Lula, Trump e Milei entram num bar
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Ninguém aqui acha que Donald Trump e Luiz Inácio Lula da Silva se amam, não é? Então vamos começar sendo pragmáticos. A chave está em quatro números. O que aconteceu com as exportações brasileiras para os Estados Unidos em agosto de 2025, primeiro mês do aumento de tarifas? Caíram, e não caíram pouco. 18,5% quando comparado com o mesmo mês, em 2024. O que aconteceram com nossas exportações para lá em setembro? De novo, caíram. Mais. 20,3% comparando com o ano anterior. Então o Brasil se ferrou, não é?
Olha, mais ou menos. Não foi bom. Mas aí entram os outros dois números. A balança comercial brasileira ficou positiva 1,2% em agosto, sempre comparando com o mesmo mês em 2024. E positiva em 12% no mês de setembro. As pessoas no Departamento de Estado sabem fazer conta. O Brasil, 20 anos atrás, precisava dos americanos para ficar positivo nessa conta. Não precisa mais. Produtos como café, como carne, que são os que estão sofrendo maior impacto, encontram rápido outros compradores. Claro, isso não vale para todos os mercados. A indústria calçadista tem muito mais dificuldade, essa busca de novos mercados é mais demorada. Só que isso é uma crise no setor, não no Brasil. É uma crise em Franca, em Sobral, em Novo Hamburgo. Mas não no país.
Veja, o superávit brasileiro seria maior se o comércio com os americanos estivesse normal. Mas vamos ver do ponto de vista do governo americano? Eles têm três desafios simultâneos e que são difíceis de conciliar. O primeiro, ter um superávit comercial com todo mundo. Querem vender mais do que compram. É uma cabeça econômica meio mercantilista, coisa de três séculos atrás, mas tudo bem. Trump é isso. O segundo propósito é vencer a China em inovação e crescimento. A China é seu grande adversário. Essa é uma disputa mais complicada, mas não tem problema. É a meta estabelecida. E, por fim, em terceiro, restaurar a Doutrina Monroe. As Américas, o Hemisfério Ocidental, são uma área de influência de Washington e aqui ninguém tasca.
A gente poderia fazer uma crítica dizendo que Donald Trump pensa comércio com cabeça do século 17, geopolítica com cabeça do século 19, e ainda não entendeu que a disputa com a China não é nem tecnológica, nem comercial. É de eficiência de regime. É se um capitalismo selvagem de Estado é mais capaz de produzir e distribuir riqueza do que uma democracia liberal. Como Trump tampouco acredita em democracia ou liberalismo, bem, seria pedir demais. A crítica não importa. O que importa é o seguinte: assim Trump compreende o mundo. E isso dita como ele compreende o Brasil.
A América pertence a Washington e a China não deve entrar aqui. Tudo certo. O que faz com um país latino-americano do tamanho dos Estados Unidos continentais, com 203 milhões de habitantes, e que mesmo sobretaxado em 50% ainda segue com superávit comercial pelo mundo? Ou seja, um país que não depende muito do comércio com eles? E que, perdendo este comércio, vai evidentemente começar a consolidar mais mercados para seus produtos na Ásia? Principalmente na China? Bem, de duas, uma. Ou entra em guerra para subjugar, ou negocia. Não tem outro caminho.
A conversa de Trump com Lula é simplesmente isso. O comércio brasileiro sofreu um baque com a perda de 20% de suas vendas por causa das tarifas Trump. Mas a consequência maior da punição não é ferrar com a economia brasileira, é forçar uma aproximação do nosso país com a China. E não esqueçam de um dado fundamental nessa equação: eles têm superávit. A conta de quanto compramos e quanto vendemos para os caras é negativa para nós.
Então vira um raciocínio que é mais ou menos assim: quanto custa gostar de Jair Bolsonaro? Quanto custa fazer um favor pessoal utilizando-se do peso total da economia americana? No fim desse redemoinho todo, é isso.
Numa mão, sacrificar a relação com a maior economia da América Latina, portanto a peça mais importante para reinstalar a Doutrina Monroe. Essencialmente convidar a China a ocupar esse espaço no coração de sua “área de influência”, com as aspas devidas do delírio trumpista. Na outra mão, fazer um favor para o compadre Jair Bolsonaro, sacrificando sua visão de mundo ideal.
Desculpe Bolsonaro, mas dessa vez não deu. É que o favor sai mais caro do que essa Casa Branca aí está disposta a pagar. Mas isso não é para a esquerda achar que está tudo céu de Brigadeiro para seus planos eleitorais. Porque vocês viram as eleições argentinas? Pois é. Tem isso também e não é um detalhe. Ali tem recado para o Brasil. Vem comigo.
Vamos entender o que Javier Milei fez? Em dezembro de 2023, a inflação anual argentina estava em 211%. Inflação, neste nível, é uma desgraça e as maiores vítimas são os mais pobres. Sabe aquela coisa uma inflaçãozinha não faz mal a ninguém da Dilma? Pois é. A esquerda desenvolvimentista acredita nisso. E 40% dos argentinos estavam abaixo da linha da pobreza. Desemprego, 5,7%. Que não é ruim. Mas entenda-se isso no contexto de 40% da sociedade muito, muito, muito pobre.
Milei chegou e saiu cortando gastos do governo como quem não vê o amanhã. Os salários foram achatados, a moeda despencou, a inflação foi no chão. Por uns meses, os números todos ficaram muito ruins, o número de muito pobres aumentou, mas aí as coisas reassentaram. Abaixo da linha da pobreza, hoje, 38%. Quase a mesma coisa. Indigência, ou seja, fome, caiu de 12% para 8%. Não é irrelevante, não é gigante. Desemprego aumentou para 7,9%. Mas, de novo, num contexto em que há menos fome e um tico menos de pobreza. Os funcionários públicos perderam 15% do seu poder de compra, o argentino médio perdeu 6%.
A vida na Argentina está apertada e difícil, embora as contas públicas tenham melhorado bastante. O governo está sem caixa e acaba de ganhar uma bóia de salva-vidas de Donald Trump. Vai ser suficiente para cruzar o deserto e sair com uma economia capaz de retomar o ponto em que já esteve lá atrás? Não. Mas ontem, nas áreas mais de esquerda, mais tradicionalmente peronistas, mesmo nelas o partido de Javier Milei venceu. O que os argentinos estão dizendo nas urnas é o seguinte: o caos que o peronismo fez com a economia foi tão grande, destruiu a vida de tanta gente, que eles continuam achando que o sacrifício agora vale a pena. Os argentinos preferem Milei à volta do desenvolvimentismo. Isso é um trauma muito profundo.
O que isso tem a ver com o Brasil? Em 2015, no pior momento da crise econômica de Lula e Dilma, a dívida bruta do governo estava em 65,5% do PIB e a taxa básica de juro em 14,25%. Vamos entrar em 2027, no governo Lula quatro, se ele for reeleito, com uma dívida bruta de 82 a 84% do PIB. Este é um indicador muito pior. O juro, possivelmente, estará um cadinho menor, com alguma sorte, se tudo der muito certo, ali pela faixa dos 12%. Mas depende muito de quanto o governo pretende gastar no ano que vem, que é eleitoral. Não estaremos, em 2027, numa recessão. O PIB deve crescer timidamente. Em 2015 estávamos com PIB negativo.
Tem duas contas pra prestar atenção. O governo precisa muito ou cortar gastos ou arrecadar mais. Esse governo não acredita em cortar gastos, então precisa combater sonegação e aumentar imposto em algum lugar, de algum jeito. O Congresso não vai deixar, né? E qualquer crise aqui ou lá fora que faça o dólar fugir, que faça o real desvalorizar, mexe com a taxa de juro, com a Selic, que faça subir um ponto, Deus me livre dois, a dívida pública explode. E vamos dar uma real aqui. O mercado aposta que Lula vai perder, isso está segurando dólares aqui dentro. Uma vitória de Lula fará muito investidor estrangeiro sair do Brasil. Estamos a um fio de uma crise seríssima.
Se acontece uma crise econômica séria nas mãos de Lula já no início de seu quarto mandato, com um Congresso pesadamente de direita, e sua popularidade despenca, com que cenário ficamos? O que acontece? Um pedaço grande da esquerda não acredita em responsabilidade fiscal, não de verdade. Fernando Haddad está sozinho neste governo. Qual é a lição da Argentina?
Bem, os argentinos perderam poder de compra com Javier Milei. E, ainda assim, foram ontem para as urnas e votaram em massa nele. O trabalho que a esquerda terá para se reerguer, no nosso vizinho ao Sul, será imenso. E se ocorrer de nos próximos anos a economia argentina começar a se recuperar, sem inflação, com enriquecimento real da população, aí é uma década por baixo de direita no poder.
As notícias no front americano são promissoras e o declínio do bolsonarismo parece ter se estabelecido. É uma ótima notícia não só para a esquerda, para todos nós brasileiros. Mas Milei está ali acenando. Eu sou você, amanhã.


