Como começa a desinformação
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Você paga por jornalismo? Isso aqui não é uma propaganda da assinatura premium do Meio, não. A maioria das pessoas não entende claramente a relação entre jornalismo e democracia. E, no entanto, um não consegue viver sem o outro. Três quartos dos brasileiros não pagam por jornalismo. É muita gente. Nossa democracia não está bem, está radicalizada, volátil. Perdemos a capacidade de conversarmos quando discordamos. Isso tem muito a ver com a maneira como nos informamos.
A gente pediu ao Instituto Ideia que incluísse perguntas sobre a maneira como os brasileiros se informam numa das suas rodadas de pesquisa. Para entender. E olha que interessante. Os pesquisadores vão lá e perguntam para as pessoas. Como é que você se vê politicamente? De esquerda, de centro-esquerda, de direita, de centro-direita? E elas respondem. Tem gente que se vê de um jeito, de outro, tem gente que não sabe bem. Tudo certo. A maneira como direita e esquerda se informam é completamente diferente.
Para pessoas de esquerda, televisão é claramente o principal meio de se informar. TV aberta e TV por assinatura, GloboNews, CNN, por aí. Quase metade dos brasileiros que se entendem de esquerda usam a TV, jornalismo o mais tradicional, como principal meio de informação. Para a direita é bem mais dividido. O principal meio de informação, para 36%, são as redes sociais. A gente vê claramente, perante os números, que existe uma fragmentação muito maior na maneira como brasileiros de direita se informam. E olha que interessante. WhatsApp e Telegram, os apps de mensagem, são o principal meio de informação para 9% das pessoas de direita. É bem acima da média nacional. E são o principal meio de informação para 4% da esquerda. É menos da metade. Não estou, aqui, entrando no mérito do que é bom ou ruim. É o que é. A esquerda entende o Brasil pelas lentes do jornalismo tradicional. A direita, pelas redes e serviços de mensagem.
Mas sabe quem mais paga por jornalismo no Brasil? A direita bolsonarista. Sim, porque a gente consegue dividir esquerda e direita em dois blocos. A direita bolsonarista e a não-bolsonarista, a esquerda lulista e a não-lulista. Fazemos isso usando vários indicadores. Como avalia o governo, em quem votou na última eleição, em quem gostaria de votar na próxima. Existem esses quatro grupos muito nítidos. É claro que eles se juntam no segundo turno, as duas direitas e as duas esquerdas. Mas 21% dos bolsonaristas pagam por jornalismo. E 16% das pessoas de esquerda pagam.
Parece incongruente, né? Afinal, por um lado, a esquerda como bloco parece se informar com mais método. Tira aquele momento do dia para sentar e entender o que está acontecendo no Brasil e no mundo e escolhe fazer isso com jornalistas treinados profissionalmente. Com marcas que existem há décadas e cuja história é amplamente conhecida. A direita, não, seus hábitos se espalham por toda parte. Redes sociais no topo, depois TV, sites, usam Zap pra caramba. Mas quando você pega a turma que queria muito poder votar em Jair Bolsonaro para presidente já no primeiro turno da eleição do ano que vem, os mais dedicados, eles são os que mais pagam por jornalismo no Brasil. Não é muita gente. A direita bolsonarista-raiz representa 12% de todo o eleitorado. A direita não-bolsonarista são 26%, mais que o dobro. Mas você pega esse núcleo hiper-bolsonarista, e todo mês um pedaço grande deles tira dinheiro do bolso e paga por jornalismo.
Isso tem causa e tem consequência. A consequência é a seguinte: se você quer ter um negócio de jornalismo digital, no Brasil, se quer fazer dinheiro, contratar gente, produzir muito conteúdo, a maneira mais fácil de fazer é falando o que os bolsonaristas querem ouvir. Já se perguntou por que os sites bolsonaristas são muito mais consolidados, profissionais, muito mais estruturados do que todos os outros? Por que tem uma quantidade maior de conteúdo bolsonarista profissionalmente feito do que todo o resto? É porque os bolsonaristas pagam. Existe um mercado. Gente, Brasil Paralelo. Para citar um exemplo entre muitos.
A causa também é simples de explicar. A visão de mundo bolsonarista é tão distante da visão do brasileiro médio, da visão mainstream, que o jornalismo tradicional simplesmente não entrega aquilo. Mesmo que um veículo grande quisesse ter um ou dois comentaristas bolsonaristas, o contraste seria impossível de evitar. O debate começa não na análise do problema mas nos fatos. Bolsonaristas simplesmente não compartilham da mesma compreensão da realidade. Nem os fatos, nem a leitura mais básica da história do Brasil, nada disso é compartilhado. Então você precisa construir tudo do alicerce pra cima. Do zero. Dos documentários às reportagens às análise política do dia, tudo precisa ser feito para haver um ecossistema completo de informação que retrate o mundo que o bolsonarismo escolhe enxergar. E isso é feito porque existe mercado.
Nenhum grupo está mais disposto a pagar por jornalismo do que o grupo mais desinformado da sociedade. O resultado é que aprofunda sua desinformação. Ué. Claro. Constrói-se para eles, que querem pagar por isso, uma realidade paralela inteira. Mas isso quer dizer, também, que o jornalismo profissional despenca de qualidade. Porque tem menos gente disposta a pagar por isso.
Aliás, se a gente volta parquela divisão, esquerda lulista, não-lulista, direita bolsonarista, não-bolsonarista, sabe qual é o segundo grupo mais disposto a pagar por jornalismo em toda a sociedade brasileira? A esquerda lulista. 19%. Se o maior dinheiro está nos bolsonaristas, o segundo maior dinheiro está nos lulistas, que tipo de jornalismo vai existir na internet brasileira? A realidade paralela do bolsonarismo e um jornalismo que acorda e adormece elogiando Luiz Inácio.
Agora sai aqui do Meio. Começa a navegar pelo YouTube, pelo Instagram, TikTok, pelos sites de notícias. Passeia por quase todo o jornalismo que se faz fora das empresas tradicionais. Vocês sabem disso. Vocês conhecem isso. Vivem isso. Todos nós vivemos. 90% do que vão encontrar é jornalismo que vive de elogiar Lula e jornalismo que vive no mundo paralelo bolsonarista. Por que isso acontece? Porque é onde está o dinheiro.
Os brasileiros que escolhem não pagar por jornalismo são justamente aqueles 70% que não fazem parte nem de um grupo, nem do outro.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
É, eu sei. O Ponto de Partida hoje está parecendo uma grande propaganda que diz “assine o Meio”. Eu pensei muito sobre se devia tratar desse assunto. Mas nós, na imprensa, falamos pouco demais sobre jornalismo. E, numa tempo tão preocupado com desinformação, falamos pouco demais sobre a máquina que sustenta desinformação. A verdade é que, coletivamente, as pessoas estão menos dispostas a pagar por informação. Estão menos dispostas ainda a pagar por informação que gere atrito. Que não confirme suas crenças. Porque é isso, né? Se quem mais paga é quem deseja ouvir a confirmação de que a fantasia distópica bolsonarista é real ou quer torcer muito por Lula, o resultado é que paga-se por um jornalismo que se confunde com propaganda. É um jornalismo confortável, mas não é um jornalismo que realmente debata. E a decisão de cada um, individualmente, de não pagar pelo tipo de jornalismo que deixe a gente desconfortável a toda hora, que não desafie nossas crenças mais consolidadas, tem impacto real. A crise da democracia é uma crise de informação e falta de debate. Trocamos debate de ideias por bate-boca nas redes. E você? Já assinou o Meio?
Este aqui é o Ponto de Partida.
Nesse último fim de semana, em São Paulo, nós celebramos coletivamente a memória de Vladimir Herzog. Quando o Vlado morreu, eu ia completar um ano de idade. Exatos 50 anos atrás. Não o conheci, claro. Mas tomo a liberdade de chamá-lo de Vlado porque eu o conheceria se fosse vivo hoje e trabalhasse, como trabalhava, na TV Cultura. Nós jornalistas nos conhecemos todos. Não é muita gente. Ele foi morto após muita tortura nos porões do DOI-CODI.
Uma ditadura, sabe, precisa de propaganda. Não precisa de jornalismo. É por isso que nas redações, 50 anos atrás, havia censores do governo decidindo o que podia ser publicado, o que podia ir ao ar, e o que não podia. Porque, numa ditadura, você precisa de um tipo muito específico de mensagem dirigida a todo mundo. O país está uma maravilha, mas temos inimigos internos e externos muito perigosos e o combate é necessário. Tudo de ruim é culpa deles. Se dependesse do governo, a vida era um mar de rosas.
Democracia é um tipo muito diferente de sistema. Em democracia, todo mundo, de tempos em tempos, tem de se postar perante uma urna e fazer escolhas. Não votamos em pessoas, votamos em ideias. Votamos em uma visão de mundo, em uma tese a respeito de quais os problemas, quais as causas, e por que caminho devem seguir as soluções. A gente só tem como fazer isso se existir jornalismo diverso na sociedade. Muitos veículos que carregam em si muitas visões distintas. Se a gente não é exposto ao melhor argumento de cada lado, não temos como chegar a conclusões.
A gente tem cada vez menos essa ferramenta essencial na democracia brasileira. Quatro em cada dez brasileiros dizem que a TV foi seu principal meio de informação nas últimas 24 horas. Ali ainda se sustenta um jornalismo profissional. Mas e os outros seis de dez? O segundo veículo mais usado, encostando na TV, são as plataformas sociais. Aí entram Instagram, TikTok, YouTube. 33% dos brasileiros dizem que as redes foram seu principal meio de informação. 33% pras redes, 39% pra TV. O empate está chegando.
Veja, eu sou sócio de um veículo jornalístico digital. Deveria estar celebrando. Oba, em alguns anos vamos ser maiores do que a televisão. Mas, não, se continuar nesse ritmo a notícia não é boa. A maior parte do jornalismo que se produz para as plataformas sociais é essencialmente torcida para um dos lados. Não estou dizendo que é igual ditadura, porque tem variedade, tem de direita e tem de esquerda. Mas é um jornalismo que incita a guerra, que faz o elogio do seu grupo e ataca os inimigos lá fora.
Isso acontece porque as pessoas que não estão nas torcidas organizadas dos grupos políticos escolheram não pagar por jornalismo. Sabe, é oferta e demanda. Tem demanda por jornalismo que elogia Lula todo dia? Vai ter esse jornalismo. Vão fazer umas criticazinhas de vez em quando, “não escolheu uma mulher pro STF”, essas coisas. Mas é 95 elogio e 5 crítica para parecer, ora, crítico. Tem demanda para jornalismo que recrie a realidade do zero para a turma da camisa da Seleção? Vai ser oferecido também. Se quase ninguém paga por algo diferente, não tem algo diferente. Ou tem muito pouco. A desinformação começa assim.


