Adversário de ‘Ainda Estou Aqui’, filme iraniano foi feito na clandestinidade

Imagine se Walter Salles tivesse de fugir a pé do Brasil e se refugiar na Europa para lançar Ainda Estou Aqui na Alemanha. Foi o que aconteceu com o diretor iraniano Mohammad Rasoulof, com seu filme A Semente do Fruto Sagrado, que concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional, além de ser vencedor do prêmio especial do júri no Festival de Cannes de 2024.
O longa se passa em Teerã e conta a história de Iman, um pai de família que acaba de ser promovido a juiz e deve abrir mão de julgamentos justos, para atender aos pedidos do Estado, sobretudo contra inimigos do regime. Em meio a isso, a arma que ganha por assumir o cargo desaparece em sua casa, conforme suas filhas questionam não apenas o que é feito pelo pai, como também as regras e convenções sociais.
As gravações aconteceram de forma clandestina no Irã, muito em razão de seu conteúdo, que aborda os protestos feitos após a morte da jovem Mahsa Amini, de 22 anos, assassinada pela repressão por não usar o véu obrigatório à lei islâmica. Também por tratar de como a mídia e a burocracia iraniana acobertam tanto as manifestações, como o que de fato aconteceu com a garota. Ao mesmo tempo, mostra como as redes sociais e internet estabelecem, neste caso, um contraponto à visão oficial.
Por essa condição de clandestinidade, boa parte das cenas acontece em ambientes internos. As locações externas são retratadas em pequenas partes e muitas vezes em locais isolados— por contextos do enredo do filme que vieram a calhar. As quase três horas do longa pesam, mas não em um sentido ruim, de tédio, mas pela sensação de sufocamento, de ambientes e do contexto. A humanização, mesmo de alguns agentes do Estado, como o próprio pai de família, é boa na maior parte do filme, o que levanta o adjetivo “complexo” para falar sobre o Irã. O final do filme é brutal, quase como um sopro ingênuo de esperança, mas justamente destoa da construção dramática feita ao longo de toda trama. É como se, após duas horas de complexidades e personagens cinzas, voltássemos ao preto e branco.
Fé, política, patriarcado, ética e até o questionamento constante de todos esses elementos sobrepostos são abordados. Sociologicamente, o filme tem uma visão que lembra a microfísica do poder, teorizada por Michel Foucault. Há um Estado e sua relação de poder, mas a repressão não se dá exclusivamente por ele, mas também em pequenas relações de poder, como a de um pai com a sua família.
O diretor Mohammad Rasoulof não foi perseguido apenas por esse longa-metragem. Em 2010, foi preso em um set de filmagens e condenado a seis anos de prisão, reduzidos para um ano. Depois, em 2017, seu passaporte foi confiscado. Já em 2019, Rasoulof foi condenado novamente, dessa vez por seu filme Lerd, por suposta “propaganda contra o sistema”. No ano seguinte, já no contexto de pandemia, conseguiu não ser preso, mas foi proibido de fazer filmes por dois anos. Para só então, em 2023, ser indicado ao Cannes por A Semente do Fruto Sagrado, o que o colocou em evidência de novo. Parte do elenco e da equipe do filme foram interrogados, enquanto o diretor levou 28 dias para fugir do Irã, após viajar a pé para uma vila fora do país. Depois, mesmo sem documentos, conseguiu entrar na Alemanha, pois o país já tinha suas impressões digitais e conseguiram emitir um documento temporário a ele.
O regime no Irã
Constantemente, notícias sobre o país o colocam como uma “teocracia”, quando o líder do governo age como um deus ou representante de uma divindade. No entanto, a caracterização não é unânime, e especialistas ouvidos pelo Meio rejeitam essa definição. Para Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, há uma diferença fundamental. “Teocracia pode vir também relacionado ao sinônimo de um regime político que acredita na encarnação de uma liderança divina. E não é o caso do Irã. Essas lideranças divinas são educadas via uma escola de formação”.
Já Natália Calfat, doutora em ciência política e pesquisadora do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano da USP, aponta que o sistema político iraniano não pode ser chamado de exclusivamente teocrático, pois há a particularidade da ideologia xiita duodecimal do Wilayat al-Faqih, que é a base teórica do sistema instaurado no país desde a Revolução Islâmica de 1979. “Assim, na ausência do Imam, que seria o melhor governante segundo a jurisprudência islâmica, é cedido ao Faqih, ou jurista no direito canônico islâmico, o direito de governar. Ele é eleito a partir de suas qualificações, experiência em lei islâmica e perspicácia política pela Assembleia dos Expertos”, afirma.
Portanto, funciona assim: o líder supremo, ou aiatolá, possui poderes de chefe de Estado na política nacional. Isso significa que ele pode nomear oficiais da Guarda Revolucionária, metade dos membros do Conselho de Guardiões e do judiciário. Mas há um contrapeso, pois a Assembleia de Expertos ou Peritos pode remover o líder do cargo, que, a princípio, é vitalício. O Conselho de Guardiões, inclusive, tem metade dos seus juristas sendo civis. A segunda figura política mais importante é a do presidente, eleito por voto direto da população. Com isso, a melhor definição política do Irã, em vez de teocracia, é a de uma República Islâmica com um sistema misto. Há a incorporação de elementos republicanos, como as eleições diretas, mas elementos de uma doutrina islâmica xiita.
Vale pontuar que xiita não é, necessariamente, sinônimo de radicalismo. Essa vertente muçulmana se difere dos sunitas ao propor que quem deveria liderar a comunidade islâmica teria de ser um descendente do profeta Maomé e não um líder escolhido em consenso na comunidade. Mas há grupos radicais e moderados em cada uma dessas ramificações religiosas. A Al-Qaeda, responsável pelo atentado do dia 11 de setembro de 2001, era sunita, por exemplo. Inclusive, apesar da repressão que existe no Irã quanto aos protestos contra algumas das leis islâmicas, Rodrigo Amaral lembra que há algum nível de resistência no país, o que não acontece em outros países do Oriente Médio, como a Arábia Saudita.
Em maio do ano passado, o Irã ainda passou por uma turbulência política após a morte, em acidente aéreo, do então presidente Ebrahim Raisi. Com isso, novas eleições foram convocadas e o reformista Masoud Pezeshkian foi eleito. Apesar disso, Amaral aponta que não houve grandes mudanças na condução política interna ou externa, exceto pelo fato da diminuição do posicionamento do país com relação ao que acontece na Faixa de Gaza, por exemplo. Houve repúdio às ações de Israel na Palestina e no Líbano, mas em um discurso “menos intenso”. Enquanto isso, o aiatolá Ali Khamenei, que ascendeu ao poder em 1989, não deve demorar para ter um sucessor, devido a sua elevada idade (85 anos) e saúde debilitada. Mas, pela lei, ele pode seguir no cargo até a morte.