O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Bolsonaro e Xandão querem te seduzir

O ex-presidente quer convencer aqueles que têm pouca memória e estão começando a acompanhar os lances do julgamento do golpe de que é um democrata e um homem equilibrado. Ao não cometer nenhuma grande gafe, acabou conseguindo isso em alguma medida. Já Alexandre de Moraes quer provar que é um juiz isento e afável. Com seu bom humor com Bolsonaro e os demais, também marcou pontos.
Se você não assistiu ao depoimento do ex-presidente Jair Bolsonaro ao ministro Alexandre de Moraes, olha, te recomendo que assista.
Antes de depor, o ex-presidente havia pedido a Moraes permissão pra exibir vídeos. E declarou que, se pudesse ficar à vontade, falaria “por horas”. Queria transformar o depoimento num Flow da vida.

PUBLICIDADE

Embora na véspera Alexandre de Moraes tivesse sinalizado que não havia qualquer pressa ao menosprezar a fome do pobre advogado do general Augusto Heleno, desta vez, o ministro achou por bem não topar a exibição de vídeos de Bolsonaro. Imagina-se que queria manter algum tipo de controle do depoimento.

Restou a Bolsonaro narrar o conteúdo dos vídeos que pretendia exibir. E isso foi logo no começo da sessão. As perguntas eram sobre as acusações do ex-presidente, sem provas, de haver chance de fraude nas urnas eletrônicas. Ele ia exibir vídeos do hoje ministro do Supremo Flávio Dino falando em fraudes em eleições passadas, assim como gravações do mesmo teor de Carlos Lupi, ex-ministro de Lula e autor da ação que resultou na inelegibilidade de Bolsonaro.

Xandão não embarcou nessa. Bolsonaro acabou tendo de repetir, oralmente, sua sequência de ataques às urnas. Isso diante do protagonista da defesa das urnas durante 2022. Foi um tanto constrangedor.

Confrontado com falas suas naquela infame reunião ministerial pra combinar o golpe, em que incriminava, sem provas, os ministros do TSE de receber 30, 40, 50 milhões de dólares, assim, como se isso não fosse nada, Bolsonaro fez uma cara de quem sente o rabo se esconder entre as pernas.

Pediu desculpas. Disse que realmente não tinha indícios daqueles crimes, e que aquela reunião não devia ter sido gravada. Que seu linguajar é inapropriado, mas ele vem trabalhando pra melhorar isso aí, talkey? E que tudo isso é parte de sua “retórica de parlamentar”, que tem imunidade pra falar o que quiser. Tipo força do hábito.

Eu fiquei pensando muito nesse trecho. Ele tem tantas camadas. A mais óbvia: foi impossível não me lembrar de uma figurinha de zap que rolava muito quando Bolsonaro era presidente, que era a imagem do slogan do governo, mas, em vez de estar escrito “Pátria amada, Brasil”, vinha “Ele se expressou mal”. Veja bem, ministro, meu linguajar, tá certo?

Mas tem outras análises possíveis. Uma foi levantada pelo procurador-geral, Paulo Gonet: Bolsonaro sempre se defendeu dizendo que agia dentro da institucionalidade e das tais quatro linhas da Constituição — tem mais linhas lá, viu, Bolsonaro, vale dar uma lida. E aquela era uma reunião institucional. Não era uma cerveja na beira da piscina. Era uma reunião entre autoridades de Estado. E foi nela que Bolsonaro se sentiu totalmente à vontade pra, entre muitos outros absurdos, acusar ministros do Tribunal Superior Eleitoral de receber milhões de dólares para fraudar eleições em favor de Lula.

Foi o que ele fez durante todo seu governo, mas especialmente a partir de 2021: usar notícias falsas e ilações contra os outros poderes e as outras autoridades da República para desqualificá-las, desacreditá-las e, por fim, vencê-las. Isso não é o que faz um líder democrático.
Fora que usar sua retórica parlamentar para falar o que quiser no Executivo é uma distorção completa do que é ser um presidente da República. Ele reforçou esse ponto algumas vezes ao longo do depoimento. Que, acostumado à plena liberdade de discurso em seus 28 anos de deputado, levou o hábito para o Planalto. Não pode, né? Ninguém avisou, será? Claro que avisou. Ser presidente tem uma série de responsabilidades que ser um deputado não tem. E foi nesse papel, de presidente, que ele se reuniu com os comandantes das Forças Armadas e discutiu como reverter um resultado eleitoral. É justamente por isso que ele está sendo julgado.

Mas é claro também que, como ele mesmo falou depois no esforço de se vitimizar, ele nunca quis ser presidente. É muito difícil, é custoso, trabalhoso, sofrido.

Bolsonaro não estava ali tentando convencer Alexandre de Moraes de nada. Ele até devia tentar. Mas seu discurso não era pra Xandão. Nem pra Luiz Fux, que claramente não precisa ser convencido por Bolsonaro de coisa alguma. Nem mesmo Paulo Gonet, o PGR. Bolsonaro estava falando para sua base e para quem anda meio desligado do assunto e vai ver cortes nas redes.

Bolsonaro precisava convencer quem tem memória curta que ele é um democrata, um homem equilibrado cujo grande defeito é amar demais o Brasil e a Constituição. E nesse papel ele se saiu relativamente bem. Não se perdeu em suas falas, não saiu do personagem que foi bem treinado por seus advogados, não deu nenhuma grande gafe.

Só que Bolsonaro não era o único ali tentando mandar uma mensagem para além dos autos e do próprio julgamento.

Fica aqui pra gente examinar melhor outros lances do depoimento. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Você talvez já saiba que, além da newsletter diária gratuita e dos vídeos aqui no YouTube, nós também temos muito conteúdo pra quem paga assinatura do Meio, pra quem é premium. A gente tem, por exemplo, um canal de streaming, que quando você baixa fica ali do lado da Netflix, da Disney, dos apps que você tiver na sua smartv. E a gente está recheando ele de programas muito legais, de assuntos quentes ou mais de fôlego, mas que têm o jeito Meio de enxergar e explicar o mundo. É repertório pra você entender melhor o que acontece ao seu redor nessa velocidade absurda dos dias de hoje. A gente inclusive já fez um documentário sobre democracia e no segundo semestre vem um segundo episódio dele, falando dessa tentativa de golpe de 2022. Assine o Meio! São só 15 reais por mês.

Pouco depois desse pedido de desculpa de Bolsonaro, que ficou sem resposta do ministro Alexandre, houve um outro momento de ouro na troca entre eles.

Alexandre já havia informado que, pelas regras, não era seu papel contestar ou comentar respostas dos réus em seus depoimentos. Ou seja, não lhe caberia apontar incoerências, inconsistências, mentiras — por mais que elas acontecessem, e elas aconteceram, diante de seus olhos. Por isso, ele se ateve a perguntar e ouvir as respostas. Com raras exceções.

A mais saborosa delas foi em um momento em que Bolsonaro estava, em uma de suas longas falas autocongratulatórias por todo seu amor à democracia brasileira, contando de suas viagens pelo Brasil e de como é recebido nos aeroportos. Ele perguntou a Alexandre se poderia mandar ao ministro um vídeo com essas imagens. “Eu declino”, foi a resposta imediata de Xandão, para risos tímidos de alguns. O próprio ministro já estava com um ar de gracejo, mas ainda sério.

Mas, então, veio mais. Bolsonaro falou que queria permissão para fazer uma brincadeira. Alexandre, já rindo mais abertamente, respondeu: “O senhor que sabe”. Então, recomendou que era melhor o ex-presidente consultar seus advogados se devia. Diante do consentimento dos dois advogados, Bolsonaro, todo cheio de risos, disse a Alexandre: “Eu gostaria de convidá-lo pra ser meu vice em 2026”.

“Eu declino novamente”, respondeu Alexandre, dessa vez levando um segundinho a mais do que da primeira. Ele, então, olha para o lado onde estava Luiz Fux. Se balança na cadeira com um leve desconforto. Bolsonaro imediatamente se recompõe e pede desculpa mais uma vez.

O breve desconforto de Alexandre pode ter vindo de dois lugares diferentes. O primeiro do fato de que, bem, Bolsonaro está inelegível e, ao que tudo indica, estará preso em 2026. Não vai ser candidato a nada, a não ser a dono da pelada da Papuda, talvez.

O segundo, suponho eu, por não poder responder que jamais seria vice de ninguém, né? Alguém consegue imaginar o ministro Alexandre de Moraes topando ser o número 2 de alguma chapa? Isso só mostra como a tentativa de sedução de Bolsonaro estava descalibrada, né?
Mas é porque, como eu disse antes, essa tentativa de sedução não era para quem estava ali na sala.

Só que Alexandre também estava numa missão de encantamento extra-Supremo. Parte de seu trabalho nesses depoimentos é o de mostrar ao mundo que ele é um julgador isento. Não é um juiz vingativo, raivoso, imagem que muitos tentaram fazer colar nele. Mais ainda: é preciso convencer que os réus estão sendo plenamente respeitados em seus direitos, que não estão sendo coagidos a responder dessa ou daquela maneira. E isso Alexandre de Moraes conseguiu com a exibição desses depoimentos e com a troca cordial e bem humorada com Bolsonaro e outros réus e seus advogados.

Do ponto de vista do processo em si, pouco se avançou nesses depoimentos. Não houve grandes novidades, nada que mude os rumos do que se sabia até aqui. É claro que da fala de um réu, que tem o direito constitucional de não se autoincriminar, não se espera muita novidade mesmo. Isso não quer dizer que essas oitivas não tenham função. Obviamente, se algum deles conseguir derrubar uma acusação a partir de uma contra-prova nova ou algo assim, isso vai ser incorporado e vai alterar o curso das coisas. Mas não foi o que aconteceu.

Diante disso, mesmo o procurador-geral Paulo Gonet foi econômico nas perguntas. Sabia que, estando bem treinado como claramente estava, Bolsonaro acabaria usando cada uma delas como palco para sua “retórica de parlamentar” — retórica essa que rendeu expressões como “tivemos de assistir ao ocaso de nosso governo” e “entubar”. A retórica dos inocentes, né?

Então, nessa imensa batalha de itararé jurídica o saldo foi: nada de novo no front do processo, mas as imagens que Bolsonaro e Alexandre queriam imprimir para quem quiser assistir foram devidamente impressas. Agora, é esperar.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.