Quem ainda quer Bolsonaro?
Eu e a Flávia Tavares entrevistamos, na semana passada, o cientista político Sérgio Abranches. Ele é de longe um dos melhores do Brasil, é o cara que descreveu, lá atrás, a lógica do Presidencialismo de Coalizão. O Sérgio defende uma coisa que poucos no ramo dele estão argumentando: o fim do bolsonarismo já começou. Você pode ler essa entrevista, ela está no site do Meio para todos os assinantes premium. Pode assistir, também, no nosso app de streaming. Sabia que o Meio tem um streaming? Pois é.
Bem, mas como é que a gente encaixa essa entrevista, que publicamos no sábado, com a manchete do mesmo sábado da Folha de São Paulo? Datafolha: Polarização avança, e 76% se encaixam entre petistas e bolsonaristas. Afinal, em que país vivemos? Num em que o bolsonarismo é uma força em descenso, ou estamos num país de forte polarização em que bolsonarismo e petismo mobilizam emocionalmente três quartos de toda sociedade?
Vamos complicar um pouco as coisas? Quaest de julho: 58% preferem que Lula não seja candidato. 62% não querem Bolsonaro. Não é possível, né? Uma dessas pesquisas têm de estar errada. Então vamos pegar o Instituto Ideia. lulista 17%, bolsonarista 12%, tendência à esquerda não lulista 17%, tendência à direita não bolsonarista 26%. Outro instituto de qualidade. Sabe como sabemos que estes três são institutos de qualidade? Uma das razões é que, quando fazem as mesmas perguntas, costumam ter números muito parecidos, quase iguais. E vocês pegaram o truque, aí, não é? Porque, sim, é perfeitamente possível que os três estejam corretos simultaneamente.
Vamos entender o que cada um está medindo? O Datafolha apresentou para os eleitores uma régua de 1 a 5. Pediram pra cada entrevistado se colocar nessa régua dizendo o seguinte: 1 é totalmente bolsonarista, 5 é totalmente petista. Se você não é nenhum, escolhe 3. Quem marca 1 ou 2 entra no pacote “bolsonarista”; 4ou 5, “petista”; 3 é “neutro”. Ou seja, essa régua puxa os simpatizantes para dentro dos rótulos. O Datafolha está tentando capturar um termômetro de identidade e está atribuindo essas etiquetas “petista” e “bolsonarista”. O que o Datafolha não está fazendo é medir quem quer Bolsonaro presidente e quem quer Lula presidente.
A Quest escolheu fazer essa pergunta diretamente. Você gostaria que Lula fosse candidato, gostaria de vê-lo presidente? 58% dos brasileiros disseram não. E 62% não querem nem ver Bolsonaro. O querem longe. Agora, tem um segundo turno, Lula de um lado, Bolsonaro de outro, muitas dessas pessoas vão escolher um ou outro, como o Datafolha mediu. Não quer dizer que estejam felizes com a escolha.
E aí vamos pro Ideia. O Ideia não está querendo saber quem se inclina prum lado ou pro outro. O Ideia quer outra coisa e pergunta diretamente. Ele quer saber o campo ideológico do entrevistado, quer saber se a pessoa é de direita ou de esquerda. Aí, nessa toada, pergunta se essas pessoas sentem afinidade como o principal líder do seu campo. Resultado? 34% dos brasileiros dizem que são de esquerda. O Datafolha informa que 39% são “petistas”. De onde vem a diferença? Da pergunta. Um está perguntando: você é de esquerda? Eu responderia não. O outro está perguntando entre Bolsonaro e Lula, quem você prefere? Eu responderia Lula. Me pergunte se quero Lula candidato? Realmente preferia não. O Ideia também divide esses 34% de esquerda. 17%, metade, reconhecem Lula como seu líder. Os outros 17% são de esquerda mas não são lulistas.
Vamos pro campo da direita: 37% bolsonaristas, diz o Datafolha. 38% de direita, diz o Ideia. Como o Ideia divide? 12% reconhecem em Bolsonaro seu líder, 26% são de direita e não bolsonaristas.
Na boa? Essa pergunta do Datafolha rende uma boa manchete mas não serve de nada para entender o que está acontecendo no Brasil. Ela serve só para dizer que, entre Lula e Bolsonaro, os eleitores de Centro ainda preferem Lula. E isso é verdade. Por isso que é tão importante, para a esquerda, classificar todo o campo da oposição como bolsonarista. Os números de aprovação do Lula estão muito ruins, mesmo que tenham melhorado um pouco nos últimos dois meses. Melhoraram, em grande parte, porque as pessoas lembraram do Bolsonaro. Sempre que o brasileiro médio lembra do Bolsonaro, ele tende a se dividir de um jeito que prefere Lula. Tire Bolsonaro da reta e o jogo muda contra Lula.
Quem está com dificuldades de entender isso? Ora, quem mais: os políticos de direita. Por quê? O Sérgio também falou disso. Vem comigo.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Antes da gente continuar, eu tenho uma pergunta: o que é liberdade pra você? Pra nós, no Meio, é poder discordar sem virar inimigo. E isso só existe numa democracia firme e sem torcida organizada. Nesse momento em que o debate perdeu espaço pra lacração e discursos inflamados, deixa eu recomendar nosso documentário “Democracia: Uma História Sem Fim”. No episódio 1, “A Democracia Não Descansa Jamais”, você vai ver o quanto caminhamos desde a Constituição de 88, que mesmo com tropeços entregou ao brasileiro mais do que outro período da nossa história. Nunca a vida de todos nós melhorou tanto quanto neste curto período de democracia. Quem conta essa jornada? Feras como Miriam Leitão, Wilson Gomes, Christian Lynch, o próprio Sérgio Abranches. Então, quando acabar o programa, abre o streaming do Meio e dá play no episódio 1 porque o episódio 2 já está saindo do forno. Você não vai se arrepender.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Deixa eu ler pra vocês um trecho da entrevista do Sérgio. De novo, no streaming vocês o veem falando com suas próprias palavras:
“Lula manteve a base petista, a base lulista de esquerda e também um alto grau de simpatia de não identificados com a esquerda.” Vocês percebem que é exatamente isso que a gente viu ali no cruzamento do Datafolha, Quaest e Ideia? O Sérgio não estava com nenhuma dessas pesquisas na mão, tá? Aliás, o Datafolha sequer tinha saído e esse lançamento do Ideia foi feito para nós, aqui do Meio. Mas números similares estão em outras pesquisas. Aí ele continua: “Bolsonaro tem um núcleo de bolsonaristas que aderiu a ele e não vai abandoná-lo. Agora, Lula tem uma personalidade política com um espaço tão grande que deixou a esquerda sem lideranças novas. Da mesma forma, não houve renovação de lideranças no campo social liberal por conta do tamanho de Fernando Henrique Cardoso.”
Outra pausa. O PSDB desapareceu. A gente sabe disso. E a esquerda não tem lideranças firmadas para além de Lula. Pode vir a ter, mas será preciso que Lula abra espaço. Lula se tornou tão grande, na esquerda, que tira o ar do ambiente e novos líderes não vingam. A gente também sabe disso. De novo, o Sérgio: “Bolsonaro, não. Ele detonou um processo que eliminou a vergonha de ser conservador e criou essa possibilidade de novas lideranças, que estão disputando o campo da direita. A maioria hoje está fazendo um trabalho pusilânime de continuar dando apoio ao Bolsonaro, como se ele fosse a força decisiva para uma eventual eleição no plano nacional. Não será.”
Posso trazer os números do Ideia, de novo? 26% se dizem de direita, mas não bolsonaristas. 12% se dizem de direita e são bolsonaristas. Às vezes as pessoas acham que cientistas políticos ficam ali, olhando o que os políticos falam, e têm insights estupendos porque, sei lá, leram muitos livros e têm muita experiência. Mas o que o Sérgio está descrevendo é outra coisa. Ele está fazendo o que pouca gente sabe fazer bem: ler pesquisa. Não é que os números do Datafolha estejam errados. Não estão. Mas a conclusão da manchete da Folha está errada. Do jeito que a pergunta foi formulada, ela não ajuda em nada a ler a realidade, a ler o que a sociedade está dizendo. Porque o campo do Centro se inclina ligeiro para Lula se é Bolsonaro do outro lado. Porque o campo da Esquerda se divide em duas metades entre os lulistas e os não-lulistas. E o campo da Direita se divide entre um terço de bolsonaristas e dois terços de não-bolsonaristas. Esses são os fatos. A briga entre Bolsonaro e Lula não representa o que está acontecendo politicamente na sociedade brasileira. Mas a briga entre Bolsonaro e Lula interessa à família Bolsonaro, que tenta se manter viva politicamente e está atacando pesado o Brasil inteiro. Assim como a briga entre Bolsonaro e Lula interessa a Lula, pois este é o caminho que permite se reeleger.
Sabe, esta aqui não é uma leitura trivial de fazer. Não estou dizendo que as boas pesquisas estejam sendo manipuladas. Não estão. Mas, num momento assim complexo, fazer as perguntas certas faz muita diferença. Se você traz um olho viciado pras perguntas que vai elaborar, se já parte de antemão do princípio de que essa briga é uma entre Lula e quem for abençoado por Bolsonaro, aí você traz o que parece confirmar esta tese. Mas só parece.
O grande problema hoje, na direita, é que não são apenas algumas pesquisas que estão trazendo este olhar viciado. Muitos políticos, até bem pouco tempo atrás, estavam convencidos de que o cenário era esse. Eles piscaram uma semana atrás, quando decidiram não embarcar no trio-elétrico do bolsonarismo, em Copacabana e na Avenida Paulista. Pela primeira vez pararam e tiveram dúvidas.
O Brasil quer sair da febre do bolsonarismo. O Brasil inteiro menos uns 12% de nós. Não é que não estejamos polarizados, estamos. Não é que não estejamos divididos, estamos. É só que Bolsonaro não define um dos polos. Somos melhores do que isso. É hora de a gente abrir espaço pra voltar a respirar.