A Lei Antifacção é boa
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A Lei Antifacção, que a Câmara dos Deputados aprovou ontem e o Senado vai encarar, não é ruim. Ela também não vai resolver o problema da criminalidade urbana, tá? Mas, olha, a que o Planalto mandou também não iria. Só que o ponto é o seguinte: a lei é melhor do que o que tínhamos antes. E, pra entender bem essa lei, para entender seus efeitos, a gente tem uma felicidade. Saiu também essa semana a pesquisa do DataFavela, organizada pelo Preto Zezé, que apresenta um panorama dos brasileiros que vivem do crime nas comunidades do país como jamais tivemos. Tem um monte de lição ali se quisermos ouvi-las.
Vamos começar pelo básico. O que a lei diz. Ela começa criando um tipo penal novo, o “domínio social estruturado”. Ou seja, ele acontece quando três ou mais pessoas, ligadas a uma organização criminosa ou a uma milícia, usam de violência para controlar um território. Ou para impor controle sobre determinadas atividades econômicas. Vocês entendem: Gatonet, luz, distribuição de gás, vans. Ou então usam violência para atacar alguma infraestrutura essencial. Ônibus, metrô, energia, mesmo prisões.
Em essência, a lei reconhece que formar uma máfia, como as da Itália ou dos Estados Unidos, como acontece hoje no Brasil com Comando Vermelho, com PCC ou as milícias, é um crime próprio. Ter este reconhecimento, por si, já é um grande ganho.
Aí a lei cria outro tipo penal. O do favorecimento do domínio social. Quer dizer, quem ajuda. Presta serviços, dá abrigo, fornece informação, guarda armas ou explosivos. Não tem esse nome, mas é o crime de associação mafiosa, que todos os países que venceram máfias tiveram de formalizar em seus códigos.
Vai além nos agravantes. Se você exerce comando nesta associação, aumenta a pena. Se é sua função obter recursos para a associação, aumenta a pena. Se você é um funcionário público, um PM, um bombeiro, e participa, sua pena é maior. Se constrói ligações com outras organizações criminosas, no Brasil ou no exterior, também aumenta a pena. E, olha só, também aumenta a pena se você buscar vantagem econômica com garimpo ilegal ou exploração ilegal de florestas.
Nada disso, a penetração na estrutura do Estado, o intercâmbio com o ataque à Amazônia, nada disso estava claramente numa lei. Agora, está. E é bom que esteja. Mas vamos seguir.
Um juiz passa a poder bloquear, já no inquérito, ou seja, antes de uma condenação, antes mesmo de começar o julgamento, qualquer bem ligado aos crimes que estão sendo investigados. Imóveis, veículos, contas em banco, criptomoedas, participação em empresas. Até empresas inteiras. Então se um fundo na Faria Lima estiver limpando dinheiro, o juiz pode simplesmente bloqueá-lo. Pode bloquear acesso a crédito e a pagamentos, a quaisquer plataformas digitais. O confisco é antecipado. É um bocado de poder na mão da Justiça. E, olha só, mesmo que não aconteça uma condenação da pessoa, o juiz pode apreender quaisquer bens se for comprovada a origem ilícita. O confisco pode ser feito de quaisquer bens incompatíveis com a renda declarada do condenado nos cinco anos anteriores ao crime. Inclusive se estiver em nome de terceiros. E inclui na conta responsabilidade solidária de sócios e herdeiros.
Não é uma lei ruim. É bom que a gente a tenha. Mas, então, por que não resolve o problema? Olha, o mundo é mais complicado do que isso, então vamos lá. Vem comigo.
O problema da lei é que ela parte do seguinte princípio: se a pena for dura o suficiente, as pessoas não vão cometer o crime. Basta ter medo de ficar tempo demais na cadeia, de ferrar com a vida de filhos e netos. Só que não é assim que funciona na vida real.
A pesquisa do Datafavela conversou com quase quatro mil pessoas que trabalham no crime em favelas de 23 estados do país. Gente do PCC, do Comando Vermelho, dos grupos menores. Por que as pessoas entram no crime? Para fazer dinheiro. A maioria é soldado, é olheiro, avião. São jovens, estão armados e bem mais que a metade ganha até três mil e quinhentos por mês. Mais da metade já passou pela cadeia. E, hoje, como está hoje, o Brasil precisa de 200 mil vagas nas cadeias. Vamos prender mais gente e por mais tempo? Bem, começa assim. Precisamos construir muito mais presídios.
Veja, esses jovens já passaram pela cadeia. Na cabeça deles, o destino é um de dois. Ou morte cedo ou prisão novamente. Eles não acham que terão um destino diferente. Na cabeça deles, a pena aumentar não muda nada. Porque, veja, não é só que mais da metade dos entrevistados já foi presa. Mais da metade têm parentes presos ou que foram presos também. Percebe o ciclo? E, olha, eles passam uma boa parte dos dias drogados. Metade não completou o Fundamental. 7% não têm qualquer instrução formal. Só 13% têm ensino médio completo. Vivem drogados, têm pouca instrução, a vida que conhecem inclui violência e morte e cadeia. Não quero dar uma de gente de esquerda que passa a mão na cabeça de facínora, não, tá? Mas isso aqui que a gente tem é um problema social. Podemos prender mais. Devemos prender quem comete crimes. É só que a lei parte do princípio de que, se prender e prender por tempo o suficiente, resolve. Não resolve. Não resolve porque o medo de ser preso e ser morto já existe e não impede ninguém de estar nisso hoje.
E tem outra coisa que a gente sabe, tá? É nas prisões que PCC e Comando Vermelho se estruturam. As prisões fazem parte da mecânica de poder destas organizações criminosas. Seria ótimo se fosse fácil resolver prendendo, é só que o tipo de cadeia que temos fortalece as facções. Não as enfraquece.
Então como resolve? Bem, vamos lá. 68% dizem que não têm qualquer orgulho do que fazem. 84% dizem que não querem os filhos seguindo o mesmo caminho. Insônia, ansiedade, depressão. Se queixam de tudo e é fácil imaginar que é assim mesmo, né? É uma vida desgraçada e é como um vício. O sujeito entra e não sabe como sair. Entra no ciclo. E ele ganha muito mal. Quem acha que é uma vida de namoradas, tênis da moda e ser celebridade no morro, para a maioria deles não é nada disso. Que tipo de profissão tira seu futuro, põe a chance de você morrer jovem lá em cima, te mantem em estresse absoluto 100% do tempo e te paga dois salários mínimos por mês? A maioria diz que o dinheiro acaba antes do fim do mês, tá? 58% dizem que deixariam o crime se tivessem oportunidade econômica. É só que eles não acreditam que vão conseguir emprego. E, se conseguirem, não acreditam que vão manter o emprego.
Vocês perceberam a armadilha da lei? O deputado Guilherme Derrite veio de São Paulo com um projeto ruim debaixo do braço. O governo pressionou, o Parlamento trabalhou, no final saiu um projeto direito. Ele entende as falhas que a legislação tem hoje. Ele não chama nosso problema de máfia, mas tipifica o crime, ataca a organização e vai no dinheiro. O problema que fica é o seguinte. Ele não resolve a base. Enquanto as favelas do Brasil não tiverem economias saudáveis, capazes de gerar oportunidades reais, de criar negócios capazes de pagar dois salários para quem mora lá, não vai ter resolvido.
E isso acontece de duas maneiras principalmente. Uma é o Estado reocupando o território. Não adianta subir e matar. Os soldados são repostos, gente. Também não adianta subir e prender só. Os soldados são repostos. A polícia não tem de subir o morro. A polícia tem de estar no morro. Todo dia. Como está em Ipanema, como está em Higienópolis ou no Plano Piloto. A polícia tem de estar lá, o posto de saúde tem de ter médico, precisa agência do Itaú, do Bradesco e do Banco do Brasil. A concessionária pública de luz precisa poder cobrar uma conta. A banda larga tem de ser de uma empresa normal, com CNPJ. As pessoas precisam ter título das suas casas e precisam pagar IPTU. E, olha, a escola pública vai precisar começar a educar direito, tá? A gente universalizou acesso ao ensino, toda criança na escola, nos anos 1990. O passo seguinte era melhorar educação. Melhorou traço. Não pode. Muitos países resolveram seu problema de educação em menos de vinte anos. Estamos há quase trinta desde a universalização do acesso e ainda não conseguimos ensinar direito as crianças pobres do país.
Ah, mas é complicado. Claro que é. O problema do Brasil é que resolver é complicado. Mas, enquanto a favela estiver à parte da cidade, será complicado. Cidades têm bairros pobres. Isso é normal em qualquer lugar do mundo. Mas favelas não são bairros pobres, são pedaços à parte das cidades. Tem de integrar a favela à cidade, tem de integrar as pessoas da favela ao pedaço da sociedade que tem direito a sonhar. Enquanto não fizermos isso, vai ter violência, vai ter barbárie. Porque, como sociedade, não conseguimos criar um ambiente em que um grupo de jovens olhem para o futuro e achem que tem uma chance de haver uma vida melhor. O diabo dessa frase, “ter direito a sonhar”, é que ela parece poesia barata. Não é isso. Se você acha que você não tem qualquer chance de ser médico ou engenheiro ou astronauta, quando tem cinco anos, a vida é ladeira abaixo. Se tudo o que você tem é tio preso, pai ausente, primo trabalhando de vapor. Esse é o tamanho do mundo para você. O que a pesquisa do Datafavela está dizendo é isso. Esses rapazes trabalham por muito pouco arriscando tudo. Eles não acreditam que vão manter qualquer emprego. E periga ser verdade. Aos 16 anos, eles já sequer se veem como parte com qualquer chance no mundo. Eles não entendem a possibilidade de outra vida. O Preto Zezé está falando isso pra gente faz quanto tempo? Dez anos? Quinze? Vinte? A gente vai parar pra ouvir quando?
A lei Antifacção não é ruim. Ela está bem direita. Ela é necessária. Mas ela não é nem próximo do suficiente para resolver o problema.


