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Janja é um problema

O Brasil, como qualquer país, tem uma série de honrarias que são dadas àquelas pessoas que se destacam, sabe? Àquelas pessoas que fazem do país melhor. Temos a Ordem do Rio Branco, para aqueles que se destacam em tornar melhores as relações do Brasil com outros países. A medalha de mérito Oswaldo Cruz, para quem trabalha para que a saúde dos brasileiros melhore. Temos a Ordem do Mérito Cultural. Cada honraria dessas tem vários graus. Essa do Mérito Cultural, que foi distribuída pelo presidente Lula na segunda-feira, tem o nível de Cavaleiro do Mérito Cultural, de Comendador do Mérito Cultural e, a medalha de ouro nesse pódio, a Grã-Cruz do Mérito Cultural. Gregorio Duvivier se tornou cavaleiro do Mérito Cultural, na segunda. O ator Lázaro Ramos também. A cantora Maria Rita. A professora Marilena Chauí ganhou o prêmio no nível comendador. O cineasta Silvio Tendler. A escritora Conceição Evaristo. A Grã Cruz foi oferecida ao escritor Marcelo Rubens Paiva, ao diretor Walter Salles, à atriz Fernanda Torres. Caramba, os três trouxeram um Oscar, né? Ganharam também Chitãozinho e Xororó. Os caras lançaram Evidências. Alceu Valença. O sociólogo Danilo Miranda, que fez do Sesc o centro da cultura em São Paulo, recebeu in memoriam. Como Aldir Blanc e Beth Carvalho. E ganhou a Grã-Cruz do Mérito Cultural a primeira-dama Janja Lula da Silva.

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Vamos lá. Janja é mais importante pra cultura brasileira do que Maria Rita, Lázaro Ramos, Silvio Tendler ou Conceição Evaristo? Ela é tão importante quanto Chitãozinho e Xororó, Alceu Valença, Aldir Blanc ou Fernanda Torres? Existe uma única pessoa que possa argumentar isso a sério?

Pois é. Janja também recebeu a medalha de mérito Oswaldo Cruz e a Ordem do Rio Branco.

Veja, dona Ruth Cardoso ganhou a medalha Oswaldo Cruz. Foi por conta da ação dela na criação do Programa Comunidade Solidária, que está na origem de inúmeras políticas públicas que mudaram a cara do Brasil. Coisas como o cadastro único, que viabiliza o Bolsa Família, nasceram da racionalização, da organização das políticas sociais feitas ali pela dona Ruth que, de quebra, foi uma das sociólogas mais importantes do século 20 no país. Mas, olha, era mulher do presidente da República e dá perfeitamente para argumentar que aquela foi uma indulgência que não cabia. Mesmo que ela de fato tivesse uma imensa colaboração para a saúde dos brasileiros.

E aí? Aí Lula decidiu que ele podia dar pra dona Marisa Letícia a Ordem do Rio Branco. O que ela fez pela diplomacia brasileira? Sei lá. Jair Bolsonaro decidiu trocar. Deu pra Michele a Ordem do Rio Branco e a Medalha Oswaldo Cruz. Por que uma se pode dar duas? Aí, bem, veio Lula três e Janja completou essa semana o Royal Straight Flush. Tem a Ordem de Rio Branco, a Medalha Oswaldo Cruz e a Ordem do Mérito Cultural. As três.

Vamos ser francos aqui? Na melhor das hipóteses é coisa de república das bananas. Porque é isso, né? Essa coisa de ficar dando tudo quanto é medalha pra primeira-dama é, no fim das contas, não levar a sério qualquer uma dessas condecorações. Se Janja deu a máxima contribuição possível pra cultura, pra saúde e pra diplomacia, o que isto quer dizer, na boa, é que esses prêmios não valem nada. É só uma medalha que o presidente dá para quem ele quer. Isso diminui quem recebeu a medalha e quem recebeu a medalha, isso não tem nada a ver com gosto pessoal, de fato deu contribuições relevantes à cultura brasileira.

Na pior das hipóteses é patrimonialismo. É o presidente da República tratar a coisa pública como sua. Ele faz o que quer. Dane-se o que é o melhor para o país.

Alguém de esquerda, com toda franqueza, acha que pode existir uma justificativa para Janja ser oficialmente considerada alguém com qualquer relevância em diplomacia, saúde ou cultura? Gente, ela tem um diploma em ciências sociais e é funcionária de Furnas. Essa é a vida dela. E, na boa, essa questão das medalhas é o de menos.

Hoje, o Painel, da Folha de S. Paulo, informa, vejam só, que uma pesquisa de intenção de votos encomendada por aliados do presidente Lula simulou um hipotético segundo turno presidencial entre eleitores de São Paulo reunindo a primeira-dama, Janja, e Michelle Bolsonaro. Ambas teriam 41% dos votos. Que instituto levantou esses números? Não sabemos. O instituto descobriu se Janja teria chance de chegar ao segundo turno? Não. Aliás, nem poderia concorrer a não ser que Lula renunciasse antes de abril do ano que vem. De que adianta, diga-se de passagem, fazer uma pesquisa só em São Paulo? De rigorosamente nada. Essa pesquisa não serve pra nada. Serve, só, pra fazer um calorzinho e Janja sentir que tem futuro na política. Serve também numa ofensiva de comunicação que tenta convencer alguém, em algum lugar, que Janja não atrapalha o governo.

Janja é um desastre. E, olha, não precisa ir longe. Essa é a opinião de mais de metade da direção do PT, de meio Palácio do Planalto, de quase todo mundo na esplanada dos ministérios. Só que Lula gosta de Janja, gosta muito. Foi uma companheira importante e afetuosa nos anos de prisão, uma pessoa que estava lá quando dona Marisa morreu. Janja injeta vida em Lula. Essas coisas têm muito valor e, olha, casamento feliz, casamento com respeito, essas coisas não são triviais de encontrar, não. Mas temos um presidente que acha que o casamento dele não é assunto privado, é assunto público. Então Janja atua como diplomata, como especialista em comunicação política, como ministra de Estado, o lugar de Janja é onde ela quer. Bonito no slogan. A impessoalidade do Estado que se dane.

Não é disso que a gente precisa falar. A gente precisa falar de outra coisa: o que Janja fez na China é absurdo e mostra como este governo está completamente perdido a respeito do mundo digital. Porque não foi só o protocolo que Janja quebrou. Ao falar, ela também deu o tamanho de sua profunda ignorância a respeito de redes sociais. Ignorância já é um problema quando temos noção de quão ignorantes somos. Quando a gente não tem ideia que não sabe nada de um assunto, e age como se soubesse, o desastre é maior.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Antes de tudo: quer atuar no meio do palco político? Então tenha a coragem de enfrentar críticas e responder no argumento. Sempre que criticada, Janja diz que é vítima de machismo. Nunca responde com contra-argumentos. Afirmou que nenhum protocolo diplomático a fará se calar. É o tipo da declaração que junta arrogância com ignorância. Protocolos diplomáticos servem para facilitar as conversas entre duas nações. É para permitir que o diálogo ocorra através de culturas às vezes muito distintas. É o tipo da coisa que a gente obedece porque é uma convenção. Serve para não ofender. Serve para não gerar atrito quando negociações já são difíceis.

Janja, detentora da Ordem de Rio Branco, que não tem cargo público e não foi eleita para absolutamente nada, está dizendo que se sente autorizada a representar o Brasil nos mais altos níveis da diplomacia sem prestar contas para ninguém. Alguém aí acha isso razoável? Porque não é. É um desastre. Arrogância com ignorância.

Nós não sabemos o que ela falou ao presidente Xi Jinping. Porque esta história tem três versões incompatíveis. Na primeira, ela tomou a palavra e reclamou do Tik Tok. O presidente chinês respondeu o óbvio: quer regular? Regula. O Brasil faz o que quiser dentro do Brasil. A segunda versão é do presidente Lula. Foi ele que tratou do assunto, não Janja, e pediu para Xi Jinping alguém que ajude a montar uma regulação no Brasil. Jura? Pedir para um dos países que mais censuram a internet no mundo lições sobre como regular? Se Lula não sabe, tem dentro do Palácio gente que pode sugerir agora uma regulação assim. Não precisamos da ajuda de uma ditadura. Aí veio a terceira versão, do chanceler Mauro Vieira, que escorregou prum lado, escorregou pro outro, e afirmou que não tem especialista nenhum vindo pro Brasil. Segundo duas das versões, Lula saltou à frente e mentiu pra proteger Janja.

Diferentemente do que pensa a primeira-dama, as redes sociais não favorecem a extrema direita. O que as redes fazem, e isso favorece também o PT, é aumentar o ódio entre grupos políticos. É acirrar as tensões. É criar dissenso. A extrema direita ganha, também, mas a esquerda não é derrotada. Os derrotados são todos os moderados, todos os dispostos a conversar, todos os que acreditam que brasileiros são perfeitamente capazes de se entender. O problema que a esquerda tem não é com os algoritmos, é com a mensagem. Aquilo que a esquerda quer dizer não é o que os brasileiros pobres dos grandes centros urbanos querem ouvir. Quem acha que Nicolas Ferreira se dá bem porque Xi Jinping ou Mark Zuckerberg dão uma força está se iludindo. O segredo de Pablo Marçal não é que existe um complô no Vale do Silício para permitir que ele enriqueça. Essas pessoas, muitos deles picaretas evidentes, falam o que as pessoas querem ouvir. E os algoritmos estão aí para incentivar emoções fortes. Raiva. Ambição. Ressentimento. Porque isso faz com que todo mundo volte, e volte, e volte pras redes e assim veja muita propaganda.

Não são os chineses que vão resolver o problema das redes. Somos nós, brasileiros. Quando tivermos a coragem de priorizar a regulação. É Lula, e não Xi Jinping, que tem o poder de abrir essa conversa. Não é um papo fácil porque começa por explicar para as pessoas que o objetivo não é controlar o que se diz nas redes, mas discutir que critérios as redes usam para decidir que tipo de mensagem vai pra milhões e quais só vão pra dez.

A não ser, claro, que Janja considere que o necessário mesmo é calar a direita e só deixar a esquerda falar.

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