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O que a direita daqui aprende com Trump

O ex-presidente Jair Bolsonaro publicou ontem, na Folha de S. Paulo, um artigo com o seguinte título: “Aceitem a democracia”. A pegada dele é a seguinte: progressistas, a gente, não estaríamos nos conformando com a eleição de pessoas como Donald Trump, como Javier Milei. A afirmação é engraçada. Sabe por quê? Quando Javier Milei foi eleito presidente da Argentina, a imprensa argentina se encheu de artigos de gente de esquerda, de gente de centro, se perguntando: onde foi que erramos? Com esta eleição de Trump, mesma coisa na imprensa americana. Onde foi que erramos? Alguém viu alguma pessoa que preferia que estas eleições não houvessem ocorrido questionando as urnas? Não. A sociedade votou, escolheu, quem perdeu se recolheu, foi lamber as feridas e tentar entender por que perdeu.

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Ninguém, deste lado aqui, está questionando a democracia, não. Está devidamente aceitada, a democracia. Ganhou nas urnas, presidente será. Mas, olha, o problema do artigo do Bolsonaro não é que ele é patentemente absurdo. Que é cínico. Que é hipócrita. Ele é tudo isso também. O problema do artigo de Bolsonaro é que ele é, igualmente, inteligente. O ex-presidente não está conversando com quem respeita a democracia. Está conversando com quem não compreende bem o que democracia é mas tem altas expectativas a respeito de o que o governo precisa entregar. São coisas que o governo não está entregando bem. E isso tem tudo a ver com a eleição de Donald Trump.

Trump se elegeu por três razões principais. Todas têm óbvios reflexos no Brasil. Aqui, estou pegando emprestada a excelente e profunda leitura de Noah Smith, que escreve a newsletter Noahpinion, um especialista em economia comportamental.

A primeira razão é justamente econômica. Todo presidente da República, a não ser que tenha a sorte de viver um período de grande crescimento do PIB, precisa tomar uma decisão. Investe pesado para gerar crescimento econômico e cria inflação? Ou mantem a inflação baixa mas vê um desemprego um pouco maior? Joe Biden escolheu programas de incentivo à economia, de geração de empregos. Gerou, com isso, inflação. Foi punido nas urnas. Inflação tira votos e novos empregos não dão votos. Por quê? Entender essa resposta é importante. Neste exato momento, o presidente Lula está justamente com esta decisão sobre a mesa dele. Qual será sua escolha?

A segunda razão está relacionada à política identitária. Quem pensa em termos de identidade, e muitos no Partido Democrata pensam, foi para esta campanha com a bússola desregulada. Porque há muito de miragem na ideia do identitarismo. Nunca tantos negros votaram no Partido Republicano quanto nesta eleição. O número de latinos se aproximou dos 50%. O que aconteceu? Bem, essas pessoas estão mais conservadoras. Seu voto foi ideológico. Mas isto não quer dizer exatamente de direita, tá? O corte não é entre esquerda e direita. É entre elites e quem está de fora das elites.

É aqui que entramos na terceira razão. O que define elite, nos Estados Unidos de hoje, é um diploma universitário. Até uns anos atrás, o número de pessoas que ia para a universidade, lá, vinha aumentando um pouco a cada ano. Aí parou. Se estabilizou em algo um pouco menor do que metade da população. Ter diploma, estar na elite educacional, vem com um monte de códigos e um monte de vantagens. O mundo criado pela globalização e pela internet favorece quem tem diploma. E pessoas com diploma têm um monte de códigos que simbolizam seu status: são ideias, frases muito repetidas, que no conjunto representam, aos ouvidos de boa parte da população, uma mensagem: “eu sou melhor do que você”. A origem do ressentimento que mobiliza os eleitores da direita trumpista está nisso.

Vamos dissecar essas ideias?

O governo Joe Biden pegou os Estados Unidos no finzinho da pandemia. Logo nos primeiros meses, houve uma imenso debate interno sobre se deveria distribuir mais um pacote de estímulo para a economia se recuperar. Ou seja, se o Estado devia botar mais dinheiro para circular. Uns argumentavam que seria inflacionário. Outros, que não, pois criaria empregos, fomentando o crescimento do PIB, o que compensaria o jogo. Bem, os resultados foram dois. Aumentou, sim, a inflação. Mas também diminuiu o número de desempregados.

Alguns economistas desenvolvimentistas costumam argumentar que um pouco de inflação é bom e uma das razões é essa. É sinal de um governo atuante na economia. Biden se afastou da maneira que Barack Obama e Bill Clinton, que são liberais, agiam. Se aproximou do jeito Lyndon Johnson de governar, um Estado mais interventor.
No fim das contas, para políticos pragmáticos, o que importa é o seguinte: de um lado, mais desemprego e menos inflação, do outro mais emprego só que com mais inflação. Qual a melhor escolha para trazer votos? Nesta eleição, Biden fez a escolha errada.

O que parece ter acontecido na cabeça do eleitor é o seguinte: se você consegue um emprego, foi você que conseguiu. É seu mérito. Sua vitória. Se não consegue, é seu fracasso. Claro, conjuntura macroeconômica conta, sim. Mas a pessoa não percebe isso. Ela sente que seu emprego depende de si mesma. Com inflação não é assim. Inflação ninguém tem controle. O preço do tomate aumenta, a culpa é do governo. O sucesso no emprego é vitória pessoal, o aumento dos preços é culpa do governo. Biden não colheu os louros do baixo desemprego mas arcou com o custo em popularidade da alta de inflação. E há um último elemento. Aumento de empregos atinge uma parcela pequena da população. Inflação atinge a todo mundo por igual e pesa mais para quem já tem o dinheiro contado.

E aí vamos pro identitarismo. Sabe qual o slogan mais exibido nas propagandas de TV da campanha de Donald Trump? Usava os seguintes dizeres: She’s for they/them, he’s for you.
Esse they/them é o pronome neutro do identitarismo em inglês. Uma tradução perfeita é impossível, mas seria algo tipo Ela, a Kamala, defende elu/ile, enquanto ele, o Trump, defende você. A maioria das pessoas não entende bem a pegada dos pronomes neutros, mas o pior não é isso. O pior é que o identitarismo mexe com a bússola política de quem o usa como guia.

Como explicar que quase metade dos latinos votou em Donald Trump se ele é contra imigração? Se você pensa por identidade, é impossível explicar. Parece absurdo. Os imigrantes são latinos, os latinos deveriam defendê-los. Só que não é assim que as pessoas reagem no mundo real. No mundo real, os latinos que chegaram aos Estados Unidos e conseguiram cidadania celebram o fato de serem americanos. Querem viver o sonho americano. São, em geral, católicos conservadores. E, com muita frequência, vêm de países como Venezuela, Nicarágua, Cuba, que vivem ditaduras de esquerda. Essas pessoas têm lado. Não foram para os Estados Unidos à toa. Se a bússola identitária convenceu alguém de que estas pessoas iriam ficar do lado do Partido Democrata, é porque a bússola é má guia.

Aí, por fim, vem o problema talvez mais importante. O processo de globalização e digitalização do mundo tornou muito difícil a vida de quem não tem ensino superior. Empregabilidade é mais difícil. Emprego de qualidade é mais distante. A economia tem menos espaço para essas pessoas. Num episódio como o da pandemia, por exemplo, quem tem ensino superior pôde ficar em casa, trabalhando remotamente. Por conta da natureza de seus trabalhos. Quem trabalha entregando coisa, quem trabalha em oficina, quem é eletricista, essas pessoas se deram muito mal.
Sabe, a gente, a elite educada, foi aos poucos adotando códigos que para nós pareciam muito razoáveis. Respeite a ciência. Fique em casa. A própria maneira como usamos a palavra democracia. O jeito que falamos de mudanças climáticas.

Para um segundo, porque isso é importante. Vocabulário é símbolo de status. É símbolo, sim, de identidade de grupo. De marca tribal. Quando falamos “respeite a ciência”, para nós é um conceito perfeitamente razoável. É irracional não respeitar a ciência. Mas, durante a pandemia, para o sujeito que para viver precisava abrir a lojinha de bairro e torcer para encontrar clientes, ele estava em desespero. Aí aparece um camarada barbudinho, com bolsa tiracolo, chamando ele de irracional. “Respeite a ciência” virou, aos ouvidos de uma quantidade imensa de pessoas, um sinal de gente com a vida ganha incapaz de ter empatia com quem está na batalha diária.

Todo nosso discurso, e inclua nisso os debates identitários sobre gênero, sobre raça, tudo isso faz parte de um pacote que bate no ouvido de uma parcela crescente da população como: aquele pessoal que acha que é melhor do que a gente. Aquele pessoal que se acha superior. O principal corte que separa eleitores de Kamala Harris de um lado, de Donald Trump do outro, é ensino superior. Quem tem ensino superior perdeu a capacidade de ter empatia e de se comunicar com quem não tem.

Nós somos, de fato, uma elite. E o fato de termos perdido a capacidade de ter contato com quem não está na elite quer dizer que as políticas públicas estão descalibradas. Aqui no Brasil: tenta da CLT para motoristas de aplicativo, eles se revoltam. Fala com desdém de religião, dessa gente evangélica como se fosse motivo de nojo, como se fossem medievais. Estamos falando de uma quantidade grande de pessoas honestas, na batalha. E as tratamos como fascistas.

O problema nos Estados Unidos não é diferente do Brasil. Chamar de fascista, olhar com superioridade, aumenta o cisma. Falar em jargão piora a conversa. A gente tem de duas, uma. Podemos continuar brigando com os outros como se fossem irracionais. Não são. É gente de verdade, que tem seus valores, que tem uma vida difícil. A alternativa é começar a ouvir. E, ouvindo, se esforçar para começar o diálogo. Vai ser difícil. Mas é melhor antes do que depois.

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