Ele vai ser condenado
Estamos chegando perto do julgamento mais importante da história da República brasileira. Sim: o mais importante. A razão é a seguinte: democracia, para funcionar, precisa de tempo. Não bastam dez ou vinte anos. Democracia precisa de continuidade. Cinquenta anos, setenta. E uma única força insiste em se intrometer na nossa democracia. Foram, desde 1889, sete vezes que um ou mais generais derrubaram o regime legal, a Constituição, porque queriam escolher quem mandaria no Brasil. Por sete vezes deu certo. Mas muitos outros golpes militares foram tentados e não deram certo. Nunca um general foi julgado por tentar interromper a democracia.
Os bolsonaristas costumam usar um de três argumentos, quando confrontados com este julgamento. Um é tolo, o outro nos faz de tolos, o terceiro é cínico. Vamos encarar os três? O primeiro: não aconteceu nada. É mentira, mas tudo bem, vamos lá. O segundo: tudo o que fizeram era estritamente legal. É o argumento dos advogados do próprio Bolsonaro. E aí vai o terceiro, o cínico: pensar em cometer, planejar um crime, não é, por si só, um crime.
Bem, vamos começar com o general Mário Fernandes. Em seu depoimento aos ministros do Supremo Tribunal Federal, na semana passada, ele confirmou ser o autor do Plano Punhal Verde e Amarelo. Se vocês não lembram, é o pico do delírio bolsonarista. É o plano que previa o assassinato do então presidente eleito Lula, de seu vice-presidente Geraldo Alckmin e do presidente do ministro Alexandre de Moraes, que presidia também o Tribunal Superior Eleitoral. Sim, Mário Fernandes confirmou que escreveu cada palavra do plano.
O general, no entanto, disse que eram só umas ideias da sua cabeça. Vamos lá, entre aspas, exatamente as palavras do réu:
“Esse arquivo digital, que retrata um pensamento meu que foi digitalizado, é um estudo de situação. Uma análise de riscos que fiz e, por costume próprio, resolvi digitalizar. Esse pensamento digitalizado não foi compartilhado com ninguém.”
O sujeito chega a general e tem dificuldade de distinguir digitar de digitalizar. Mas tudo certo. Mario Fernandes explicou que bateu o texto e aí o imprimiu para consumo próprio. Sabe, no setor público as coisas todas deixam registro. Então se, dentro do Palácio do Planalto, você imprime um documento, tudo deixa rastro. Que computador foi usado, qual o login e senha deram acesso à máquina, que impressora imprimiu o que e quantas vezes. É por isso que a Polícia Federal tem detalhes que o general não pode negar.
E o problema é o seguinte: ele diz que imprimiu o texto para relê-lo, para não cansar a vista na tela. Tudo certo, muito justo. Só que a impressora diz que foram feitas três cópias. Era a configuração, explica o general. As outras coisas impressas tinham três cópias? Não. Mario Fernandes foi depois de imprimir os papéis para o Palácio do Alvorada. Adivinha quem estava lá, deprimido?
Vejam, só, o tipo de mensagem que mandava por WhatsApp. Para o tenente-coronel Mauro Cid: “Cid, acho que você está tendo uma reunião importante aí agora no Alvorada. Isso é história. E a história é marcada por momentos como esse que nós estamos vivendo agora.” Para o general Braga Netto. “Força, general. General, está havendo uma reunião importante agora no Alvorada, eu acredito que o senhor esteja presente.” Ele não se continha.
Outra mensagem para Cid: “Mas, porra, a gente não pode perder oportunidade. São duas coisas. A primeira, durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas, porra, aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades.”
Não é só isso, tá? A tocaia ao ministro Alexandre de Moraes, exatamente tal qual foi descrita no Plano que o general escreveu, aconteceu. Oficiais do Exército monitoraram o ministro seguindo o plano de sua prisão e assassinato. Sabemos disso porque temos as mensagens que trocaram por WhatsApp e temos a localização dos celulares que carregavam. Ou seja, não se trata apenas de ideias soltas da cabeça do general Fernandes. Não se trata de algo que ficou apenas em suas mãos. Não se trata apenas de planejamento sem execução. Ele pressionou para que houvesse ação. Ele torceu para que houvesse ação. E ele pôs ação em curso.
A Lei 14.197 de 2021, que define quais são os crimes contra o Estado Democrático de Direito, tem os seguintes artigos. 359-L. “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.” E, 359-M, “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.”
Atentem-se ao verbo. Tentar. Não é fazer. É tentar. Tentar dar um golpe, tentar acabar a democracia, é o crime. Claro, é preciso “emprego de violência ou grave ameaça”. O que quer dizer isso. Esta é a questão que estará perante os ministros do Supremo Tribunal Federal. As provas e as confissões deixam claro que houve tentativa. Os ministros terão de decidir se, quando o presidente da República mobiliza militares incluindo generais da ativa, para impedir a posse de seu sucessor, se isso constitui grave ameaça. Precisarão decidir se o fato de que houve uma tocaia de militares armados com a intenção de assassinar um ministro do Supremo, de que organizaram um ataque que detonou as sedes dos Três Poderes, constitui uso de violência.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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Um: não aconteceu nada. É evidentemente mentira. O general Mario Fernandes confessou e, mesmo que não tivesse confessado, já havia provas fartas. E temos os depoimentos assinados dos comandantes do Exército e da Aeronáutica que confirmaram que foram pressionados pelo presidente da República para dar apoio militar ao golpe. Eles disseram não. O presidente pediu. Gente, é claro que aconteceu.
Três: pensar em cometer, planejar um crime, não é, por si só, um crime. Como é mesmo que a lei define este crime? “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito.” “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.” O crime é tentar. O crime não é conseguir. Sabe por que o crime é tentar? Por uma razão muito, muito simples. Se um golpe de Estado dá certo, a Constituição é derrubada e o Congresso e o Supremo não têm mais poder. Acabou. Não vai ser julgado. O único crime possível de ser julgado é o da tentativa. Se dá certo, os caras que mandam agora.
Então sobra o dois. Tudo o que fizeram era estritamente legal. É o que Bolsonaro falou ao Supremo. Que uns malucos tentaram umas coisas, mas ele não tem nada com isso. Que malucos? A turma acampada em frente aos quartéis e desgarrados como o general Mário Fernandes. Bolsonaro é o velho covarde de sempre. Larga seus aliados pela estrada, deixa gente ferida no caminho, pede que cometam crimes em seu nome e não assume nada. É sempre inocente.
O problema é que ele não tem como negar que a minuta do golpe, ou seja, a ideia de que declarar um Estado de Sítio e um Estado de Defesa no prédio do Tribunal Superior Eleitoral, não tenha passado por suas mãos. Então o que ele diz? Ué, existem as duas ideias na lei brasileira. O Estado de Sítio e o de Defesa. Por que ele não poderia estudá-las? É cínico, mas é cínico.
Qual o objetivo de fazer o Exército tomar conta do prédio da Corte que se responsabiliza por eleições? Só um. Impedir que o resultado das eleições tenham valor. Se um presidente da República, derrotado nas urnas, pensa em fazer isso, organiza gente para arrumar isso, como pode alegar que seu objetivo não é nenhum outro que não interromper o fluxo democrático?
A gente ainda não sabe quando, mas entre setembro e outubro esse julgamento deve acontecer. Pela primeira vez generais devem ser condenados por organizar um golpe de Estado. Um ex-presidente vai na esteira. Estão movendo o mundo para tentar impedir isso. Puseram, até, pressão da Casa Branca.
Mas vai acontecer. Pela primeira vez na história. Sabe, a democracia brasileira não está bem. As relações entre os poderes estão em frangalhos. Nos últimos dez anos tudo foi esticado, desarrumado, desmontado. Todo mundo em algum momento forçou os limites de seus poderes. A coisa ficou completamente desorganizada e não estão mais claros os limites de de Judiciário, Legislativo, Executivo. Essa reconstrução será lenta.
Mas a reconstrução acontecerá porque democracias são assim. Elas precisam de tempo. Precisam, fundamentalmente, que ninguém tente encerrá-las porque não gostou do resultado na última rodada.