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O que Trump e Putin querem

Esta nossa conversa de hoje é sobre Donald Trump, é sobre Vladimir Putin e é sobre Volodomyr Zelensky. É também, claro, sobre o premiê alemão Friedrich Merz, o britânico Keir Starmer, a italiana Giorgia Meloni, o presidente francês Emmanuel Macron, a presidente da Comunidade Europeia Ursula von der Leyen e o secretário geral da OTAN, Mark Rutte. Todo mundo em Washington, hoje. De um lado, Trump e Putin. Não porque necessariamente chegarão a um acordo, mas porque estão tentando construir um novo mundo. Do outro, a Europa. Que tenta, essencialmente, manter vivo o ideal liberal.

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Eu sei, a gente fala essa palavra, “liberal”, e as pessoas entendem muitas coisas diferentes. Um bom pedaço da esquerda passou as últimas décadas condenando o que chamava de “ordem neoliberal”. Mas o desafiante que parece ter chances de conseguir destruir esse jeito de organizar o mundo não veio da esquerda. Veio da extrema direita. Tem gente que reclama quando a gente fala assim. “Extrema direita.” Extremista é quem é contra a ordem liberal. Que ordem é essa? É aquela instaurada pelas democracias liberais. Tem extremista à extremista à esquerda e tem à direita. Vladimir Putin e Donald Trump são dois exemplos à direita.

Minha proposta, hoje, é essa. Vamos explicar o que Trump e Putin estão tentando desmontar, cada um a seu jeito. E o que os líderes europeus estão tentando manter. Tem dois pedaços essa explicação. O macro e o micro. O macro se mostra em como as nações se relacionam. O micro se mostra em como os povos vivem. Em como a gente se organiza. Vamos começar do micro?

Hoje de manhã, o Daily, podcast diário do New York Times, trouxe uma entrevista muito bonita, comovente mesmo, com o deputado federal republicano Mike Flood. Os líderes do partido no Congresso recomendaram aos parlamentares republicanos que parassem de fazer town halls. Esta é uma tradição americana antiquíssima. Deputados e senadores, quando estão nos seus estados, vão para quadras poliesportivas de escolas, vão para clubes, para igrejas, em cada cidade que representam. E, ali, se apresentam para ouvir perguntas da população e respondem. Os republicanos estão sendo muito, muito atacados. Está difícil. Por isso eles pararam de fazer town halls. Tem uma exceção. É o Flood.

Na entrevista, ele conta que seu pai e mãe eram democratas bastante ativos na política. Mas, aí, ele se encantou com os republicanos. Um dia chegou um convite para ele ir a uma reunião dessas, tipo town hall, de uma política republicana do estado. Ele pediu, o pai o levou. O Flood tinha onze anos de idade. Se encantou com a coisa. Os pais, ligados profundamente ao Partido Democrata, fizeram o que quando o filho menino demonstrou interesse por política, mas demonstrou pelas ideias do partido adversário? Os pais deram força. Ajudaram. Incentivaram. Por quê? Porque, com onze anos de idade, o importante era ele se envolver, ele pensar, ele querer ser um cidadão ativo, participante da democracia. Mike Flood segue fazendo town halls, mesmo com gente gritando contra ele, porque ouvir quem discorda, na cabeça dele, é o que faz de uma democracia pulsante. E é uma obrigação quando você é um político eleito se expor aos eleitores. Engajar em conversa com seus eleitores. Falar francamente com eles, mesmo quando há discordância. Mesmo que isso represente não ser reeleito.

Eu tive pais como os do Flood. Não segui, necessariamente, pelo caminho político que eles seguiam. Mas quando eu estava ali na pré-adolescência, o que eles faziam, quando eu soltava umas ideias meio pouco embasadas, não era dizer que eu estava errado. Era um “então vai ler isso aqui”. E eu lia.

Políticos como Trump, como Putin, como nosso Bolsonaro, consideram que ideias distintas das deles devem ser controladas. Eles fazem o discurso do contrário, falam em liberdade. Mas, quando estão no poder, agem. Trump está trabalhando para fechar TVs e rádios públicas, ameaça redes de TV para cancelar programas de opositores, trabalha para mexer no sistema eleitoral de alguns estados para diminuir o número de parlamentares democratas eleitos. E a recomendação do Partido Republicano, no Congresso, é de que parlamentares parem de falar com seus eleitores. Por quê? Porque só tem bagunceiros, lá. Eleitores bons são eleitores que se calam.

Mas e no mundo, hein? Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

A ordem internacional na qual ainda vivemos foi construída em dois momentos. Num primeiro, com o mundo dividido, logo após a Segunda Guerra. No segundo, após a dissolução da União Soviética. Mas vamos começar do início. Qual a diferença essencial entre o mundo pré-moderno e o moderno? No mundo pré-moderno, a nossa cabeça tribal. Tem o meu povo e tem os outros povos e estamos em eterna disputa. Guerras são feitas. O importante é a força. Quem tem força econômica, quem tem força militar, manda.

O mundo moderno é o mundo liberal. É nela que nascem as nações, é nele que o imperialismo acaba, a escravidão acaba, direitos são ampliados para mulheres, para gays, para negros. Porque a gente parte do princípio de que cada pessoa é igual em seus direitos a toda outra pessoa. Porque a gente parte do princípio de que todas as nações têm direito à autodeterminação. Quer dizer: um país tem direito a fazer suas escolhas.

Quando a gente chega nos anos 1990, essas ideias já foram bastante absorvidas, estão maduras para ampliarmos. Ali, a gente compreendeu que comércio não é um jogo de soma zero. Quer dizer, não é um jogo em que um ganha e o outro perde. Todo mundo ganha. Quanto mais comércio há, mais todo mundo enriquece. Quanto mais aberto o mundo for para negociar todos com todos, maior o crescimento. Neste mundo da globalização, do Consenso de Washington, o que aconteceu concretamente foi o seguinte: todos os países enriqueceram, a população do mundo cresceu, a fome diminuiu, o número de guerras foi reduzido ao menor da história, violência e criminalidade urbanas despencaram, acesso a saúde e educação se ampliaram, as classes médias se expandiram em todo o mundo. Novos países entraram na lista dos desenvolvidos.

Em fatos concretos, em todas as medidas das quais damos conta, o mundo na última década do século 20 e na primeira do século 21 foi o melhor que já houve pra humanidade. É este sistema contra o qual a extrema direita se levanta.

Quando Vladimir Putin invade a Ucrânia e diz, “quero ser dono de um pedaço desse país e posso porque sou mais forte”, ele está dizendo que a ordem liberal morreu. Ele está fazendo exatamente o que Hitler fez. A Segunda Guerra começou exatamente assim, quando Hitler anexou a Áustria e a Tchecoslováquia porque tinha gente que falava alemão nos dois países. Ele podia porque era forte. Ele podia porque queria.

Quando Donald Trump se vira e sai impondo tarifas altas porque tem países que vendem pros americanos mais do que os americanos vendem pra eles, está rompendo com a ideia de que mais comércio é sempre bom. Gente, o PIB dos Estados Unidos multiplicou por cinco dos anos noventa pra cá. Ao mesmo tempo em que todo o mundo enriqueceu junto. Riqueza se cria. O mundo criou junto muita riqueza nesse período.

Quando Trump impõe tarifas no Brasil porque não gosta do que decide a nossa Justiça, ele em essência está dizendo que o Brasil não tem direito a tomar suas decisões internamente. Por quê? Porque os Estados Unidos são mais fortes e pronto. Ele entende o mundo como Putin o entende.

Donald Trump é iliberal. Vladimir Putin é iliberal. Jair Bolsonaro é iliberal. E a Europa está tentando manter de pé a ordem liberal, ferida como está, na esperança de que daqui a quatro anos os americanos elejam um presidente americano normal que defenda o avanço da ordem que promoveu o crescimento americano em todo o século 20. O que Donald Trump e Vladimir Putin estão tentando fazer é desmontar o mundo criado após a Segunda Guerra. Querem o retorno do mundo onde um Hitler foi possível, onde o forte manda no fraco.

Eu sei que o liberalismo anda impopular. Mas uma coisa ninguém tira de nós, liberais. No breve período de vinte anos em que o mundo foi liberal, caramba, como tudo melhorou. Teve problema? Claro que teve. E precisam ser corrigidos. A democracia já provou que é o melhor sistema para resolver os problemas que concretamente existem. Pra começar, precisamos distribuir melhor a riqueza que nossas sociedades criaram. Não porque não tenha sido distribuída. Foi. Como nunca. Mas pode ser ainda melhor.

E quinta-feira estará aí nosso documentário mostrando o que a nossa Democracia entregou para os brasileiros. Esse pesadelo que é a volta do passado, ele há de passar.

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