. É isso. Menos de um quarto da população brasileira. Todos os outros estão de um lado ou de outro. Até tem quase 12% dos eleitores da direita que preferem alguém alinhado ao bolsonarismo, mas não fazem questão. E uns 5 e meio porcento dos eleitores de Lula preferem um candidato alinhado, mas também não fazem questão. Só que esta soma não é de 40%. Um pedaço é de direita e o outro pedaço é de esquerda. O centro está esmagado pela polarização afetiva.

Então o que resta são as escarpas. Sem o centro com seus pontos de contato dos dois lados, esquerda e direita se tocam e se espetam. São visões de mundo essencialmente diferentes. Essa base evangélica é em maioria conservadora, é ideológica e veio para ficar. A esquerda não vai conquistá-la com Bolsa Família.

O que o governo faz com isso? Uma coisa é entender que, num país que caiu tanto para a direita, o discurso de esquerda não traz voto novo, só consolida voto bolsonarista. Mas isso só vai acontecer se o governo for capaz de entender que sua lente, a lente que usa para ver o mundo, não é a lente que mais de metade da sociedade usa. Então as soluções que nascem deste olhar não necessariamente vão ser percebidas do outro lado.

Se o governo não entender isso, sabe o que acontece? Fica que nem barata tonta dizendo “a economia cresceu e eles ainda não gostam de mim”, que mistério é esse? São os valores, estúpido.

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