O que pensa um liberal?
Você tem um segundo para ouvir a palavra do liberalismo? Brincadeira. Isso aqui não vai ser sobre proselitismo político. Mas vai ser sobre ideologias, porque a gente precisa falar sobre ideologia. Neste arco da história, a maioria da população brasileira está fortemente assentada no conservadorismo. Existe um grupo menor, mas presente, de socialistas. Liberais, e eu sou liberal, somos a franca minoria. Veja, não tem nenhum problema ser uma coisa ou ser outra. Numa democracia, porque o regime é liberal, as três correntes têm espaço no debate público. Devem ter. Só que a gente precisa ter vocabulário para falar sobre política e, quando dividimos tudo em direita ou esquerda, a gente perde esse vocabulário. Existem três grandes ideologias. Uma muito diferente da outra. Quando falamos de esquerda e direita, não cabem três opções. Se falamos de esquerda, centro e direita, muitos ficam com a impressão de que o centro é algo no meio, algo que não se posiciona. Que está em cima do muro. E não é. É um terceiro jeito de ver. Na verdade, nem é um terceiro. A primeira ideologia moderna a nascer foi o liberalismo. O conservadorismo apareceu em oposição àquele conjunto de ideias novas. E o socialismo veio depois, como uma oposição ao liberalismo pelo outro lado.
Então vamos aterrisar aqui, botar a bola no chão. O que é uma coisa e o que é a outra e o que é a terceira. Uma das maneiras de a gente começar a definir é a seguinte: em nome de quem a ideologia fala? O conservador é o mais tradicional dos três. Sociedades tradicionais têm a família no centro. São os clãs, as famílias estendidas, uma hierarquia mais rigorosa. O pai, depois a mãe, daí os filhos. Aquele patriarca. Os conservadores põem a família no centro. Os liberais põem a pessoa, o indivíduo, no centro. É a ruptura com as sociedades tradicionais. Cada pessoa por si, ciosa de seus desejos, de seus sonhos, das suas possibilidades. Aí os socialistas vêm com uma alternativa radical, um terceiro caminho. No centro estão todos. Toda a sociedade.
Quando a gente tem um debate no qual um grupo se vira e diz que a família precisa decidir o que os filhos estudam na escola, que certas coisas o Estado não pode ensinar sem permissão dos pais, que visão é essa? Uma visão conservadora. Mas aí se alguém se vira e fala que os pais não podem definir que conhecimento a criança vai ter, que ela tem, por si, direitos que os pais não podem negar, que visão é essa? Uma visão liberal. Nesse sentido, o socialista vai chegar a uma conclusão muito parecida, mas seguindo outro caminho. Ele não está preocupado com cada criança individualmente, mas com o conjunto de todas as crianças e o que elas aprenderão em prol da sociedade. Os pais não dão pitaco no que é de interesse da sociedade.
Porque, veja, todo conservador verá família como o alicerce em cima do qual se ergue a sociedade. Todo o liberal vê a sociedade como um conjunto de pessoas, cada qual com seus direitos inalienáveis. Se essas pessoas formam grupos, e claro que formam, é por vantagem mútua que o fazem. Assim como todo socialista entende a sociedade como um todo em que as pessoas estão inevitavelmente ligadas umas às outras e o bem estar do todo refletirá no melhor para cada um. Assim, a maneira como vão organizar seus discursos vai ser muito diferente uma da outra. O socialista vai falar de coletividade, da solidariedade inerente a todos. O liberal falará dos direitos individuais, dos direitos de escolher o que deseja pra si. O conservador falará de dever, de tradição.
Às vezes, um socialista fala em coletividade, um conservador fala em tradição, e daí batem cabeça. Um fica indignado com o outro. É evidente que seu valor é muito mais relevante do que o valor do outro. O liberal chega, fala em individualismo, e de presto os dois se juntam para olhar pra esse terceiro e dizer: seu egoísta. Pois é.
Se a base da sociedade, para você, é a família, você vai partir do princípio de que seu dever para sua família está acima de tudo. Que a preservação das tradições é fundamental. O que seu bisavô fazia, o que seu avô, seu pai. Isso exigirá de você disciplina, exigirá a preservação de casamentos, de filiação religiosa. Estabilidade. Manutenção. Pouca mudança.
Se a base da sociedade, por outro lado, é o conjunto, se a força está no todo da sociedade, então igualdade, fraternidade e justiça social estão cima de tudo. Precisamos organizar a sociedade de um jeito tal que as classes se dissolvam ao máximo, que o altruísmo se imponha ao individualismo, e isto quer dizer no limite que as pessoas e as famílias terão menos escolhas e a sociedade vai precisar mudar mais para que desigualdades desapareçam.
Mas e se a base for a pessoa? Então o valor estará na autonomia individual. Estará na tolerância e, consequentemente, no pluralismo. Cada pessoa pode ser diferente, cada pessoa pode ter suas opiniões, e ninguém, nenhum grupo, nenhum Estado, pode sufocar isso. O pai não pode impor ao filho nada. A sociedade não pode impor à pessoa qualquer coisa. E, claro, cada um deve se responsabilizar pelas escolhas que faz.
Quando nós falamos que a democracia é liberal, o que queremos dizer, em essência, é que na base das Constituições democráticas estão princípios liberais. Há direitos individuais, o direito à livre expressão, à liberdade religiosa, a de se reunir com quem desejar, de ir e vir. E, justamente porque a Constituição é liberal, isto quer dizer que a sociedade será plural. Terá direito a ser plural. As pessoas podem pensar, cada uma, por si. Podem amar quem desejarem. Celebrar contratos com quem quiserem. Assim, no mercado das ideias, numa sociedade liberal, liberais devem disputar nos argumentos com socialistas e conservadores. Liberais podem, inclusive, ser minoritários. Hoje em dia, nós somos.
Mas, veja, talvez o conceito mais importante que o liberalismo traga para a mesa das democracias é essa ideia de que cada pessoa tem o direito de formar sua opinião. Que pessoas igualmente inteligentes, igualmente sensatas, pessoas todas de bom caráter podem legitimamente chegar a conclusões distintas. Liberais acreditam que diversidade é bom e que é inerente à existência humana. A pessoa que discorda de você tem todo o direito de discordar. É inerente à nossa natureza discordarmos. Sentirmos diferentemente, valorizarmos pontos distintos de um argumento, concluirmos seguindo raciocínios diversos. Ser diferente, para um liberal, é bom, é esperado, é fundamentalmente humano.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Vem cá: você sabe mesmo ler as notícias? Mas não é só bater o olho e replicar, é entender o que está por trás delas. Quem acompanha o Meio termina sendo referência em qualquer conversa. Porque a gente entrega análise, contexto e aumenta o seu repertório. E repertório é tudo, você sabe. Assine o Meio para ter acesso à Edição de Sábado com entrevistas e reportagens especiais sobre política, história, cultura, tecnologia e comportamento escritas por múltiplos pontos de vista. O Meio Político chega às quartas na sua caixa de e-mail, com as análises de Brasília e do que você precisa olhar na lupa no cenário político. E tem o nosso streaming, com docs e séries que vão te fazer maratonar produções que incluem o original do Meio ‘Democracia, uma história sem fim’, ‘Elon Musk, A Tomada do Twitter’, ‘O Futuro do Trabalho’, ‘Evangélicos, Da Fé ao Poder’ e muitas outras. Assine. Sabe por quê? Porque ajuda a pensar. Ajuda a construir suas próprias ideias. É só seguir o QR Code na tela ou clicar no link da descrição.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Toda ideologia tem o braço moderado e tem o braço radical com múltiplos tons de cinza de uma ponta à outra. O socialista pode ser comunista ou pode ser social-democrata. O conservador pode ser, assim, um conservador light, como pode ser um reacionário. Com liberais é igual. Aquilo que a maioria das pessoas chama de neoliberal, ou de libertário, ou de anarcocapitalista, é o liberal radical. E, assim como social-democratas e comunistas têm um universo inteiro entre eles, mesmo que partam dos mesmos princípios essenciais, com liberais se dá o mesmo.
O liberal moderado, o liberal progressista, o social-liberal não acha que uma empresa está acima de um ser humano. Aliás, acha exatamente o contrário. Não é uma ideologia do lucro acima de qualquer coisa. No liberalismo há plena ciência de que existe aquilo que pertence a cada um e aquilo que pertence a todos. O meio ambiente, pertence a todos. Se uma fábrica despeja tinta tóxica num rio, está violando os direitos individuais de uma penca de pessoas. Não pode e é grave. Porque, veja, o liberalismo nasce justamente com a intenção de que nenhuma pessoa seja oprimida por ter menos poder. Porque não tem a religião da maioria, a sexualidade da maioria, porque tem menos dinheiro ou menos títulos de nobreza, ou menos cultura, ou seja de outro país, ou tenha uma cor de pele diferente. É a mesma razão pela qual, no século 20, o liberalismo rompeu com a ideia de não haver direitos trabalhistas. Como assim alguém, por ter mais dinheiro, pode impor 10, 12 horas de trabalho diário a quem tem menos poder? Toda força que pode oprimir uma pessoa está em oposição ao liberalismo.
O liberalismo no século 17 era diferente do de hoje? É claro. A ideia nasce e ela evolui porque se baseia em princípios que vão abrindo nossos olhos. Que vão nos propulsionando à frente.
Em geral, nossa conversa aqui é sobre os fatos do dia. Mas o Ponto de Partida é, também, um olhar liberal sobre os fatos. Muita gente é liberal, porque seus instintos são liberais, só que não sabe posicionar. O movimento abolicionista, no Brasil, nasceu dentro do Partido Liberal. O feminismo, no século 19, nasceu na Europa de dentro do movimento liberal. A liberdade sexual lá atrás, nos anos dez, vinte do século 20, e isso inclui o movimento gay, vem de liberais. Porque estamos falando, sempre, desta ideia chave: ninguém deve ser oprimido para ser quem não é. Para buscar seu melhor. A democracia liberal, quando governada por liberais, deve em essência criar um ambiente no qual todos tenham dignidade e possam desenvolver seus talentos para ser o melhor que podem vir a ser. Esta é a intenção fundamental de um Estado liberal.
E este é o debate aberto. Vamos seguir conversando?