O Brasil precisa lembrar o golpe

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Neste domingo o golpe militar de 1964 completa 60 anos. Durante algumas décadas a gente teve uma disputa quase implicante entre esquerda e direita em que a data por lembrar dizia em que lado você estava. Se era contra a derrubada do presidente João Goulart, falava do golpe militar de 1º de abril de 1964.

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É por causa do dia da mentira. Se era a favor, tratava a coisa por a Revolução de 31 de março. São duas bobagens que não ficam de pé.

A primeira bobagem trata do marco. Do dia. O general Olympio Mourão Filho anunciou que o golpe estava em curso na manhã ainda escura do dia 31 e ele foi concluído no plenário da Câmara dos Deputados, pelo presidente do Congresso Nacional, o senador Auro de Moura Andrade, na madrugada do dia 2. É o momento da destituição do presidente legal do Brasil. O golpe não aconteceu num dia. O golpe aconteceu ao longo de três dias, entre duas madrugadas. Jango só deixou de ser presidente no dia 2. Golpes raramente acontecem num dia só.

Os militares chamavam de revolução porque, na cabeça dos anos sessenta, revolução era bom e golpe era mau. Revolução era uma coisa percebida como positiva e, golpe, como algo negativo. Mas os dois termos querem dizer a mesma coisa com uma diferença fundamental. Ambos, golpe e revolução, derrubam uma ordem legal. Quebram a lei para tirar o governo que existe de acordo com a lei. A diferença é que um golpe é dado por dentro do Estado. A revolução vem de fora, vem de um grupo fora do Estado.

A revolução americana foi um levante de americanos contra o Estado britânico. A revolução francesa foi dada por gente que não podia fazer parte do Estado. A revolução russa se ergueu de fora do Estado para derrubar todo o Estado. A revolução cubana: um bando de guerrilheiro descendo a Sierra Maestra para mudar por completo a ordem legal. Mudar por completo o que era o Estado. Isto é uma revolução.

As Forças Armadas e os parlamentares que tomaram parte do golpe são parte do Estado brasileiro. O nome disso é golpe. Porque foi provocado por militares, chamamos de um golpe militar. Alguns preferem golpe civil-militar. Tudo certo, civis de fato tomaram parte nele.

O presidente Lula tomou a decisão de não lembrar a data oficialmente. Acha que é provocar os atuais militares. Talvez, lá com ele mesmo, ele nem ache tão importante. Mas não é um aniversário qualquer, estamos falando de um aniversário redondo. Sessenta anos. Não é um momento qualquer. Sabemos, concretamente, que pelo menos quatro generais de Exército e um almirante de Esquadra, os cargos mais altos das tropas, planejaram um novo golpe militar. Estamos conhecendo os detalhes agora. Foi agora.

O Brasil se recusa a fazer a conversa sobre 1964. O Brasil se recusa a fazer a conversa sobre ditadura e democracia. Não é só a direita. A esquerda brasileira, em sua insistência de não olhar a Venezuela, a Nicarágua e Cuba pelo que são comete o mesmo erro. Não lembrar com clareza, não fazer o diálogo, não olhar dentro das instituições de Estado o que apodreceu, tudo isso tem consequência. É gente falando de “ditadura do Supremo” nas redes. Não entendem a diferença. São as milícias no Rio e em tantas cidades, tantos estados. São generais ainda tramando golpes.

A gente precisa traçar uma linha. A gente precisa ter os conceitos ajustados. A gente precisa usar as palavras certas. Ditadura. Democracia. A gente precisa lembrar.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Carlos Fico é historiador, professor titular da UFRJ e estuda ditadura militar faz 30 anos. É uma das maiores autoridades no assunto e não tem medo de desafiar alguns consensos acadêmicos sobre como se deu o golpe e como o Brasil pode sair desse eterno repetir das intervenções militares. Ele deu uma longa entrevista à editora executiva Flávia Tavares que a gente vai publicar no sábado. Você entende como foi o golpe? Todo assinante premium do Meio recebe a entrevista. E não custa quase nada pelo preço dum chope. Pensa nesse como um brinde à democracia.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Esta semana, pela primeiríssima vez, o Itamaraty ousou sugerir que as eleições da Venezuela do jeito que estão, não serão democráticas. Não fez isso porque mais uma candidata de oposição teve seu registro negado. Fez isso porque caiu enfim a ficha, lá no Palácio do Planalto, que Lula passar pano pra ditador de esquerda derruba popularidade. Porque, vejam, o problema não é de liderança regional. O problema é ideológico. Ditador de esquerda tem tratamento preferencial no Palácio do Planalto. Ditador de direita antiamericano também tem tratamento preferencial. Agora, país vivendo o pico da crise democrática, se for pró-americano, se tiver governo de extrema direita, aí ouve o pior do pior.

Este governo tem dois pesos e duas medidas. E entende mal o Brasil de 2024. Não entendeu com a clareza necessária que valores são tão importantes quanto economia para construir eleitorado. Não era assim há vinte anos. Hoje, é. Não entendeu que um grupo relevante de brasileiros votou no PT por horror, por ódio, por nojo de ditadura. Um grupo de brasileiros que acha o PT corrupto, que acha o PT diretamente responsável pela crise econômica que despencou no Brasil começando em 2012, 13 e provocou uma queda que ainda estamos longe de recuperar.

Não entendeu que uma das missões de um governo que sofreu uma tentativa de golpe de Estado é ser didático. É explicar e explicar e explicar. É ser claro sobre o que uma democracia é. Sobre o que é uma ditadura. O Brasil, os brasileiros, precisam compreender sem nenhuma ambiguidade. É uma campanha cívica fundamental.

Mas se você for explicar com todo didatismo o que é uma ditadura, aí não pode elogiar as que são de esquerda. Nunca o Brasil precisou tanto de uma grande campanha cívica e democrática. Nunca um governo deveria ter tanto interesse em promover uma campanha assim. E não quer.

Houve um momento em que o presidente Lula comparou a proibição de participar nas eleições da candidata María Corina Machado com sua própria suspensão, em 2018. Não é a mesma coisa. Lula sabe que não é a mesma coisa. Ele foi julgado e condenado pela Justiça comum em duas instâncias, uma delas colegiada. Podemos discutir se a Justiça tinha razão ou se não tinha, mas o julgamento durou anos e chegou a um veredito. A Lei da Ficha Limpa foi promulgada pelo próprio Lula e muitos anos antes. E estas são as condições que ela impõe: candidato condenado em duas instâncias, numa colegiada, não pode concorrer nas eleições. A gente conhece a Justiça brasileira, a gente conhece as leis que regem as eleições previamente. Quando o julgamento de Lula começou, a lei já existia. Lula não pôde concorrer.

María Corina foi proibida de concorrer por uma carta do controlador-geral da Venezuela. Cujo chefe é Nicolás Maduro. Foi proibida porque é a favor das sanções americanas contra o regime instalado no seu país. Esta regra estava escrita em algum lugar? Não, não estava. O controlador decidiu, decidido está. Houve processo, advogados, algo assim? Claro que não. Crime de ter opinião que o ditador não gosta. Em ditadura é assim. E ela não está sozinha. Henrique Caprilles, um candidato de centro-esquerda que tinha Lula como ídolo está proibido de concorrer em eleições desde 2013. Leopoldo López não só foi proibido de concorrer a eleições como esteve preso por sete anos. E foi torturado enquanto estava preso. Saiu da cadeia magérrimo e conseguiu fugir para a Espanha, onde vive em exílio. Qualquer líder da oposição que cresça, na Venezuela, é proibido de concorrer. Lula não correu em 2018, o Supremo considerou nula sua condenação, veio em 2022 e hoje é presidente da República. A Venezuela não muda de grupo no comando há um quarto de século. É uma ditadura já mais longa do que a ditadura militar.

Que ninguém compare Venezuela e Brasil. Não é a mesma coisa. Ditadura é ditadura. Democracia defeituosa ainda é democracia. Jair Bolsonaro liderou o plano de um golpe militar porque queria implantar uma ditadura. Numa ditadura, eu não posso falar o que estou dizendo aqui sem correr risco de vida.

Jornalistas venezuelanos correm risco quando falam sobre seu presidente como eu falo de Lula. Se falassem como eu falava de Bolsonaro, a prisão se tornava uma possibilidade real.

A diferença entre um regime baseado em leis e um regime no qual as regras mudam conforme o desejo de quem manda pode parecer evidente, mas não é. A diferença entre um regime que elege seus representantes, onde o Congresso pode se opor ao Executivo, e um outro, no qual um único grupo controla todas as instâncias de poder parece clara mas, não, não é.

No domingo começa o aniversário do golpe de 1964. É um instante precioso para lembrarmos de quanto custou ao Brasil. De como criou uma hiperinflação acachapante, não atacou os índices de alfabetização, não melhorou a Saúde, não resolveu a seca do Nordeste, não desenvolveu o país. De como fechou jornais, censurou outros, prendeu gente que discordava sem ordem de juiz, sem pista de onde estavam. Aí torturou, aí matou, aí fez desaparecer.

Não falamos abertamente sobre o golpe. As Forças Armadas, uma estrutura do Estado brasileiro, ainda atuam como se tivesse sido tudo certo. Ainda chamam de revolução. Ainda falam que salvou a democracia. Acabou a democracia, ergueu uma ditadura. Isto quer dizer que o Estado não tem posição oficial. E não tem mesmo. O presidente da República, um presidente de esquerda que sofreu uma tentativa de golpe militar, proibiu que o governo fale do assunto. Fale de 64. Porque não quer se ver numa posição em que os militares possam ficar chateados.

O Brasil não tem controle sobre suas Forças Armadas. O Brasil não se impõe à estrutura de Estado que mais fundamentalmente precisa ser mantida sob controle rígido. O Brasil vive uma democracia com problemas, mas claramente uma democracia, desde 1985 e ainda não chegou pros seus generais e falou claramente: foi golpe. Foram vocês que deram. Fez mal ao país. Fez muito mal ao país. Nunca mais. E repitam isso. E repitam isso. E repitam isso para cada recruta que entrar. Para cada tenente que se formar. Não pode um militar achar que não foi golpe, que foi certo. Porque volta.

Se generais ainda tentam golpes é porque nenhum presidente fez direito seu trabalho. Lula está se omitindo.

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