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É hora de Israel parar

Acho que vale voltarmos a falar sobre Israel. Pelo seguinte: eu queria reagir à carta aberta do Bono Fox, vocalista do U2. É uma carta clara, com um argumento bem estruturado, muito informada e principalmente corajosa. A esquerda anti-Israel odiou e a turma que defende o governo Netanyahu odiou. No ambiente atual das redes, em que poucas vozes fora destes dois campos conseguem aparecer, é uma bênção. Mas eu queria reagir, também, a uma carta aberta escrita para mim pela turma do Hasbará Brasil no último dia 31 de julho.

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Existe fome em Gaza. Existe fome do pior tipo. Não é em toda Gaza, tá? É na parte Norte. No centro, o Hamas controla e o Exército de Israel evita entrar pois é onde estão os reféns. No Sul, as condições de vida são uma desgraça, há pouca infraestrutura, mas tem comida. No Norte, não tem. O que está acontecendo ali é o seguinte: a ONU traz comida, mas não consegue entregar por conta do conflito aberto, porque o Hamas é uma peste. Mas a ONU também não quer a proteção do Exército de Israel. É natural. Há episódios demais de soldados abrindo fogo contra civis desesperados tentando pegar a ração do dia.

No final de julho, escrevi uma coluna no Globo sobre isso. Em geral, meu tema ali é tecnologia, mas às vezes vou para alguns outros assuntos que me são caros. A democracia brasileira com frequência, às vezes a crise em Israel. O tom da minha coluna foi o seguinte: fome é inadmissível, a responsabilidade é do governo de Benjamin Netanyahu. É eticamente antijudaico. Essa guerra precisa parar. Com suas ações, Netanyahu é um dos responsáveis pela onda de antissemitismo do mundo. De forma alguma o único responsável, mas é um deles. E mais. Em algum momento, jornalistas profissionais voltarão a entrar em Gaza. As imagens terríveis que vão registrar irão marcar a imagem de Israel para sempre. Prédios, reconstroem-se. As imagens de pessoas em desespero, pele sobre osso, isso fica pra sempre.

A turma do Hasbará escreveu uma longa carta rebatendo minha coluna. Está lá no perfil deles no X, com data 31 de julho. Mas os três argumentos deles são os seguintes: a culpa é do Hamas e da ONU, não do governo de Israel. Os números sobre fome do IPC não são confiáveis. E, por fim, me falta rigor por não checar minhas informações. Pendurados nestes três argumentos resumidos está, essencialmente, o ponto de vista oficial, ora, do governo Netanyahu.

Fiquei na dúvida se deveria responder a eles. Aí decidi não. Mas, ao ler a carta do Bono, decidi que sim. Deveria. Eu sou sionista. Defendo publicamente, há mais de vinte anos, a solução de dois Estados. Yitzhak Rabin está entre meus heróis pessoais na política. E os palestinos pertencem àquela terra tanto quanto os judeus. Alguém precisa falar de paz. Mesmo agora. Principalmente agora. E é preciso que mais vozes que queiram o bem de Israel denunciem o pior governo da história de Israel. O primeiro governo israelense que permitiu um pogrom acontecer, o primeiro governo israelense que escolheu matar dezenas de milhares de pessoas, o governo israelense que escolheu isolar o país do mundo contra o desejo da própria sociedade israelense.

O que a gente precisa responder é o seguinte: para que serve continuar esta guerra?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

De bate-pronto: você lembra sobre o que eram os três últimos vídeos que viu? Difícil, né? É conteúdo demais — e o que mais chega costuma ser lacração e gritaria que nos trancam em bolhas.

Falta acordo até sobre fatos básicos e sobre ganhos que o Brasil alcançou com a Constituição de 88. O Brasil ganhou muito. É aí que entra uma produção original do Meio. Christian Lynch, Miriam Leitão, Sérgio Abranches e Wilson Gomes conectam história e contexto para entender o país que fizemos e o que vem pela frente. Você sai com um novo mapa mental: o que avançou com a nossa democracia, riscos de hoje e caminhos para ampliar o debate sem partidarismo.

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E este, este é o Ponto de Partida.

A primeira coisa que me veio à cabeça, quando li a carta, foi o general Colin Powell. Powell, que foi secretário de Estado americano no governo George W. Bush, falava iídiche fluente e sem sotaque, e foi o mais resistente à invasão do Iraque nas reuniões no Salão Oval. Não à toa, era o general mais experiente por ali. É dele a frase que, na minha opinião, sintetiza tudo que um governante precisa ter em mente quando decide que precisa entrar numa guerra. If you break it, you own it. Se você quebrar a coisa, ela pertence a você. Entra numa loja desajeitado, quebra uma taça de cristal, pague. Ela é sua. Quer invadir um país, destituir seu governo? Tudo certo. Você é responsável pelo caos que vier. Ponto. Israel não provocou a guerra. O Hamas que invadiu Israel, matou mil e trezentas pessoas com requintes máximos de crueldade, e chamou o conflito. O Hamas está preocupado com vidas palestinas? Claro que não. A ideologia do Hamas é do martírio. Se palestinos morrerem às dezenas de milhares e Israel sair derrotada, nem que seja em percepção por parte do mundo, pro Hamas está valendo. Israel poderia ter respondido de muitas maneiras. O governo de Benjamin Netanyahu escolheu responder botando Gaza inteira abaixo. Não é a resposta que a maioria dos generais israelenses queriam dar. Não é a resposta que desejavam todos os políticos israelenses fora do governo. É a resposta do governo Netanyahu. Foi lá, destruiu tudo. If you break it, you own it.

Se há fome em Gaza, a responsabilidade é de quem escolheu o caminho de botar Gaza abaixo. Quem tem a responsabilidade de resolver o problema é Israel.

A turma do Hasbará se queixa de que o relatório do IPC sobre fome, em Gaza, não é confiável porque se baseia em dados locais. E os dados locais vêm dum cenário de caos. Sim, é verdade. O que eles não falam é o seguinte: não é possível colher dados sobre fome em circunstâncias diferentes. É sempre assim quando há fome em vasta quantidade. E é por isso que o IPC tem uma metodologia própria, conservadora, que sempre usa os menores números possíveis. O IPC não é a ONU. É a entidade em que sempre confiamos. Quando houve fome na Somália, na Etiópia dois anos atrás, no Iêmen, no Sudão, a situação era igual. E, na comunidade das nações, quando o IPC levanta o sinal amarelo, nós prestamos atenção. O recado é o seguinte: a situação é séria. Preste atenção, mundo. Esta é a posição ética essencial. É a posição humanista.

A crítica de que ninguém liga para as fomes no Sudão ou na Somália ou na Etiópia é justa. A crítica de que a maioria das pessoas sequer souberam que houve fomes equivalentes ou maiores, também por guerra, nestes últimos anos, no Sudão ou na Somália ou na Etiópia também é justa. Mas ela é justa porque é injusto que as pessoas se comovam com o pesadelo de uns e não com o dos outros. A solução é se comover com todos, mas isso não deixa de fazer com que seja muito justo, até fundamental, nos comovermos com a fome em Gaza. Porque é um pesadelo. Porque é uma crueldade que não se deve infringir a ninguém. Porque se há gente com fome, em qualquer lugar do mundo, é obrigação de todo ser humano agir. E esta é uma obviedade pela ética judaica essencial.

Israel não tem mais o que ganhar com esta guerra. Acabou. Gaza está no chão. O Hizbolá foi eliminado. O Irã tomou uma surra como nunca. O Hamas está reduzido a um exército de meninos de 13 e 14 anos.

Sabe, quando a pequena Haganá foi cercada pelos exércitos de Egito, Síria, Jordânia, Iraque, em 1948, ninguém achava que Israel ia sobreviver. Mas sobreviveu. Quando inúmeros fazendeiros vivendo em tendas e casebres precários precisavam conviver com ataques sistematizados vindos de Gaza, nos anos 50, ninguém achava que Israel daria conta. Mas os casebres viraram casas, viraram cidades. Quando os Estados árabes começaram a se organizar para destruir Israel, em 1967, todo mundo achava que o país ia terminar destruído. Em 1973, quando no dia do Kippur novamente Israel foi invadida, por muito pouco os árabes não tomaram Jerusalém. Foram décadas de fragilidade. Israel é um país que lutou muito para não desaparecer.

E aí, começando com o Egito, os acordos de paz começaram a vir. Israel não é mais indefeso. Pelo contrário. O que esta guerra prova, em definitivo, é que Israel é a maior potência militar do Oriente Médio e do Norte da África. Israel tem o melhor serviço de inteligência da região. Israel não tem rivais. Tem muita gente que não gosta de Israel no mundo, mas ninguém ameaça mais a existência de Israel. Aquele período acabou. Este conflito deixou óbvio.

Países muito poderosos militarmente precisam ser comedidos nas suas ações. É hora de um novo governo, é hora de olhar para o futuro, é hora de priorizar trazer de volta os reféns. É preciso reinstalar, no Knesset, a primazia da ética judaica. É preciso parar de matar. É isto que a sociedade israelense está pedindo. Aí precisaremos começar a voltar a conversar sobre paz. Trazer de volta para a mesa a Arábia Saudita e os outros vizinhos. Conversar sobre instaurar um novo governo, palestino, em Gaza. É preciso reerguer Gaza. E é preciso reconhecer um Estado da Palestina. Começar a conversar com este propósito. O povo judeu, depois de dois milênios, voltou a ter seu país. Está em casa. O povo palestino jamais teve seu país, autônomo, sem um Império dando ordens. Chegou a hora de ter também sua nação.

Nesta guerra, Israel não tem mais nada para ganhar. Só tem a perder.

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