Arte no atropelo
Gabriela Inui estava com dois artistas terminando a pintura da pequena sala de quatro por três metros no quarto andar de uma galeria do centro de São Paulo quando agentes da Polícia Federal desceram de rapel vindos do telhado da galeria, armas em punho, mandando todos se deitarem no chão. A batida da PF aconteceu em março de 2024. Os policiais procuravam os líderes de uma quadrilha de traficantes que usava o prédio para preparar mulas para o tráfico internacional.
Com esse batismo de fogo nasce um espaço de arte singular na cidade de São Paulo, a Sala 24 de Maio. Depois de passar três horas deitada, de ter de dar declarações ao delegado que conduzia as investigações, Gabriela e os artistas foram liberados. “Nesse processo todo da PF, eu desisti da ideia de usar o espaço, pedi desculpa para os meninos de colocá-los nessa roubada depois de pintar a sala toda e aí eles falaram: ‘Não Gabi, a gente vai continuar, a gente é da periferia, a gente lida com isso’”, conta, um ano depois, a dona da galeria.
Nos encontramos em um dia gelado deste inverno paulistano. O Centro Comercial Presidente, também conhecido como a Galeria do Reggae, fica na rua 24 de Maio, quase ao lado de sua irmã mais famosa, a Galeria do Rock, e é espelhada pelo prédio do Sesc 24 de Maio, projetado por Paulo Mendes da Rocha.
É um lugar muito familiar para mim. Lá funcionava minha loja de discos preferida no começo dos anos 2000, a Bizarre Music, além de um sem-fim de lojas especializadas em hip-hop, música eletrônica e reggae. Apenas duas delas seguem na ativa hoje. Vinte anos depois, quando volto a subir suas escadas da galeria, ela é dominada pelos imigrantes africanos, que conversam animadamente em uma língua que não entendo. Subindo pelas escadas rolantes os lances para chegar ao quarto andar, o que mais se vê são salões de cabeleireiros, com aquela profusão de apliques. Há um certo ar de abandono, muitas lojas fechadas, um restaurante aqui, outro acolá.
O quarto andar da galeria, reza a lenda, sempre carregou uma mítica de lugar sinistro. Mesmo tendo frequentado aquele prédio por anos, nunca havia chegado tão alto. Mas é lá, em uma sala em meia lua voltada para a rua 24 de Maio, com janelas altas que mesmo no inverno deixam entrar uma luz generosa, que se instalou esse endereço com uma proposta única de proporcionar um encontro entre duas vertentes da arte que se encontram muito nos últimos anos, mas que, no fundo, dialogam pouco: a arte de rua e a arte contemporânea.
Nem sempre foi assim. É verdade que a sala estava abandonada havia anos. Mas até 1996 funcionava ali o consultório dentário do avô de Gabriela, um imigrante japonês que se tornou um protista autodidata. Parece que dos bons. Jânio Quadros, ex-presidente, sentou-se em sua cadeira para colocar uma prótese naquele endereço. “Meu avô morreu aos 99 anos, e aprendeu sozinho a esculpir dentes, de certa maneira, uma forma de arte. Abrir esse espaço aqui, numa sala que havia sido abandonada pela família, parece fechar um ciclo.”
O projeto da Sala 24 de Maio tem a ver com uma confluência de ciclos. Com novas perspectivas e recomeços. Gabriela Inui tem uma longa trajetória nas artes visuais. Começou como artista, basicamente trabalhando com fotografia, nos anos 1990, nos Estados Unidos. Ao voltar para o Brasil, trabalhou em uma série de galerias famosas. Começou na Luisa Strina, passou pela Casa Triângulo, pela Mendes Wood, pela Baró e lançou um projeto pioneiro em editar múltiplos de artistas como Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Antonio Dias, a Multiplique Boutique. Mas sentiu que precisava virar a chave.
A política tem um papel importante nessa visão, e, curiosamente, tem a ver com a história da preservação do patrimônio histórico do arquiteto modernista Gregori Warchavchik. Quando, em 2013, uma obra ameaçava as casas da rua Berta, um projeto de casas geminadas feito pelo autor do projeto da Casa Modernista e da construção que hoje abriga o Museu Lasar Segall, Gabriela se junta ao movimento Proteja as Casas Modernistas da Rua Berta. O movimento perde o processo contra a obra em 2018, com ela já terminada. Gabriela voltaria a defender o patrimônio de Warchavchik, quando cria a exposição chamada Divergência Estética Capítulo 1, que aconteceu no Centro da Terra, e era feita para lançar luz sobre a iminente demolição do Salão de Festas feito por ele no clube Pinheiros. Isso em 2019, na mesma época em que o arquiteto era celebrado em exposições no Itaú Cultural, na Casa Modernista e no Museu Lasar Segall.
“Quando percebi que estava vendendo a Laje do Herzog [Laje #19 (Herzog), de Matheus Rocha Pitta] para o advogado que estava me processando por defender o patrimônio histórico, entendo que a arte contemporânea, por mais política que seja, acaba sendo engolida e subvertida pelo mercado.”
E a Sala 24 de Maio traz um modelo que desafia essas regras do mercado de arte. No seu espaço exíguo não se fazem nem exposições nem residências artísticas. São feitas temporadas. “Basicamente, eu entrego a chave para os artistas, que ocupam o espaço como querem para criar. São temporadas que duram cerca de dois meses e, ao final, fazemos uma exposição”, conta Gabriela.
A própria questão da autoria, muitas vezes, é desafiada, com uma série de colaborações durante o processo. Já a primeira temporada, batizada de Atropelo, conceito dos pichadores de passar por cima das obras dos outros, três artistas do Ateliê da Rapa, Link Museu, Tito Terapia e Evandro César, embaralhavam a linguagem do pixo e a pintura sobre tela e convidavam suas próprias obras para serem atropeladas.? “A ideia é dar um direcionamento, mas muita liberdade para o artista criar aqui. Basicamente eu dou a chave da sala para ele, e cada um faz o uso que quiser para a sua criação”, explica.
Quando visito a sala, já na sexta temporada, quem está produzindo é o artista visual Renato Custódio. Na sala, ele inicia uma nova pesquisa, bem distante das suas obras que envolvem a cultura do skate e arte sonora. Lá ele está fazendo pinturas de uma série de portas de ferro, dessas que existem em profusão nos comércios em volta da galeria. Curioso é que todas essas portas estão cobertas pelo picho, e o trabalho de Renato limpa essa camada.
Ele ocupa o espaço com um toca-discos e uma cafeteira. Diferentemente de outros artistas que passaram por lá, cria a portas fechadas, num processo mais diurno, e recebe alguns visitantes com café. Não à toa a temporada foi batizada de Café Blasé.
Antes, passaram por lá artistas como Fabio Biofa, Oswaldo Ruivo Midi, Risada. “Cada artista vem e traz a vibe dele, a identidade. Até os tempos das temporadas mudam, tudo é maleável. E sempre tem muita colaboração.
A Sala 24 de Maio vende as obras que foram produzidas ali. Como numa galeria, fica com 50% da obra, que é destinado a manter o espaço. Mas até isso é diferente, não é uma representação, se o artista acaba sendo representado por outra galeria e vender uma obra daqui, tudo certo”, diz Gabriela. “Uma coisa que tenho visto é que o lugar propicia uma nova pesquisa, um olhar diferente. A produção da sala às vezes é bem diferenciada da do artista. E é isso que importa.”