A direita entendeu errado a maconha

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Pergunte a Donald Trump o que ele acha da legalização da maconha. Sério. Vale muito a pena. Ele vai rebolar. Vai vir um monte de “veja bem”, de “maconha medicinal é muito promissora”, de “os estados que deviam decidir isso”. Na semana passada, enquanto o Brasil estava distraído com outras coisas, o Senado Federal aprovou de bate-pronto uma emenda à Constituição que criminaliza o consumo de drogas, incluindo maconha. Quer dizer, não basta ser lei. Precisa estar na Constituição. Tem um monte de coisa pra gente entender aí nesse pacote, mas acho que vale começarmos por entender por que, nesse assunto, a direita americana é bastante diferente da direita brasileira.

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E, nesse ponto, vale começar por Needles, Califórnia. É uma cidadezinha, população não chega a cinco mil habitantes. As pessoas em geral pensam na Califórnia como um estado bastante democrata, progressista. De esquerda. Estrelas de Hollywood num lado, gênios do Vale do Silício do outro, vinículas, biquínis e hippies. Mas é um estado imenso, de um lado o Oceano Pacífico mas, do outro, uma longa fronteira com os estados de Arizona e Nevada. Essa é uma região desértica, muito calor de dia, muito frio à noite. Os vizinhos são dois estados conservadores e as cidades e condados nessa linha de fronteira são iguaizinhos. Lei e ordem, republicanos na veia, pesadamente evangélicos.

Needles é uma cidadezinha bastante pequena mas muito representativa. Primeiro porque se você pega a Route 66, Rota 66, a estrada mítica que atravessa meio Estados Unidos de Chicago à Califórnia, o caminho sai do Arizona e entra no último estado justamente por ali. Por Needles. E quem já viu muito filme americano saberá que tipo de lugar é. Conservador, um monte de igreja, você entra na cidade a carro e já tem um carro da polícia atrás do outdoor para dar o bote. O atual prefeito de Needles, aliás, antes foi o xerife de Needles. Ou seja, o delegado, o cara responsável por decidir que foco dar na política de segurança pública. E ele não tinha dúvidas. Seu foco era nos jovens drogados que vinham de fora pela estrada. Muita gente foi presa pelo prefeito Jeff Williams, do Partido Republicano.

Tem muita igreja, tem prefeito republicano e se considera um santuário para a Segunda Emenda. Quem é de direita sabe do que se trata: direito a andar armado. Um santuário para você comprar suas armas e munição à vontade. Needles é, também, um santuário para o negócio da maconha. E graças justamente ao ex-xerife pró-armas que prendeu muita gente por fumar maconha. Por que Donald Trump não gosta de falar contra maconha mas também não gosta de falar bem? Porque um número cada vez maior de republicanos se tornou, nos últimos dez anos, favorável à maconha legal. O que mudou? Mudou por causa do agro.

Needles, como uma quantidade grande de cidades na fronteira da Califórnia com Arizona e Nevada empobreceram muito desde os anos 1990. Demais. Enquanto isso estava acontecendo, o estado foi lentamente mudando sua legislação a respeito da erva. Começou em 1996, quando foi aprovada a Lei do Uso Compassivo. De compaixão, mesmo. Maconha, antes de tudo, é um remédio. Para algumas doenças que tornam a vida muito difícil, maconha melhora a qualidade de vida. Devolve apetite para vítimas de câncer em quimioteramia, diminui depressão, melhora o cotidiano de quem sofre com convulsões. É por isso que a legalização para uso medicinal, lá, veio desta forma. Como um gesto de compaixão. Porque, no fim das contas, é profundamente injusto negar às pessoas algo que vai fazer com que a vida, quando ela é muito dura, fique só um pouquinho melhor.

Deixa eu ressaltar aqui: é uma baita injustiça negar isso a quem precisa. Impor uma vida de sofrimento quando não é preciso.

E, desde 2018, se você tem 18 anos ou mais, também é legal o uso recreativo. No estado da Califórnia, fumar um baseado não é diferente de tomar um chope ou acender um charuto. É só para adultos, tem imposto mais alto, mas pode. É legal.

A mudança não foi automática na cabeça do prefeito que foi xerife, não, tá? Na verdade, foi bastante lenta. Primeiro, quando um comerciante local pediu licença à prefeitura para vender produtos baseados em cannabis para uso medicinal, seu primeiro reflexo foi negar. Só não disse não de cara porque, bem, com a economia da cidadezinha no chão, as pessoas tentando sobreviver e a lei estadual dizendo que pode, ele decidiu antes fazer umas consultas. Conversou com médicos, todos muito favoráveis, aí relutantemente concedeu a licença. E aí mais uma. Outra. Os criminosos não vieram, os jovens drogados que ele temia sair encontrando pelas esquinas não apareceram.
Aos poucos a cidadezinha foi observando aquela mudança. Veio a ideia de plantar localmente para vender para o resto do estado. A economia da pequena Needle reavivou. Renasceu. A direita brasileira está olhando mal pra questão das drogas. Está olhando, em parte, contra seus próprios interesses.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Vem cá. Vocês já entenderam o que a gente faz aqui, não é? A gente faz uma defesa da democracia. Isso não é porque a gente é de esquerda. Não é porque a gente é de direita. Mas é porque a gente entende que existem brasileiros de direita, existem brasileiros de esquerda, os dois grupos têm pleno direito à cidadania e a gente precisa voltar ao mundo em que todo mundo era capaz de sentar e conversar. Em que éramos capazes de gostar das pessoas mesmo quando a gente discordava delas. Não tem ameaça à democracia quando todo mundo se fala na boa. Ameaça nasce quando as pessoas não são capazes mais de diálogo. A gente, aqui no Meio, traça uma linha e diz o seguinte: cruzou ela, quis derrubar a democracia, você está fora do jogo. Mas todo o resto continua dentro. Tanto esquerda quanto direita são legítimos para jogar. E isso inclui o Centro que, sim, existe. Precisamos da assinatura de vocês porque, se a gente não fica de pé, o que sobra na internet é jornalismo que torce para um lado. Se só sobra o jornalismo das torcidas, a gente não vai ter paz. Vai ser pra sempre aquele discursinho de porque o outro lado é tudo de ruim e nós somos a virtude encarnada. Assine o Meio. Se você acha que isso aqui faz sentido para você, assine o Meio. É contigo. É com todo mundo que entende que a internet, o digital, precisa deste tipo de jornalismo. Que a democracia precisa.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

O ponto aqui é o seguinte: a gente não sabe há quanto tempo a humanidade faz uso de cannabis sativa. De maconha. Mas é muito tempo. Oito mil anos sabemos que já estava lá. Ou seja, antes de escrevermos, antes de termos cidades, já fumávamos. Assim como já bebíamos, tá? Cerveja e vinho são bastante antigos. Por um século, mais ou menos da década de 1930 para cá, decidimos proibir o uso de maconha. Tem algum motivo específico para dizer que maconha e perigoso e álcool não? Não tem. Do ponto de vista estritamente científico, não tem. Tem razão para afirmar que tabaco é menos prejudicial do que maconha? Não.

O que ficou desse experimento de proibir maconha? Criou o tráfico de drogas. No momento em que se torna uma coisa para a qual há demanda ilegal, cria-se imediatamente um comércio ilegal. Quando os americanos experimentaram proibir bebida alcoólica por dez anos, o que aconteceu? Al Capone. A máfia explodiu.

A alternativa é encarar esse troço pelo que é. Uma planta que algumas pessoas desejam consumir. Tem duas oportunidades aí. Uma é do negócio, outra do Estado. O negócio é toda uma série de possibilidades que começa no agro e termina na loja. Mas estamos falando, essencialmente, de agroindústria. Nos próximos anos, maconha se tornará legal em quase todo o mundo. Já está acontecendo. O Brasil tem duas escolhas. Fazer que nem a escravidão e ser o último do mundo a abolir aí passar o resto da história pedindo desculpas. Ou entender que há uma oportunidade de alimentar o mundo com produto de um tipo de qualidade em que o Brasil, francamente, é imbatível. A gente planta como ninguém. E estamos jogando dinheiro fora. Estamos jogando crescimento econômico fora. E jogando esse dinheiro no colo de bandido.

Porque, sim, a outra oportunidade é de arrecadação. Tem de cobrar imposto, e tem de cobrar imposto direito. Tem de regular. Que idade pode para consumir? Como se alimenta com esse produto a indústria farmacêutica?

Sabe, no blablablá da demagogia, é muito fácil fazer o discurso dizendo que tem de prender traficante. O traficante só existirá enquanto o negócio for proibido. Existe uma razão para um sujeito como Donald Trump, o Bolsonaro deles, sempre gaguejar quando provocam ele a falar sobre maconha. Ele não quer dizer que é contra. Por que não quer dizer? Porque perde eleitores. Perde eleitores conservadores.

Que os conservadores brasileiros não tenham percebido isso ainda é incrível. Não estão prestando atenção. Que o agro brasileiro não tenha percebido isso é inacreditável porque o negócio está lá, as plantações estão lá, o tamanho da indústria está lá. Basta pegar um avião ali em Brasília direto pro LAX, pagar um motorista para levar a Needles. Ou melhor. Que os leve para Nevada ou Arizona. Os eleitores do Arizona votaram, em plebiscito, para tornar o plantio e porte de cannabis no ano de 2020. Os de Nevada, em 2017. Por quê? Porque viram o que aconteceu na Califórnia e perceberam que não faziam parte do negócio.

Um avião só. Aliás, podiam aproveitar e levar junto o Rodrigo Pacheco. Ele acha que está brigando com o Supremo ao ir na contramão do mundo em legislação sobre drogas. Bobagem. Está indo contra o agro.

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