Que Judiciário é esse?
Na semana passada, a jornalista Rosane de Oliveira foi condenada, junto com o jornal Zero Hora, a pagar uma indenização de 600 mil reais à desembargadora Íris Helena Medeiros Nogueira, ex-presidente do Tribunal de Justiça, em Porto Alegre. O que Rosane fez? Abriu o Portal Transparência, pegou todos os juízes gaúchos, viu quanto cada um ganhou num determinado mês e listou o ranking dos mais bem pagos. Descobriu que a doutora Íris havia recebido 662 mil reais. Não é só salário, tá? Não é todo mês que ela ganha isso. Ali, em abril deste ano, mês passado, juntou o salário e umas verbas indenizatórias e deu isso.
Por que Rosane foi condenada por divulgar uma informação pública, à qual todo brasileiro tem direito de tomar conhecimento? Porque, segundo a sentença de primeira instância, ela teria usado de “linguagem sarcástica” e, assim, gerado “abalo à imagem” da desembargadora. E, assim, uma jornalista e um jornal foram condenados a pagar mais seiscentos mil por publicarem o que é verdade e é público.
Antes de tudo, por uma questão de transparência: faço parte do conselho editorial do Grupo RBS, que inclui o jornal Zero Hora. É, de longe, um dos mais bem estruturados grupos jornalísticos do país, são sérios, inovadores. São também, e justamente por causa disso, uma das melhores escolas de jornalismo do Brasil. Não é à toa que temos tão bons jornalistas gaúchos em todas as grandes redações. Em geral, é onde há jornais de qualidade que jornalistas jovens são formados com solidez e em quantidade. Como conselheiro, meu trabalho é dar minha opinião pessoal sobre o trabalho jornalístico do grupo. Aí os responsáveis julgam se o que falo é útil ou não. Não falo pelo grupo, não sou responsável pelo jornalismo praticado lá em nada. Sou responsável pelo jornalismo que eu pratico e que o Meio pratica. E sou inteiramente responsável pela minha opinião pessoal.
O jornalismo erra, sim. Não tem atividade na qual não se erre. E é direito garantido de todos que se sentem afetados pela cobertura jornalística buscar a Justiça. Mas esta sentença é absurda. Se Rosane foi sarcástica, não foi à toa. Em que cargo público, no Brasil, é possível ganhar um contracheque de mais de meio milhão de reais num único mês? Reitor de universidade federal? Não ganha. Presidente da República? Presidente do Congresso? Não ganha. Comandante de uma das três Forças Armadas? Não tem como.
Só existem três carreiras públicas nas quais é possível fazer meio milhão de reais ou mais num mês. Ou na magistratura, ou no Ministério Público, ou em Tribunal de Contas. Quer dizer, ou juiz, ou promotor e procurador, ou conselheiro dos TCs.
Os tribunais de conta são um problema gigante no Brasil. É um penduricalho onde ministros, governadores, prefeitos, enfiam mulheres, apadrinhados, ex-companheiros de legislativo para fazerem pouco e ganharem fortuna. Mas, no fim das contas, são pouca gente. O mesmo não dá pra dizer sobre Ministério Público e Judiciário. Em termos de volume, são muito, muito mais pessoas. Têm um teto de salário, claro, todo servidor público tem. Não podem passar dos vencimentos de um ministro do STF, ou seja, 46 mil reais e quebrados. Só que aí esse teto não conta licença-prêmio, férias que não foram tiradas e viram dinheiro, auxílio-moradia, auxílio-transporte, abono permanência, retroativos de gratificações e por aí vai. E, para entender essa coisa de substituir férias por dinheiro, é importante ser claro. Juízes têm direito a 60 dias de férias por ano. Trabalha dez meses, folga dois. É o dobro de todos os outros servidores públicos. Para cada mês de férias, deve receber abono salarial de um terço do salário. Ou seja, isso mais o salário do mês. Desses 60 dias, pode vender vinte e receber isso em dinheiro. Aí teria só 40 dias pra descansar. Agora, se por acaso não der para tirar todos esses 40 dias, aí o jeito é ser indenizado.
Eu não vou entrar no mérito sobre se a Rosane foi irônica ou não, como afirma a sentença de primeira instância. Mas dá para entender perfeitamente quem tenha vontade de ser sarcástico. Vamos deixar claro, aqui. Se os juízes brasileiros não sabem, a vida deles é boa. É muito, muito boa. E muito, muito fácil. Juízes não precisam lidar com os problemas que 99% dos brasileiros têm de enfrentar. Se alguns são sarcásticos a este respeito, engole em seco e deixa passar, vai?
O que a sentença contra Rosane e o Zero Hora diz é o seguinte: a gente tem privilégio, não é pra ficar espalhando por aí nem é pra sugerir aos leitores que estes privilégios devam ser estranhados. Se a sentença tem fundamento legal? Nenhum. Jornalistas, na verdade qualquer cidadão, têm o direito de tornar público e manifestar opinião a respeito de qualquer informação que seja, ora, pública. Mas e aí? E aí, nada. Sentença judicial se cumpre. É assim que funciona na democracia. Se cumpre desse jeito aqui: dizendo que é absurda, é corporativista. Dizendo mais: é um tapa na cara da democracia brasileira que exige de todo cidadão que seja atento ao que se faz no Estado, crítico ao que se faz no Estado, e que cobre de todos os três poderes que estejam atentos à realidade brasileira e se adequem à ela. Nenhum poder é mais alheio à realidade brasileira do que o Judiciário. Ser crítico ao Estado é dever do cidadão. Pelo menos para uma corte de primeira instância, no Rio Grande do Sul, isso não é verdade. Ser crítico a respeito da alienação do Judiciário, para aquele juízo, é coisa que deve ser punida. Está tudo certo. Recorre-se. Recorre-se à segunda instância, à terceira. Até o STF. E, cada vez que sobe uma instância, vamos conversar cada vez mais alto. Vamos trazer toda a sociedade brasileira para conversar mais sobre como é fácil a vida de juiz pela nossa terra.
É ótimo. Alimenta essa conversa. Precisamos mesmo tê-la.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Sabe qual o maior problema aqui? A gente precisa do Judiciário. Estamos num momento em que o Brasil precisa como nunca do Poder Judiciário. Só que, quando se fala da questão de custos da Justiça, o tema é sério. O Brasil gasta 1,6% do PIB com o sistema judicial. Em termos de percentual do PIB, é três vezes mais o que se gasta em média em países emergentes, como o nosso. Esse é um estudo do Tesouro Nacional, tá? Números oficiais. Quando comparado a uma lista de 53 países, que inclui alguns dos países mais ricos do planeta, nenhum gasta tanto quanto nós como percentual do PIB. A gente gasta menos com saúde do que a média destes 53, a gente gasta mais do que todos com Previdência. Mas, em todos esses casos, é aquela conta ali um pouco mais que a média, um pouco menos que a média. Quando entra a Justiça na conta, a coisa explode. Os países emergentes gastam 0,5% em média do seu PIB com Justiça. As economias desenvolvidas gastam 0,3%. A gente, 1,6%. Não tem como essa conta ficar de pé. A Justiça brasileira custa caro e entrega pouco.
Estamos para entrar num momento histórico e fundamental para o Brasil. É a primeira vez que a Justiça civil vai se debruçar sobre uma tentativa de golpe militar. A investigação da Polícia Federal é sólida, cravejada de provas. Conhecemos a teia de comando a partir do então presidente Jair Bolsonaro e de lá pro último soldado. Todos os civis que se meteram nessa coisa.
É tão importante que a decisão que o Supremo tomará seja compreendida como isenta. Como a ação de juízes que avaliaram os fatos tais quanto foram apresentados e chegaram a uma conclusão à luz da lei. Francamente? É exatamente o que eu acredito que ocorrerá. Mas é possível que o Brasil se divida e metade dos brasileiros olhem com desconfiança.
Por que há uma crise de confiança no Judiciário? Olha, em parte não é culpa de nenhum juiz. Há uma crise de confiança em todas as instituições que analisam informação de alguma sorte. Vivemos um tempo em que nós jornalistas somos questionados, que as Igrejas são questionadas, que as universidades e a ciência são questionadas, e, sim, também a Justiça. Em parte, a crise de confiança em Instituições é geral e se espalha para muito além do Brasil. Mas junte decisões monocráticas de ministros do Supremo, com as decisões sem qualquer coerência que a Justiça toma, o vai e vêm em decisões importantes como o da prisão após condenação em segunda instância, mistura com o desastre que foi levar a Lava Jato muito a sério até um ponto e, de repente, tratar tudo, praticamente tudo da Lava Jato, como se precisasse ser suspenso. Para não falar de ministro do Supremo envolvido com escolha de presidente da CBF, né?
No conjunto da obra, as pessoas ficam com a impressão de que o Judiciário se move de acordo com seus interesses, às vezes políticos, às vezes financeiros. Essa decisão absurda do Rio Grande do Sul só confirma isso. Decisão de republiqueta das bananas, coisa que o Rio Grande não é, o Brasil muito menos. Só quem pode salvar o Judiciário são os próprios juízes. E, sem demagogia, o Judiciário brasileiro tem grandes juízes. Isso vale, inclusive, para o Rio Grande do Sul. Conheço muita gente séria, lá, gente com quem já conversei inclusive. Muitas vezes, as histórias que ouvimos e chamam atenção são as exceções, não a regra. Mas, de novo, só juízes podem atacar o abuso de outros juízes. Não há instituição melhor do que a Justiça pra resolver os problemas da Justiça. E isto quer dizer começar a julgar com isenção real, não por laços de compadrio.