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A PEC da Blindagem do Supremo

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O que o ministro Gilmar Mendes fez, hoje, é perigosíssimo. Ele colocou o Brasil na antessala de uma crise constitucional. Mas, antes de explicar qual é o problema em sua decisão, vamos deixar clara as consequências. O que é uma crise constitucional? É o momento em que um dos três poderes diz que vai fazer x. O outro diz que não pode fazer x. E a Constituição não deixa claro quem desempata o jogo. Ou seja, um ou dois dos três poderes foi tão no limite da sua autoridade pela lei que não está mais claro, pela Constituição, como resolver o problema. Ou um dos dois volta atrás ou só há solução fora da Constituição.

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Nós nunca vivemos, na Nova República, uma crise constitucional. É de responsabilidade de quem está no comando dos três poderes nunca levar o país sequer próximo deste lugar. Hoje, Gilmar Mendes deu este passo. Importante deixar uma coisa clara, aqui. Esta não é uma discussão sobre direita ou esquerda. Não é uma discussão sobre o que queremos e o que não queremos. É o puro reconhecimento de que um Estado Democrático de Direito tem regras. A sobrevivência de uma democracia depende, antes de tudo, de que todos nos três poderes não cruzem a linha do limite de seus poderes. Foi o que Gilmar fez, hoje. O jeito é torcer para que o pleno do Supremo ponha um freio na marcha de insensatez.

O que Gilmar fez? Tomou uma decisão afirmando duas coisas. Primeiro, que impeachment de ministro do Supremo só pode ser pedido pelo procurador-geral da República. E, segundo, que o quórum para aceitar o pedido de impeachment passa a ser de dois terços, no Senado. Por que ele fez isso? Porque os bolsonaristas querem eleger uma legião de senadores, no ano que vem, para fazer o impeachment de ministros. Então Gilmar decidiu mudar a lei que vale há 75 anos para não deixar. Três quartos de século. Olha, a gente fez o impeachment de dois presidentes da República e um governador do Rio, com esta lei. Com esta regra. A mesma regra que, agora, Gilmar decidiu que a Constituição não permite usar. Sim, porque a lei dos Crimes de Responsabilidade, a 1079 de 1950, é a mesma para presidente, para governador, e para ministro do Supremo. Segundo ela, quem pode pedir o impeachment é qualquer cidadão brasileiro. Eu, você, o pipoqueiro na esquina. E, para o Senado aceitar avaliar o caso, basta maioria simples. Metade mais um. É o que diz o artigo 47 e o que diz o artigo 54. A lei diz isso claramente em dois artigos diferentes. Para condenar ao impeachment precisa de dois terços. Mas é depois. Com uma canetada, Gilmar decidiu que a lei, com seus três quartos de século, já amplamente usada para condenar na Constituição de 1988, não vale mais. Ou, vale pros outros, pra ministro de Supremo é que não.

Vamos entrar nos argumentos do ministro mas, antes de tudo, é importante atacar o argumento que está posto nas redes. Um é que não pode, a direita, ter esse poder. O outro é que liberais como eu se apegam demais às regras e deixam de se preocupar com o que realmente importa.

Gente, primeiro de tudo. A gente está defendendo o quê? É a democracia? Bem, se a sociedade eleger uma maioria de senadores de direita dispostos a fazer o impeachment de algum ministro do Supremo, isto é democracia. Cabe, numa democracia, à esquerda fazer uma de duas coisas. Um, eleger muitos senadores. Ou, dois, garantir a reeleição de Lula. Aí, perante o impeachment, quem indicará seu substituto é um presidente de esquerda. Agora, se a sociedade brasileira votar em senadores com essa disposição e num presidente de direita, me explica exatamente que democracia é essa que está sendo defendida? Democracia só vale quando a esquerda ganha? Não, né? Em algum momento as pessoas de esquerda precisam lembrar que democracia é uma competição de persuasão. É preciso convencer as pessoas de que seu caminho é melhor para ganhar os votos.

E aí entra o segundo ponto, o mais perigoso. A esquerda representa um terço dos votos brasileiros. A esquerda é minoria. Pesquisa do Ideia, pesquisa da Quaest, mais recentemente da More in Common. Uma pesquisa após a outra mostra que a esquerda representa um pouquinho mais de um terço do eleitorado brasileiro. A esquerda é minoria. As regras, na democracia, servem para proteger a minoria. Defender que ninguém viole as regras que temos, que ninguém saia tomando decisões com base no momento político ao invés de nas regras, sair mudando as regras o tempo todo, no longo prazo, ferra com a esquerda, não com a direita. Se tivermos um impasse constitucional ali na frente e a Constituição for violada, estamos na antessala do golpe. Eu apresento pra vocês neste segundo a lista dos presos e mortos da Intentona Comunista de 1935 e das tentativas de guerrilha contra a Ditadura, nos anos 1970. Quem dá golpe, no Brasil, é a direita. A esquerda não tem apoio popular o suficiente para instaurar um regime fora da Constituição. Quem faz ditadura, no Brasil, é a direita. Jogar dentro das regras, ser intransigente com as regras que dão estrutura à democracia, é uma proteção para a esquerda.

Se a esquerda começa a aplaudir coisas como o que o ministro Gilmar está fazendo agora, que é violar o Estado de Direito, o que toda a história do Brasil diz é uma coisa só: nesse campo, fora do Estado Democrático de Direito, quem ganha é sempre a direita. É melhor perder dentro das regras, e manter as regras de pé, do que ganhar uma vez fora das regras. Porque isso tensiona o jogo e não é nenhum progressista que ganha esse campeonato. O recado, para os eleitores de direita, será o seguinte: pelo voto, não adianta ter maioria que a gente não consegue nada. Então tem de ser fora do voto. Escapamos por pouco, em 2022. Que loucura, que irresponsabilidade, criar novamente um ambiente para fomentar esse clima no Brasil.

Gilmar Mendes fez três coisas. Primeiro, afirmou que, quando trata de ministros do Supremo, a Lei dos Crimes de Responsabilidade põe em risco a independência do Judiciário. Bem, a independência de cada um dos três poderes é uma cláusula pétrea. Quer dizer, nem uma Emenda Constitucional pode mudar. Então, se qualquer cidadão puder pedir o impeachment de um ministro do Supremo e se bastar metade mais um dos senadores para aceitar a abertura do processo, então todo o Poder Judiciário está ameaçado. A partir daí ele diz que só quem pode pedir a abertura desse processo é o PGR e muda o quórum para autorizar a abertura.

Qual o problema? Começa com o artigo 52 da própria Constituição. Compete privativamente ao Senado Federal: processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles. Aí, processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade. De cara, Gilmar está dizendo que este artigo é inconstitucional. De novo, é com este artigo da Constituição e esta Lei de Crimes de Responsabilidade que fizemos o impeachment de Collor e de Dilma. Se Gilmar está certo agora, os dois impeachments são inconstitucionais pois responsabilizar o Poder Executivo é botar em risco sua independência.

É o Supremo dizendo que ele, Supremo, escolhe como será julgado. Não é assim em nenhuma Democracia Liberal do Planeta.

O que ele está fazendo, em segundo plano, é exigir que o impeachment de ministros do Supremo siga o rito de uma ação penal comum. Nos dois impeachments, de Collor e de Dilma, o Supremo sempre considerou que cidadãos comuns poderiam pedir a abertura do processo. Nunca ninguém sequer sugeriu que não fosse do Senado a responsabilidade pela condução deste processo. Porque impeachment não é, e o Supremo jamais considerou que fosse, uma ação penal comum. Gilmar Mendes está inventando uma autoridade para o Supremo que não existe. Ele não está interpretando uma lei, não está interpretando a Constituição, ele está inventando uma lei nova que jamais foi aprovada pelo Congresso.

A base, o princípio de Montesquieu da independência dos três poderes, consolidada faz três séculos e meia pela filosofia política que sustenta a ideia das democracias liberais, é quem um poder está submetido ao crivo do outro. Um poder é limitado pelo outro. É a própria limitação, pelos outros dois, que faz de cada poder realmente independente. É o que distribui poder. É o que garante que ninguém, na democracia, terá os poderes absolutos. É o que garante que tiranos não se criam.

O Supremo não pode decidir quem o julga. Este é um princípio básico. No segundo em que o Supremo decide quem o julga, o presidente poderá decidir quem o julga e em que circunstâncias. O Congresso, idem. No segundo em que o Supremo decide quem o julga, não há mais independência dos três poderes. Aí o Congresso baixa uma lei dizendo que o Supremo não pode condenar parlamentar à prisão. O STF diz, “é inconstitucional”, o Congresso diz “não é você que decide sobre parlamentares”. Quem faz o desempate?

Aí um presidente hipotético concede a graça, a liberdade, a Jair Bolsonaro em 1º de janeiro de 2027. O Supremo diz: não pode. É inconstitucional. O presidente retruca: quem decide sou eu a respeito dos poderes do presidente. Estamos nos metendo numa escalada de um poder desafiando os limites que o outro lhe impõe. Não é hipotético. Essa escalada vai nos levar a uma crise constitucional. Um poder nunca cria seus próprios limites. São os outros dois que criam. Esta é a natureza do jogo. É o que está na nossa Constituição. É o que está em qualquer Constituição de Democracia Liberal desde o barão de Montesquieu.

É claro que Gilmar Mendes, como qualquer jurista, sabe de tudo isso. O Supremo cruzou muito uma linha que o Supremo não pode cruzar. Porque a maior vítima, ali na frente, será o próprio Supremo. A esquerda que endossa esta loucura, corre o risco de se tornar igualmente vítima desta escalada de pressão dum poder sobre o outro. Quem perde é a democracia.

Temos uma eleição pela frente. O trabalho é de forma inteligente escolher candidatos para combater uma maioria bolsonarista no Senado. É trabalhar duro para explicar para as pessoas que preservar o regime tem imenso valor. Democracia a gente ganha no jogo democrático. Quando democratas deixam de se comportar como democratas, não contem com os antidemocratas para salvar o regime.

Até lá, precisamos muito contar com o plenário do Supremo. Que a maioria impeça que este ato de suicídio democrático fique de pé. E que ninguém se engane. É a PEC da Blindagem do Supremo.

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