O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Lula foi passear com ditadores

Todo ano, em 9 de maio, os russos celebram com uma parada militar a vitória na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas. É assim desde 1946. Nos anos de jubileu, o hábito é fazer uma celebração maior, convidando os representantes dos Estados aliados. Foi assim nos 50 anos da vitória, em 1995, nos 60, em 2005. E, sim, na última sexta-feira, os oitenta anos. O presidente Lula estava lá. Das Américas, além de Lula, foram só outros dois. Miguel Díaz-Canel, ditador de Cuba, e Nicolás Maduro, ditador da Venezuela. Mas a lista de chefes de Estado é maior do que essa. O chinês Xi Jinping foi. Os líderes da Belarus, Armênia, Azerbaijão, Mongólia. Umas ex-repúblicas soviéticas ali da Ásia Central. Tinham ainda alguns africanos também. É mais fácil listar quem eram os líderes de países democráticos na parada deste ano. Chefe de Governo tinha um monte. Democratas, só dois. Robert Fico, premiê da Eslováquia, e Lula. 29 chefes de Estado ou de governo. Só dois democratas. Foi uma festa de ditaduras.

PUBLICIDADE

Por quê Lula foi? O que quer dizer a ida de Lula?

Vamos em partes. A primeira é a seguinte: aqui no Brasil, a gente celebra o dia da vitória sobre o nazismo, o dia da vitória na Segunda Guerra na Europa, em 8 de maio, não no dia 9. Quase todo mundo adota essa data, que foi quando o marechal nazista Wilhelm Keitel assinou a rendição incondicional alemã perante os marechais soviético Georgy Zhukov e britânico Arthur Tedder, representando os aliados. Só que esse documento foi assinado quando passava pouco das onze da noite, em Berlim. Já era madrugada do dia 9, em Moscou. Então alguns países do universo soviético, durante a Guerra Fria, adotaram também a data de 9 de maio. Belarus, Georgia, Casaquistão, Sérvia. Só tem uma exceção: um bocado pela proximidade ideológica da extrema direita israelense com Putin, o governo Netanyahu adotou em 2018, também como feriado nacional, o 9 de maio como dia da vitória sobre os nazistas.

Outro ponto: essa festa russa já foi respeitada. Em 2005, na festa dos 60 anos, o americano George W. Bush foi, o francês Jacques Chirac também foi, o alemão Gerhard Schröder, assim como Junichiro Koizumi, do Japão. O que mudou nos últimos vinte anos? A invasão da Ucrânia foi uma ruptura violenta. Desde o fim da Segunda Guerra, havia um pacto não escrito de que os países mais poderosos militarmente não faziam guerras de anexação. Ninguém invadia vizinho para ampliar seu território. Isto era coisa que havia se encerrado justamente com a Alemanha nazista. Ao invadir a Ucrânia, Vladimir Putin rompeu este tabu. E, ao rompê-lo, tornou possível novamente imaginar ações assim novamente. É por isso que o temor de a China invadir Taiwan retornou. É por isso que Donald Trump se sente à vontade para falar de anexação territorial do Canadá, do Panamá, da Groelândia. Não é que ele vá fazer essas guerras. É que elas voltaram a ser imagináveis. É por isso que o governo Netanyahu começa a falar em anexar Gaza, o que era, de novo, inimaginável apenas cinco anos atrás. O mundo desceu dois degraus na escada da civilidade.

Veja, este é justamente um dos sinais mais fortes das crises das democracias no mundo. O fato de que não são mais valores democráticos que ditam as regras não escritas daquilo que países podem e não podem fazer. É no rastro do enfraquecimento de inúmeras democracias, da ascensão da extrema direita que ele próprio, Vladimir Putin, representa, que aconteceu a invasão da Ucrânia.

Mas Lula escolheu ser um dos dois líderes democratas numa lista com outros 27 ditadores. Bem, vamos para Robert Fico, o primeiro ministro eslovaco. O outro democrata. Qual é o perfil dele? É daqueles políticos que atacam “ideologia de gênero”, que quer proibir casamento homoafetivo e pretende banir do país todos os imigrantes, principalmente os islâmicos. Ataca combativamente a imprensa, as ONGs e, claro, considera que os partidos de oposição são uma ameaça à democracia. É anti-liberal, enfatiza todas as tradições culturais eslovacas. É democrata porque seu país é uma democracia, exatamente como um Donald Trump. Por que ele viajou pra Moscou? Porque considera que é preciso celebrar a Rússia, que liberou a Eslováquia durante a Segunda Guerra, e porque se põe em oposição à política da União Europeia em relação à Rússia. Um último ponto: o PIB da Eslováquia representa menos do que 5% do PIB brasileiro. É uma economia minúscula.

Então por que Lula escolheu, ativamente, se unir com os mais importantes antidemocratas do mundo?

O presidente Lula, vejam, diz que a imprensa brasileira está politizando essa visita. Bem, uma reunião com chefes políticos é uma reunião política. E mesmo que o Itamaraty escolha, por conta própria, analisar a visita com as lentes que bem deseja, o mundo entendeu a reunião em Moscou como um encontro do eixo das ditaduras. Tudo quanto é líder democrático fez questão de não ir. Tudo quanto é ditador fez questão de ir.

Se Lula decidiu ir pessoalmente, fez um cálculo. Seu cálculo foi, sim, muito diferente do cálculo que fez o resto do mundo. Só tem um problema nessa história. O Brasil ter escolhido fazer uma leitura solitária não vai mudar a maneira como o mundo vê a ação brasileira.

O que diabos passa na cabeça de Luiz Inácio? Ou, melhor, na de Celso Amorim?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Vem cá: você sabe mesmo ler as notícias? Mas não é só bater o olho e replicar, é entender o que está por trás delas. Quem acompanha o Meio termina sendo referência em qualquer conversa. Porque a gente entrega análise, contexto e aumenta o seu repertório. E repertório é tudo, você sabe. Assine o Meio para ter acesso à Edição de Sábado com entrevistas e reportagens especiais sobre política, história, cultura, tecnologia e comportamento escritas por múltiplos pontos de vista. O Meio Político chega às quartas na sua caixa de e-mail, com as análises de Brasília e do que você precisa olhar na lupa no cenário político. E tem o nosso streaming, com docs e séries que vão te fazer maratonar produções que incluem o original do Meio ‘Democracia, uma história sem fim’, ‘Elon Musk, A Tomada do Twitter’, ‘O Futuro do Trabalho’, ‘Evangélicos, Da Fé ao Poder’ e muitas outras. Assine. Sabe por quê? Porque ajuda a pensar. Ajuda a construir suas próprias ideias. É só seguir o QR Code na tela ou clicar no link da descrição.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Luiz Inácio Lula da Silva ganhou a eleição de 2022 com pouco mais de 60 milhões de votos. Jair Bolsonaro teve 58 milhões. 51% contra 49% arredondados, mas a diferença foi mais próxima de 1,5 pontos percentuais. Foi muito apertado. Lula venceu porque, além daqueles que votam sempre nele, ganhou o voto de dois grupos bastante específicos que jamais votam nele. Mulheres periféricas, evangélicas, conservadoras, que tinham alguns problemas com Bolsonaro. A maneira como ele lidou com a Covid e seu incentivo às armas. Os homens periféricos gostam de armas. As mulheres, não. Elas entendem que o efeito real de arma na mão sobra ou pra elas ou pros seus filhos. E teve um grupo que a Quaest chama de sociais-liberais. São pessoas como eu. Liberais progressistas, nós representamos entre 3% e 5% da população brasileira. É muito pouca gente. De todos os grupos em que a Quaest divide os brasileiros, este pequeno conjunto, uma classe média com alto índice de educação e que vive nos grandes centros urbanos, é o único que põe a preservação da democracia como seu valor mais alto. Segundo as pesquisas é, literalmente, o único que bota democracia lá em cima na lista das prioridades. Para este grupo, a ação do PT no governo, a corrupção desenfreada, são problemas gravíssimos. Daqueles de considerar nunca mais votar. Só que do outro lado estava Jair Bolsonaro. Para muitos brasileiros, não era óbvio que Bolsonaro tentaria um golpe. Para este grupo era não só óbvio como se tornou fundamental derrotá-lo. Mesmo que fosse ao pesado custo de votar em Lula.

Liberais democratas compreendem que existe uma disputa em curso no mundo. De um lado, ela é representada pela China. Do outro, pelas democracias. A China se apresenta como um modelo de desenvolvimento econômico e humano no qual liberdade não é importante. O que ela diz ao mundo é aquilo que a União Soviética sempre quis dizer mas nunca conseguiu: é possível fazer crescer a economia e distribuir os recursos deste crescimento para a sociedade sem que liberdade faça parte da equação. Para muita gente, essa fórmula autoritária é tentadora. E os chineses são muito inteligentes no uso do soft power, na distribuição de recursos, no investimento internacional para atrair aliados.

A fórmula chinesa é tão atraente pra tanta gente que muitos americanos se convenceram de que a única maneira de enfrentar a China é, justamente, coibindo liberdade. Fechando as portas para o comércio, controlando o que se diz em sala de aula ou em protestos, diminuindo a capacidade da Justiça de impedir o governo de fazer o que deseja. O trumpismo é parte fundamental desta equação.

A China está montando um eixo das ditaduras no mundo. E o Brasil, sob Lula, trabalha ativamente para se alinhar com este eixo. Veja, não é assim que o Palácio do Planalto lê. O Planalto de Lula acha que os Estados Unidos são um problema no mundo por ser a economia dominante. A partir daí, compreende que é preciso desenvolver a diplomacia brasileira sempre em oposição aos Estados Unidos. Lula não estava lá com os 27 ditadores e o Trump eslovaco porque eram ditadores. Estava lá porque são antiamericanos. Só que o que faz deles antiamericanos, antes de tudo, é serem antidemocratas. Lula não lê assim, Celso Amorim não lê assim. Só que o mundo democrático lê assim. Eles lerem diferentemente faz deles exceção, não regra. Eles lerem desse jeito faz com que os democratas do mundo vejam o Brasil como um país em que democracia não é prioridade.

Sociais liberais não vão votar em Lula, em 2026. Seu principal critério para escolha de um líder é o de ser democrático. Lula, neste governo, tornou evidente que este não é um quesito particularmente importante. Foi uma escolha ativa dele. Uma escolha que apenas ele, entre todos os líderes democratas do mundo, tomou. Suas declarações favoráveis a Putin após a invasão da Ucrânia, seu apoio a Daniel Ortega e Nicolás Maduro, encontros como este em Moscou. Nada disso é fato isolado. É uma escolha ativa e altiva. Dentro do PT, eles não veem isso como fazer pouco da democracia.

O problema é o seguinte: só eles não veem. A crise da democracia não se combate país a país. Se combate coletivamente. Ela é mundial. Uma democracia fortalecida fortalece outras democracias pelo exemplo. É missão de toda democracia incentivar o surgimento de mais democracias. Lula não compreende isso. Ou não liga. Para se eleger em 2026, ele precisará de outros votos porque aqueles fundamentais para sua eleição em 2022, não terá. Ou seja, vai precisar trazer o voto de quem escolheu Bolsonaro. Ou torcer para que, do outro lado, esteja alguém que deseja claramente um golpe de Estado.

Tem mais de um ano e muita água ainda vai correr por este rio. Vamos ver.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.