Netanyahu faz mal a Israel

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Na manhã dessa sexta-feira, os Estados Unidos apresentaram pela primeira vez uma proposta de cessar-fogo na Faixa de Gaza. Foi a quarta vez que o Conselho de Segurança da ONU votou um cessar-fogo, mas das três vezes anteriores os americanos vetaram qualquer resolução. Desta vez, foram eles que propuseram. E, desta vez, foram chineses e russos que vetaram.

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A questão aqui é política. A proposta americana vinha atada a um acordo de libertação dos reféns pelo Hamas. Israel cessa as operações, o Hamas devolve os reféns. Perfeitamente razoável. Os russos, mais os russos do que os chineses, não querem uma vitória diplomática americana. Então argumentam que os eles só desejam ganhar tempo para permitir que Israel invada Rafah. E o cessar-fogo, novamente, não saiu.

Enquanto isso, a diplomacia americana está pressionando no sentido contrário. Não quer que Israel abra uma nova ofensiva. O governo liderado por Benjamin Netanyahu, em Israel, é que deseja de fato prosseguir com a nova invasão. A edição da revista The Economist que começou a circular ontem, no Reino Unido e Estados Unidos, é o que melhor define este momento israelense. Israel está isolada. Está por um fio de perder seu maior aliado no mundo. E tudo isso tem um responsável, o pior primeiro-ministro da história do país. Netanyahu é o responsável.

Mais de uma vez me referi ao premiê israelense, aqui, como o Bolsonaro de lá. A definição é um bom atalho. Mas o que quer dizer isso? Porque Donald Trump não é perfeitamente igual a Jair Bolsonaro que não é perfeitamente igual a Viktor Órban, que não é perfeitamente igual a Bibi Netanyahu. A corrupção os une a todos, um espírito de rompimento das tradições democráticas também, mas cada um e cada país têm diferenças importantes entre si.

Sabe, este não é um assunto trivial. O conflito em Gaza é um dos mais conflagrados da internet. Um dos mais difíceis de entrar com a cabeça fria. Virou, essencialmente, outro desses atalhos verbais. É aquela coisa que automaticamente define você como representante da esquerda ou da direita. Se tem a opinião x veste vermelho, se tem a opinião y, veste amarelo. Existem outras guerras no mundo, até guerras que matam mais, só que vivemos um tempo no qual a conversa sobre política ficou tribal. Alguns assuntos viram atalhos para alinhamentos automáticos e isso torna qualquer conversa mais racional impossível.

Então estamos aqui. O assunto é importante demais para entender como o mundo funciona neste momento. E o objetivo é falar de política. O que está acontecendo em Israel? O que está acontecendo nos Estados Unidos? Por que chegamos a este ponto inacreditável?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
São dois milhões de casos de dengue no Brasil, pelo menos 682 mortes pela doença. Este ano. O Ministério da Saúde comprou todas as vacinas que haviam no mercado para distribuir pelo SUS, mas a entrega demora e pouca gente procura. Neste cenário, o ministério está sob ataque. Pudera, é o maior orçamento da Esplanada e todo mundo quer um pedaço. O ataque vem do Centrão mas vem também do PT. Não bastasse, foram quatro anos de negacionismo, de desestruturação da pasta. A ministra Nísia Trindade está com profundas dificuldades de entregar saúde ao Brasil. Mas como se desenlaça esse nó? É nisso que a gente vai mergulhar neste sábado. Você já assina o Meio? Devia. Lê a edição de Sábado e, de quebra, ainda ajuda a gente a produzir conteúdo gratuito para uma internet que nos impõe a era da desinformação.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Na semana passada, o líder democrata no Senado Chuck Schumer pegou o microfone para fazer um ataque duro ao premiê israelense. “Nós não devemos ser colocados numa posição de apoio incondicional a um governo israelense que inclui fascínoras que rejeitam a ideia de um país para os palestinos”, ele afirmou. Schumer pediu que Israel convoque novas eleições para trocar o governo.

Schumer não é apenas o mais importante senador do Partido Democrata. Ele é, também, o judeu em posição política mais alta nos Estados Unidos. Quando um repórter do New York Times lhe perguntou por que tomou a decisão de fazer um discurso tão duro, respondeu com muita franqueza. “Sob o comando de Netanyahu Israel corre o risco de se tornar um pária no mundo e mesmo aqui nos Estados Unidos”, ele disse. “Estou olhando para os números e estão caindo rapidamente. Eu precisava falar antes de erodir de vez.”

O presidente Joe Biden enfrenta, este ano, uma eleição muito, muito difícil. Os números das pesquisas estão mais favoráveis a ele agora do que estavam há um mês, mas ainda assim não vai ser fácil. Vai ser uma eleição muito apertada e nenhum dos dois, nem Biden, nem Donald Trump, podem se dar ao luxo de perder um único voto. Só que, para os democratas, isso faz com que a questão israelense se torne particularmente delicada. Tanto em Nova York quanto em Los Angeles, alguns dos principais doadores de campanhas eleitorais do partido vêm da comunidade judaica. Judeus votam mais no partido democrata do que no republicano, tradicionalmente. Porque minorias, em geral, votam mais nos democratas. É assim há muito tempo. E não são poucos, dá quase oito milhões de pessoas. É a maior comunidade judaica na diáspora.

Só que eleitores jovens, pela primeira vez na história, estão particularmente envolvidos com este debate sobre Israel e Palestina e, predominantemente, se põem numa posição contrária a Israel. É disso que Schumer está falando. E eleitores jovens são, também, muito caros a qualquer candidato democrata. Biden não pode abrir mão nem dos votos de eleitores judeus, nem dos votos de eleitores jovens. É um equilíbrio ingrato.

O pior é o seguinte: Donald Trump não está nem aí. A extrema-direita americana que o apoia é diferente da brasileira. É antissemita no talo, é papo de pureza racial branca, Ku Klux Klan. E Trump quer um governo que vire as costas pro mundo, seus eleitores apóiam isso. Ele não vai se desgastar com qualquer conflito internacional. Sua plataforma é nacionalista. Biden, para Israel, é um presidente melhor do que Trump. Só que o governo israelense não ajuda em nada. Não faz a política externa que deveria ser do interesse de Israel. Não está nem aí para o candidato americano que mais ajuda Tel Aviv. Por quê?

A resposta curta é que Netanyahu não tem os melhores interesses de Israel em vista. Tem os interesses de Netanyahu. Bibi surgiu politicamente no momento em que Yitzhak Rabin trabalhava para convencer a população de que a criação de um Estado palestino era do interesse de Israel. Rabin foi um gigante. Um grande general e o líder que teve a coragem de apertar a mão de um inimigo histórico para trazer paz aos dois povos. Ele e Yasser Arafat deram um passo que exige profunda coragem política. Naquele momento, Bibi Netanyahu era o político de oposição que estava chamando Rabin de traidor. Fazia discursos diários de campanha incitando o ódio da direita e da extrema-direita contra o governo Rabin. Não é pouca gente que o acusa, desde lá atrás, em 1995, de ter incitado o ódio que levou ao pior crime político da história israelense. Ao assassinato de Yitzhak Rabin.

Enquanto o mainstream político israelense apontava para buscar um acordo de paz, Netanyahu trabalhou para sabotá-lo. Quando por duas vezes os palestinos recusaram um acordo proposto, em 2000 e 2008, e veio uma sucessão de ataques terroristas, Bibi aproveitou. Venceu eleições com a ideia de que a paz com os palestinos não era possível e a única maneira de garantir segurança para os israelenses era ocupando parte da Cisjordânia com colônias, erguendo uma barreira e isolando Gaza. Ele formou gabinete com a extrema-direita mais radical. Os ministros que falam absurdos a toda hora sobre palestinos vêm desse grupo. Netanyahu evidentemente sempre considerou o Hamas uma espécie de aliado. Porque o Hamas também sempre se opôs a qualquer acordo de paz. Então enquanto o Hamas ficasse mandando foguetes contra Israel, aquilo mantinha a política de contenção militar do governo. Os dois ódios se alimentavam.

Ele é um político corrupto. É acusado de suborno, de fraude, de falsidade ideológica e quebra de confiança. Aceitou jóias de presente, champanhe caro, charutos cubanos. Arranjou para que empresas jornalísticas que o cobriam com olhares amigáveis tivessem decisões a seu favor por reguladores. Ele enfrenta três processos por corrupção na Justiça de Israel.

O maior drama tanto para palestinos quanto para israelenses é que enquanto houver guerra, Netanyahu permanece no poder. Enquanto estiver no poder, mais fácil para enfrentar os processos. Interessa pessoalmente a Netanyahu continuar a guerra e isso não tem nada a ver com objetivos estratégicos. O país está sendo isolado pelo mundo, há um pico de casos de antissemitismo por toda parte, e Netanyahu segue agarrado ao conflito, à guerra. Em seu benefício. Sequer faz uma política de comunicação com o mundo.

Nós só temos uma fonte a respeito de quantas pessoas morrem em Gaza. É o Hamas. Segundo o grupo terrorista, o número passa de 32 mil, em sua maioria mulheres e crianças. Quem já analisou os números vê problemas, tá? O primeiro é que, numa guerra, o crescimento de mortos nunca é linear. Tem semana que morre mais, semana que morre menos. Há momentos de avanço e momentos de recuo. Isso tem a ver com quando há mais ataques e quando há menos. Claro. Mas os números de Gaza são uma reta quase perfeita de crescimento contínuo num ritmo constante.

Outro problema é que há desencontro entre os dias em que morrem muitas mulheres e os dias em que morrem muitas crianças. Os picos de ambos deveriam ocorrer em conjunto, pois isso indica populações civis sendo atingidas. E por algum motivo, em Gaza, não é assim. Tem dia que morre muita criança, tem dia que morrem muitas mulheres, e esses dias não coincidem. Mas a verdade é que não há outra fonte de informação então todo mundo adota os números do Hamas que, claro, tem interesse em fazer com que Israel pareça o pior possível.

Mas há um problema aí que independe de se morreram mais ou menos pessoas. A cidade de Gaza está destruída e Israel impede a entrada de alimentos, de medicamentos, de muito equipamento em Gaza. Pode ser que o número de 32 mil pessoas mortas esteja correto, pode ser que não. Mas o drama humanitário em Gaza vai crescer muito dado o número de desalojados, a falta de água potável, as condições de higiene em franca deterioração. E esta conta vai ficar para Israel perante os olhos do mundo. Chuck Schumer está certo.

É fundamental que Israel mude seu governo. Para todo mundo vai ser melhor. Inclusive para Israel.

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