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A conservadora, a liberal, a socialista

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Vocês conhecem Cíntia Chagas? Gente, por favor, uma questão de elegância. Se não conhecem, estão perdendo um dos movimentos mais interessantes ocorrendo nas redes sociais do Brasil neste momento. Só no Instagram ela tem quase 8 milhões de seguidores. Ensina Português, oratória, etiqueta. Fala empostado, pronuncia cada sílaba. Super-popular. A imagem da mulher conservadora.
Cíntia se casou no ano passado com Lucas Bove, do PL de São Paulo. Deputado estadual. Ultrabolsonarista. Daqueles caricaturais mesmo, do tipo que faz arminha em público. Parecia daqueles casamentos perfeitos de rede social. A megainfluenciadora conservadora e o deputado bolsonarista. Só que, casada, ela descobriu uma vida de inferno. O sujeito era controlador, ciúme doentio. Violento. Violência física e psicológica. A um dado momento, chegou a atirar uma faca contra ela. Cíntia denunciou, registrou boletim de ocorrência, conseguiu na Justiça medidas protetivas. Fizeram o divórcio e Bove tratou de garantir sigilo judicial sobre o processo. Só que os detalhes todos vazaram.
Na Alesp, na Assembleia Legislativa de São Paulo, chegou a ser aberto um processo de cassação de Lucas Bove. Foi arquivado na comissão por seis votos a um. Sequer foi avaliado. E, olha, longe de mim passar a mão em Arthur do Val, o Mamãe Falei do MBL. Mas olha o nível de hipocrisia, aqui. Arthur foi cassado porque ficou babando por jovens ucranianas, refugiadas de guerra, em mensagens de áudio com amigos. As mensagens de Zap vazaram, ficou muito feia a coisa, ele foi cassado por quebra do decoro parlamentar na Alesp. Pelo que falou. O outro bate na mulher, quase mata a própria mulher, e o processo é arquivado. Isso é uma loucura. A mais completa degradação da Assembleia de São Paulo, parece às vezes concorrer com a do Rio em decadência moral.
Mas o fato é o seguinte: Cíntia seguiu, lá, sua vida de influenciadora das mulheres conservadoras, recatadas e que querem causar boa impressão do país. E isso quer dizer recitando as coisas que influenciadores conservadoras falam nas redes. A hierarquia do homem no casamento, o horror do feminismo e tudo o mais. Minha amiga Mariliz Pereira Jorge chamou sua atenção, umas três semanas atrás, em sua coluna na Folha de São Paulo. Olha, Cíntia, esse era mais ou menos o raciocínio que a Mariliz estava seguindo, você foi protegida por leis. Leis que existem para proteger mulheres numa situação exatamente como a sua. Leis que existem porque esse tipo de violência contra mulheres ocorre, no Brasil, em todas as classes sociais. É daquelas coisas que não faz rigorosamente nenhuma diferença se vc é rica ou pobre. Leis que existem por causa da luta feminista. Essas leis existem para proteger mulheres, não importa se sejam feministas ou não. Quaisquer mulheres, inclusive aquelas que falam que o feminismo não devia existir. Mulheres como Cíntia. Mas leis que, não fosse o feminismo, não existiriam.
Aí aconteceu. Deu um, dois dias, e a Cíntia gravou um vídeo. Mariliz, você tem razão.
Ontem à noite, com moderação da Júlia Duailibi, Cíntia foi à Globonews participar de algo meio debate, meio conversa, com a futura candidata ao Senado pelo Rio Grande do Sul Manuela Dávila. Foi uma conversa incrível. Sabe por quê? Porque as duas, ali, conversaram de verdade. Estavam preocupadas em apresentar seus pontos de vista tanto quanto estavam em ouvir uma à outra. Cíntia, Mariliz, Manuela. Uma conservadora, uma liberal, uma socialista. Três visões, três concepções de mundo muito diferentes uma da outra. Mas absolutamente capazes de sentar, ouvir, conversar. Reagir honestamente, a partir do seu ponto de vista, ao que a outra diz.
Olha, a Cíntia está sob ataque. Tem gente da esquerda identitária a atacando porque sua “conversão ao feminismo é fake”, porque ela “não sai da personagem”. Tem gente da extrema direita a atacando porque, afinal, agora ela elogia o feminismo, onde já se viu.
Ela é uma influencer. Isso é uma profissão, hoje. Uma profissão de verdade e extremamente dependente do algoritmo. Isso quer dizer o seguinte: não surpreenda. Fale para seu público exatamente o que ele espera ouvir. Não seja original. E mais. Trate o outro lado, não importa quem seja o outro lado, não pelo que ele é. Mas por aquilo que você imagina ser a pior coisa do mundo. Se você é de esquerda, o outro lado é nazista. Do liberal ao Bolsonaro, todo mundo é nazista. Se você é de direita, o outro lado é contra a família. Do tucano mais plácido ao Jones Manuel, todos contra a família.
Então a partir do momento em que ela é uma influencer, ela tinha um problema. Como faz isso? Como, depois de anos fazendo caricatura de feministas, chega e fala algo que seu público não espera ouvir? Como se colocar num lugar em que as influenciadoras de esquerda, do outro lado, tampouco querem te ver lá. As redes são um lugar pra expressar ódio ao outro, não para reflexão. As consequências desse tipo de virada não são apenas cancelamentos, ataques virtuais. É publi, é palestra, o ganha pão depende de consistência na mensagem. As redes não são feitas para quem repensa, quem muda de opinião. As redes não são feitas para reflexão. Para sutilezas. Para democracia.
Noves fora meu profundo orgulho dessa minha amiga que provocou essa conversa, a Mariliz, acho que todos nós devemos um agradecimento às três. À Mariliz, à Manuela mas, principalmente, à Cíntia que fez o movimento mais difícil. Precisamos voltar a conversar, sim, principalmente nós que discordamos uns dos outros. Precisamos de mais gente tendo a coragem da Cíntia. Não é deixar de ser conservadora. Ela não deixou. É se permitir ir prum lugar em que o outro, ou a outra, não é vista mais como inimiga. Mas alguém com quem conversar.
Gente, o problema crucial é o seguinte: democracias são máquinas de produzir consenso. Redes sociais são máquinas de produzir dissenso. É só isso. É tudo isso. Democracia é um bicho difícil porque foi feito para resolver um problema difícil. A gente não quer um tirano e a gente discorda de um monte de coisa.
Com um tirano, com um ditador, a discordância não é um problema. O sujeito lá em cima manda, a gente obedece e pronto. Não gosta? Paciência. Em ditadura, o dissenso se resolve porque alguém se impõe. Mas como a gente resolve sem ditador? Nós criamos instrumentos pra isso. O Parlamento, a Justiça, os espaços de debate público.
Só que, veja, nada disso é natural. O lugar do conforto é o lugar de não ceder. Discordo, não quero, não sou obrigado. Precisa de maturidade, precisa de desprendimento, precisa de coragem pra sentar e conversar com quem se discorda. Mas é uma forma de sapiência, também, porque conversando com quem discorda aprendemos a argumentar melhor, consolidamos de forma mais profunda nossas ideias, e temos uma vida intelectualmente mais rica. Tem um barato em entender o outro.
Quando a gente trocou boa parte da nossa comunicação por uma mediada por algoritmos, tiramos até de parlamentares o incentivo para chegar a acordos. Isso é perigoso, gente boa. Nosso reflexo se tornou calar. Dizer tal coisa tem de ser ilegal. Não pode ser dita. A gente ficou de uma sensibilidade que é um troço inacreditável. Qualquer coisa que apenas vagamente nos incomode não pode ser dita jamais. À direita e à esquerda. Todo mundo acha que o outro lado é censor, afinal nós somos razoáveis, eles é que não.
O identitarismo joga nessa linha. O feminismo tradicional, não. O movimento negro de direitos civis, não. O LGBTQIA+. O problema de termos direitos iguais, oportunidades iguais, segue ali fincado no centro de todas as democracias como o problema essencial por se resolver. Então precisamos conversar mais, precisamos de mais acordos. É preciso chegar a um consenso sobre como será possível convivermos. É disso, gente, que se trata. É isso que democracia é.
Mariliz é incrível. Manuela é incrível. As duas são mulheres que sofreram imensamente nessa máquina de moer carne que é a produção de ódio como produto nas redes sociais. E Cíntia Chagas é incrível. Num momento de fragilidade, foi convidada a conversar. Topou o convite. Neste mundo aqui, conversar de peito aberto é o ato máximo de coragem. E, sabe uma coisa? É só conversa que salva democracia. Democracias não são máquinas de calar, democratas hesitam ao máximo, até o limite, a vontade de calar o que incomoda. Democracias são conversas.
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