Divisão da esquerda dificulta enfrentamento do nacionalismo religioso no país
A polarização política que levou Jair Bolsonaro (PL) ao poder nas eleições presidenciais de 2018 escancarou um problema enfrentado por outros países, como Estados Unidos, Índia e Hungria: o nacionalismo religioso, que se resume à fusão do sentimento de pertencimento coletivo nacional com o mesmo sentimento gerado pela fé. Encampado pela extrema direita no país, a consolidação dessa visão de mundo tem ganhado pouca resistência por parte da esquerda por conta de suas divisões internas. Para o cientista político e professor da FGV Guilherme Casarões, a esquerda “sectarizou” em outro sentido o nacionalismo religioso, dividindo-se internamente em grupos identitários e de classe, que antagonizaram um conjunto volumoso de pessoas antecipadamente e por motivos que considera equivocados. “Em 2014, a gente já podia ler em alguns blogs de esquerda que todo mundo que votou no Aécio Neves era fascista”, conta, em debate do Meio, mediado pela jornalista Anna Virginia Balloussier.
“A partir do momento em que se ‘fascistiza’ todo mundo que votou em outra pessoa, isso muito antes da ascensão propriamente dita de um fascismo à brasileira, acho que já interrompe a possibilidade de diálogo com grupos muito numerosos. E isso ajuda a formar no outro lado essa noção de maioria silenciosa, que está sendo perseguida. E quando Bolsonaro fala que minorias devem se curvar, ele ativa esse sentimento nas maiorias percebidas, como se elas tivessem de retomar o controle do país”, avalia.
Casarões diz que esse sentimento tem se organizado de maneira mais acentuada a partir de 2008 com o surgimento do trumpismo e do bolsonarismo. “Todas essas manifestações, principalmente ligadas à extrema direita hoje, têm muita carga dessa fusão entre nação e religião a partir de uma leitura que o Estado laico deve abrir caminho pelo Estado religioso”, explica. “A crise de 2008 gera essa percepção nas pessoas porque tira delas uma base material importante que de alguma forma as conectava ao capitalismo e ao funcionamento do Estado laico, dando origem ao nacionalismo cristão.”
Teólogo e mestre em religião e sociedade pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia University, Ronilso Pacheco diferencia o nacionalismo cristão de uma teocracia por esta última ter um livro sagrado como lei, organizando o país, e a presença de religiosos como estadistas, ocupando o poder no governo. No caso do nacionalismo cristão, o pensamento é de olhar as leis como algo inspirado por Deus. Nessa lógica, não é necessário ser religioso ou ter uma denominação religiosa, bastando apenas ter uma identificação ideológica conservadora ou ultraconservadora. “Isso tem muito pouco a ver com o caráter, a história, o passado de cada um, suas falas e impulsividade, mas com o compromisso de manter a supremacia dessa ideologia conservadora”, conclui.
Apesar de o movimento incluir um protagonismo forte do catolicismo, a cientista política e diretora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Ana Carolina Evangelista, lembra das candidaturas oficiais a partir de igrejas evangélicas nos anos 1980 e 1990, quando surgem os primeiros elementos do nacionalismo cristão no país, com uma maior organização do setor em uma narrativa dos “escolhidos de Deus”, iniciando o movimento que usa a religião como estratégia política. “Naquele momento, a Igreja Universal, especialmente, e as Assembleias de Deus tiveram um papel fundamental nessa nova narrativa e nessa organização política eleitoral. Por um lado, os ‘eleitos de Deus’ como abordagem narrativa, e uma estratégia eleitoral explícita adotada sistematicamente para transformar capital religioso em capital político”, afirma.
Evangelista destaca que essa ala tem demandado reconhecimento de sua identidade, ao apresentar projetos de lei que instituem feriados e dias nacionais voltados para datas importantes ao campo evangélico. No campo das políticas públicas, ficou marcada no governo Bolsonaro, não só entre esse grupo, mas entre uma identidade mais ampla, abrangendo católicos e outros cristãos, a defesa de valores morais e religiosos nas áreas de educação, mulheres e direitos humanos. “Não é apenas uma política de acesso à educação e proteção infantil, mas uma política pautada pela defesa de valores cristãos conservadores.”
Mesmo que os democratas busquem a manutenção de um Estado laico, Ronilso Pacheco destaca que é um erro pensar que a religião não deve participar da política, sendo parte do problema nacional. Ele defende que um país democrático deve pensar um projeto que leve em consideração o lugar que têm a religião e a religiosidade da população. “A religião precisa fazer parte desse debate, ter uma contribuição, dentro dos marcos democráticos que possam contribuir para um projeto de país, porque a diversidade religiosa é a cara do Brasil”, conclui.