Devemos expulsar Pablo dos debates?
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Existe uma conversa na praça sobre se Pablo Marçal deveria ser excluído dos debates eleitorais. Quem pôs esse argumento com mais verve foi o jornalista Leão Serva, em um artigo na Folha de S. Paulo. Leão é diretor de jornalismo da TV Cultura e foi moderador do debate em que rolou a cadeirada. Ele também foi entrevistado pela editora-chefe do Meio, Flávia Tavares, no Conversas de ontem. Vale muito a pena assistir a essa entrevista. É uma aula sobre debates, sobre política, e sobre o que mudou nos últimos tempos. E o Leão está certo. Mudou muito.
O argumento dele se resume bem na frase que abre seu artigo na Folha: “Dado o conhecimento que temos hoje, se Adolf Hitler fosse candidato a um cargo de governo, deveríamos convidá-lo para um debate?”
A pegada do Leão é a seguinte. A gente deve dar espaço em debates para candidatos que ameaçam a democracia? Ele cita Hitler porque é, mesmo, um exemplo poderoso. Cita também Trump e Bolsonaro. Líderes autoritários podem usar o sistema democrático para depois enfraquecê-lo. Ao dar palco a políticos assim, a imprensa pode também estar os legitimando. Tratando como se fossem normais.
Eu discordo do argumento do Leão. Talvez concorde com a conclusão. Pois é. Este é um Ponto de Partida onde quero compartilhar com vocês uma dúvida. Estamos perante um problema novo. E é importante a gente processar as informações que temos para compreender este problema novo.
Mas vamos começar pelo argumento. Discordo por alguns motivos, e o primeiro é o exemplo de Adolf Hitler. Pablo Marçal não é nazista. Não é sequer fascista. Pablo é um reacionário. Todo fascista é reacionário, mas nem todo reacionário é fascista. O discurso de Marçal não tem alguns dos elementos fundamentais do fascismo. Estou usando aqui a definição do Robert Paxton, um historiador americano que é o meu favorito pra tratar de fascismo. O primeiro elemento do fascismo é um nacionalismo pesado. O país está acima de tudo, inclusive de cada pessoa individualmente. Há, igualmente, um apelo ao que país foi no passado e deixou de ser. É um passado inventado, glorioso, fantasioso, mas isso está na essência do ideal fascista, este culto ao passado. E aí vem um discurso pesado contra minorias.
Percebe que estes três elementos sempre estiveram no discurso de Jair Bolsonaro. Sempre. O desprezo por minorias, uma nostalgia exacerbada com um Brasil que ele imagina ter existido, e essa coisa Deus acima de tudo, Brasil acima de todos. Isto é fascismo. Tem outros elementos, tá? Esses ritos de masculinidade violenta, por exemplo, os desfiles de moto e tudo o mais. O Marçal traz isso, como o Bolsonaro. Mas não traz os outros e, por isso mesmo, não basta para configurar como fascista.
O exemplo do Hitler traz sempre essa carga pesada, porque imediatamente ele acompanha essas duas palavras. Fascista. Nazista. E aí vira um pouco discutir precisamos nos defender do bicho papão. De qualquer forma, independentemente do exemplo do Hitler, o ponto real do Leão é outro. Não é se vamos virar a Alemanha Nazista. É se vamos perder a democracia. E aí esse debate é mais complicado.
Pablo Marçal é uma ameaça à democracia? Em que momento, e com base em que critérios, decidimos se um candidato é uma ameaça à democracia?
Jair Bolsonaro passou a carreira política defendendo a ditadura militar, defendendo a tortura. Defendendo o AI-5. Discursava, em campanha para presidente, dizendo que era preciso “levar pra ponta da praia quem fosse de esquerda”. Matar. Eliminar a oposição. Donald Trump incitou a invasão do Capitólio quando os senadores estavam homologando a eleição de Joe Biden. Atacou a credibilidade do sistema eleitoral americano. O Projeto 2025, sobre o qual precisamos falar aqui em algum momento, é um programa de governo público que, em essência, explica que medidas tomar ao chegar à Casa Branca para dissolver a democracia americana.
Meu ponto aqui é o seguinte: o discurso de Jair Bolsonaro e o discurso de Donald Trump são discursos antidemocráticos. Concretamente antidemocráticos. O discurso político de Pablo Marçal não é tão claramente antidemocrático. O discurso é reacionário, sim. Mas se você quer fazer mudanças na sociedade que promovam comportamentos ultraconservadores, para isso eleja parlamentares, construa um movimento político, convença as pessoas, bem, aí você é um reacionário democrata. O ônus de impedir o retrocesso é dos democratas não-reacionários. Isso está dentro do jogo eleitoral.
Sei que não é muito popular dizer isso. Mas não está claro que Pablo Marçal seja uma ameaça ao regime democrático da mesma forma que Trump e Bolsonaro. Agora, se isso aqui está fazendo parecer que discordo do Leão, bem, eu não sei se discordo dele. Pablo me parece um bicho diferente. E há uma sutileza importante, aqui. Não está claro que ele é uma ameaça ao regime democrático. Mas ele é obviamente uma ameaça aos ritos da democracia.
Todo mundo que o acompanhou ao vivo, nos debates, diz rigorosamente a mesma coisa. Ele e seus assessores já chegam causando. Já chegam incitando. Já chegam provocando. Já chegam prontos pra briga. São bullies. Eles não querem que o debate aconteça. Eles não querem que o debate repercuta. Eles não acreditam em debate. Eles hackeiam o processo. Querem trapacear, querem construir um episódio qualquer de forma que ninguém fale do debate no dia seguinte. A estratégia de Pablo Marçal, de certa forma, é calar o debate. É fazer com que ele, o Pablo, para o bem ou para o mal, seja o assunto do dia seguinte e que tudo o que foi discutido no debate seja anulado. Apagado. É, de certa forma, uma tática de censura. Porque, no mundo digital, a maneira de censurar uma ideia não é calando. É criando tanto ruído em volta que a informação se perde.
A especialidade do Pablo é essa. Criar tanto ruído que a informação se perde.
E este é um problema para o qual não temos solução clara. O que fazer com um candidato que chega num debate para explodir o debate. Um candidato que não acredita em debater ideias. Que quer construir uma distração para que a sociedade ignore o debate. E mais do que isso. Um candidato que domina suficientemente as técnicas de comunicação digital e consegue fazer isso. Consegue, em essência, trapacear a ponto de calar todos seus adversários. Ele faz uma cortina de fumaça que leva o debate a ser ignorado.
Ainda há dois debates previstos na disputa pela prefeitura de São Paulo. No sábado, os candidatos se encontram na TV Record. E, na semana que vem, na quinta-feira 3 de outubro, acontecerá o último e tradicional debate, da TV Globo.
Já fizemos muitas vezes, na democracia brasileira, debates em que nem todos os candidatos estavam convidados. É porque não dá. Tem eleição que tem um monte de candidato e muitos são folclóricos, os Enéas e Padres Kelmans da vida. Gente que não tem qualquer chance de chegar no segundo turno. Aí, se você enche o palco com essas figuras, os candidatos que o eleitorado realmente deseja ouvir têm pouco tempo para falar.
Porque um debate é isso, né? É dar uma oportunidade à sociedade para fazer uma avaliação generalizada dos candidatos. Ouvir suas propostas, por exemplo, mas não só. Avaliar a capacidade de responder a perguntas difíceis, coisa que um chefe de Executivo tem de fazer toda hora. Ver como agem sob pressão. Num bom debate, tem um monte de coisa que é possível avaliar.
Então, em alguns momentos, sim se decidiu excluir candidatos para que o debate fosse mais representativo. Para que o debate pusesse, na frente dos eleitores, os candidatos com chances reais de chegar ao cargo. E aí, tradicionalmente, ao menos nas eleições grandes, com milhões de eleitores envolvidos, sempre foram usados um de dois critérios. O primeiro, representatividade do partido do candidato. Como se mede se um partido é relevante ou não? Bancada na Câmara dos Deputados para presidente; na Assembleia Legislativa, para governador; na Câmara Municipal, para prefeito. Se um partido tem bancada expressiva, o candidato entra. Se não, sai.
Esse critério caiu em desuso porque começaram a pipocar candidatos com grandes chances, nas pesquisas, mas que vinham de partidos nanicos. Isso era mais incomum naquele período em que PT e PSDB dominaram juntos a política brasileira, mas começou a ocorrer com maior frequência. Aí mudou-se o critério. Se começou a usar como critério as pesquisas eleitorais.
Mas percebe um padrão aqui? Sempre que se chega à conclusão de que não dá para chamar todos os candidatos, o critério determinante foi o de excluir quem não tinha chance na eleição. Ou seja, dar voz aos candidatos que os eleitores realmente desejavam ouvir. Aqueles que têm chances. Pablo Marçal, segundo a maioria das pesquisas, é o preferido de um quinto dos paulistanos.
Bem, poderíamos usar um argumento utilitarista. Há os outros 80%. O direito deles de assistir a um debate e avaliar com calma os candidatos está sendo violado por um único candidato que usa o debate para fazer ruído. O que é melhor para a maioria se sobrepõe ao direito de 20% dos eleitores verem seu candidato no debate.
É um argumento forte. É um argumento relevante.
O problema é que 20% não é pouca gente. Tem um aspecto da liberdade de expressão da qual falamos pouco. Um dos elementos que permitem a quem perde uma eleição ir pra casa no dia seguinte, mesmo que insatisfeito, é a certeza de que pode não gostar do governante, mas poderá continuar falando. Poderá reclamar, poderá criticar, poderá montar um movimento político e quem sabe ganhar a próxima eleição.
É evidente que neste núcleo reacionário de 20% do Brasil está um ninho da serpente. Se não fascista, certamente antidemocrático. Neste momento, em São Paulo, seu candidato é Pablo Marçal. Se começarmos a negar espaço a todos estes candidatos, a gente também fortalece, enrijece, os ímpetos antidemocráticos dessa turma. A gente os convence de que a democracia é mesmo uma ficção, porque o candidato deles não tem direito a falar. A gente consolida mais o movimento antidemocrático que existe no Brasil.
Qual é a solução? Eu não sei. Mas, como esta aqui ainda é uma democracia, isso quer dizer que nós ainda temos uma ferramenta poderosa. O debate público. Se as pesquisas estiverem corretas, Pablo Marçal não chega ao segundo turno. Mas ele inventou um jeito de participar de debates que será copiado em 2026. Precisamos conversar sobre como lidar com isso.