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O crime sem autor

Filho de um general quatro estrelas, é tenente-coronel com mais de trinta anos de Exército. Serviu na Brigada de Infantaria Paraquedista e nas Operações Especiais do Exército Brasileiro, foi instrutor na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), observador militar e oficial de ligação das Operações das Nações Unidas no Chile, e comandante do curso de artilharia da Aman. Ainda participou do planejamento e envio de militares brasileiros para a Força Interina das Nações Unidas do Líbano, pós-graduou-se em Relações Internacionais, tornou-se doutor em Ciências Políticas Militares, mestre em Operações Militares, e bacharel em Ciências Militares, especialista em Guerra Irregular e Ações de Comando, escreveu livros, recebeu mais de 15 medalhas de honra. “E, por último, foi ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro”.

Não por último. Após acoitar seu cliente sob as tecnicidades do currículo militar, o advogado Jair Alves Pereira recorreu ainda às credenciais parentais. “Filho de um general quatro estrelas, pai de três meninas e um esposo que eu venho aqui fazer a defesa”, proferiu na tribuna da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Em seguida, respirou fundo. Procurava revelar o homem por trás de um dos personagens centrais da trama golpista – que, por um fio, não rasgou de ponta a ponta o tecido democrático brasileiro. O delator.

Àquela altura, no último 2 de setembro, Mauro Cid já era velho conhecido dos brasileiros. Estampara revistas impressas e eletrônicas aos montes desde 2022, quando o escândalo das jóias sauditas ganhou destaque no noticiário. Foi apenas o primeiro. Seu nome passou a figurar no esquema de fraude nos cartões de vacina para Bolsonaro e familiares e, finalmente, em meio às reuniões e minutas golpistas ligadas ao entorno do ex-presidente. Com medo, medo mesmo, de assumir a bronca e amargar, sozinho, anos de vida na prisão, aceitou o acordo de delação premiada. Assim, em 2023, tornou-se o primeiro a apontar dedos a quem fosse necessário, inclusive ao chefe do Executivo de quem fora braço direito.

Contou que Bolsonaro pressionou militares para angariar apoio em sua intentona, chegando a se reunir com a cúpula das Forças Armadas para discutir maneiras de barrar a transição de poder após a derrota nas urnas. Citou até a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o Zero Três, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL), como entusiastas dos planos golpistas. Lançou à fogueira um colega de caserna, o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro no pleito de 2022.

O trato com a Justiça pode lhe render uma diminuição de até um terço da pena. As chances de alcançar a redução máxima, no entanto, caíram quase na mesma proporção após a veiculação de uma reportagem da Veja, que tornou público áudios nos quais Cid relata possíveis coações por parte da Polícia Federal e do relator do caso na Corte, Alexandre de Moraes — e que ele garante que foram nada mais que um desabafo. Além disso, existem indícios de que o ex-ajudante de ordens trocava mensagens sobre a delação em uma rede social através de uma conta com o nome de sua esposa, o que violaria o acordo. Há também controvérsias envolvendo as várias versões do caso que relatou às autoridades. Em algum grau, todas as outras defesas exploraram estes gargalos. Daí, a aflição de Pereira.

“Esses mesmos áudios vazados na Veja falam mal de vossa excelência, ministro Alexandre de Moraes. É, vossa excelência deve estar acostumado com isso”, afirma o advogado em sua sustentação oral, a primeira entre as manifestações das defesas. A fala é atravessada por risos – dele próprio, de quem acompanhava a sessão e do julgador. Moraes abre o sorriso, assente com a cabeça e gira a cadeira marsala pra lá e pra cá. Troca olhares com a ministra Cármen Lúcia, que retribui o gesto irônico, como quem sabe: apenas mais uma terça-feira na vida de seu colega.

“Mas, em nenhum momento, esse áudio vaza qualquer coisa em relação à colaboração premiada. Ele confronta as ideias e a investigação, o que é normal e muito legítimo dentro do Estado Democrático de Direito em que o devido processo legal tem que ser preservado. Qual é o indiciado, aquele que é preso, o investigado que concorda com o delegado e o juiz?”, indagou Pereira nos minutos iniciais na tribuna.

Seguiu, então, se contrapondo à acusação apresentada pelo procurador-Geral da República, Paulo Gonet, que alega que Cid teria resistido a confessar os delitos. “Ele falou tudo que sabia. Entre falar tudo que sabe e praticar tudo que viu tem uma diferença muito grande.” As sustentações orais das defesas no STF costumam ser profícuas em frases de efeito. “Eu não posso imaginar que Cid tenha tentado dar um golpe de Estado quando ele já estava, em março, nomeado para assumir o batalhão de Goiânia, com casa alugada e os filhos matriculados no colégio. A vida dele seguia fora da ajudância de ordem. E, na verdade, a ajudância de ordem só atrapalhou a vida do Cid, para ser bem sincero”, desabafou. O crime estava ali, confesso. Ele viu tudo, segundo o advogado, mas não participou de nada.

Assumir a existência do delito, mas eximir-se da culpa – transferindo-a para ombros alheios e bem conhecidos – é praxe no direito criminal, garante a advogada criminalista Maria Tereza Grassi Novaes. “Isso acontece porque uma das teses que a gente tem de defesa é a negativa de autoria. O crime existiu, não dá para negar. Mas quem o praticou? Então, terceirizam a responsabilidade para negar a autoria do delito. E é o que tem acontecido neste caso”, explica. A cena se repete em tribunais por todo o país.

Curiosamente, um dos raros casos de grande repercussão em que esse empurra jurídico não ocorreu foi o de Alexandre Nardoni e Anna Jatobá — que reataram, inclusive, a parceria amorosa e seguem juntos. Apesar de corriqueiros, o desfile de dedos em riste e a cisão de confiança ganham, desta vez, relevo distinto. Protagonizam o julgamento do século. Tiram o corpo fora justamente aqueles que se colocaram, corpo e alma, à disposição do autoritarismo. A esquiva dá-se até mesmo fisicamente. No primeiro dia de julgamento, apenas o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira compareceu. No segundo dia, nem ele. Não é pouca coisa.

Mas, se Cid não tentou dar o golpe, quem tentou? Braga Netto, apontado pelo ex-ajudante de ordens como o financiador das ações que culminariam na ruptura? Esse que é o general acusado de orquestrar ataques virtuais contra os então comandantes das Forças Armadas, na tentativa de pressioná-los a aderir ao golpe?

“Preciso dizer, com todas as letras, já no início dessa fala: Walter Souza Braga Netto é inocente.” Assim começou a sustentação de José Luís Mendes de Oliveira Lima, o Juca. Criminalista experiente, defendeu o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu no processo do mensalão e atuou como defensor de Leo Pinheiro, presidente da OAS, na Lava Jato. Sua trajetória em casos complexos é agora essencial. Como defender alguém acusado de fornecer apoio financeiro – numa sacola de vinho lacrada – aos “kids pretos”, que segundo a PGR, planejavam assassinatos do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), e do próprio relator do caso no STF?

“Eu não estou pedindo a absolvição do General Braga Netto pelos serviços prestados ao país. Evidentemente, ele é um homem de passado, mas não é por isso que estou pedindo a absolvição. Peço porque ele não cometeu crime nenhum. Menciono isso porque ouvi o eminente advogado trazendo o currículo do Mauro Cid. Tem currículo, mas tem que dizer a verdade. Não pode mentir”, alfinetou Oliveira Lima.

Foi o último a sustentar oralmente a defesa. Argumentou que a delação de Cid deveria ser anulada, já que demorou 15 meses para revelar a entrega do dinheiro e alterou informações sobre local e data da entrega. Colocou em xeque também a suposta coordenação dos ataques virtuais: como Cid teria organizado o “ataque violento ao Alto Comando se os oito prints que sustentam a tese mostram mensagens trocadas em apenas quatro dias com um interlocutor? Essa é a suposta periculosidade de Braga Netto?”, questionou.

O general é ainda suspeito de incitar os ataques de 8 de janeiro. Na acusação, Gonet destaca: “Mauro César Barbosa Cid ressaltou a relevante participação de Braga Netto na incitação dos movimentos populares, afirmando que ele mantinha contato entre os manifestantes acampados em frente aos quartéis e o Presidente da República”. Oliveira Lima até caracteriza os ataques como “criminosos”, mas dissocia o cliente. “Evidentemente, ninguém pode achar que aquilo foi um passeio no parque. Mas também tenho obrigação de dizer: Braga Netto não teve nada a ver com aquilo”. Segundo ele, durante os ataques, o general estava numa praia debaixo do sol carioca, jogando vôlei.

A bola, portanto, quica para quais mãos? Nas de outro militar da mas alta patente, as do almirante de esquadra Almir Garnier. É provável que ele tenha alguma conexão com a insurreição e o clima golpista que pairava sobre o Brasil. À época, comandava a Marinha e, como expõe a PGR, teria colocado sua tropa à disposição de Bolsonaro. “Repare-se bem que a reunião não se deu para que os comandantes tivessem ciência do grave ato, a fim de que a ele resistissem energicamente. Não! Foram convocados para aderirem ao movimento golpista estruturado. Basicamente, fixava-se que o então Presidente da República prosseguiria à frente do governo do país e se impediria a posse e o exercício do cargo pelo candidato que a população escolheu. O comandante da Marinha chegou a assentir ao convite para a intervenção no processo constitucional de sucessão”, discursou Paulo Gonet, na primeira sessão do julgamento, referindo-se à reunião de 7 de dezembro, quando Bolsonaro teria discutido a minuta de decreto golpista com comandantes do Exército e da Marinha, além do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira.

Diferente dos demais advogados, Demóstenes Torres usufruiu de menos tempo para a defesa. Não por alteração do rito, longe disso. Todos tinham direito a uma hora no microfone. Ele, porém, decidiu gastar 22 minutos rasgando elogios aos cinco ministros à sua frente. Ao relator do caso, declarou ser um dos poucos brasileiros que gostam dele (fã ou hater?) e, ao mesmo tempo, de Bolsonaro. Ao presidente da Turma, Cristiano Zanin, ressaltou sua “cintilância” e eficácia ao defender Lula na Operação Lava Jato. Enquanto Demóstenes, ex-senador que foi de relator da Lei da Ficha Limpa a cassado por envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, se dirigia à ministra Cármen Lúcia, lembrando palestras que acompanharam em Goiás, Moraes abaixava a cabeça, segurava o riso e ajeitava a toga cobrindo o sorriso com o braço.

Depois, veio a louvação ao ministro Luiz Fux, cuja atenção é a mais solicitada neste julgamento. Os réus e suas respectivas representações apostam suas fichas nele para, se não chegar a pedir vistas e ganhar tempo, divergir veementemente de Moraes. “Dizem que vossa excelência passou em primeiro lugar no concurso para o Ministério Público. E isso é um grande feito. Uma pessoa que já começa de forma qualificada e que tem demonstrado isso durante sua carreira”, disparou Demóstenes. O próximo alvo, Flávio Dino. Ponderou que o ministro recém-chegado à Corte ainda poderia ser presidente da República, dada sua juventude. Só então percebeu que o elogio a Fux podia ter saído pela culatra.

Em uma das poucas intervenções dos magistrados, Fux interrompeu: “Passei de carreira para o Ministério Público porque me envolvi mais com a tarefa da judicatura. Achava que o Ministério Público opinava e o juiz decidia. E essa é uma vocação melhor. Biografia a gente tem que defender. Biografia a gente tem que defender”, repetiu, afastando abruptamente o microfone.

Uma pausa toma conta do ambiente. O clima pesa. Demóstenes retomou as homenagens… até chegar à defesa de Almir Garnier. Justificou que não há envolvimento do militar na tentativa de golpe. Se tentaram — no plural — desistiram, disse. E repensou: na verdade, não houve sequer a tentativa. Pediu a absolvição, ou, se não for possível, a redução da pena.

A pergunta permanece: tentaram quem? Qual é a graça do sujeito que atentou contra a democracia? A culpa recairia, então, sobre alguém próximo a Bolsonaro, apontado como cabeça do esquema? Ainda bem que o general Augusto Heleno já não era mais tão íntimo assim do mandatário, já não tinha tanta influência no governo. Ao menos é o que coloca na mesa sua defesa. O advogado Matheus Milanez, aquele que tem fome, assegura que Heleno perdeu relevância junto a Bolsonaro com a aproximação do ex-presidente do Centrão. Para a PGR, o argumento não cola. Gonet cita a reunião ministerial de 5 de julho, quando Heleno afirmou que “se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”.

Bom, então resta alguém para encampar a culpa? Anderson Torres, o ex-ministro da Justiça. Ele é apontado por integrar reuniões com intenção golpista, desacreditar as urnas, e omitir-se, já após a derrota — como secretário de Segurança do Distrito Federal, das providências para evitar a invasão às sedes dos Três Poderes. Em vez disso, embarcou para os Estados Unidos para férias em família. E o mais grave: teve sua participação nas articulações materializada em forma de minuta golpista, encontrada pela PF em sua residência. Documento classificado por seu advogado, Eumar Novacki, como apócrifo. Sem qualquer valor jurídico. Mesmo que tivesse algum peso, aduz, já estava praticamente esquecido no fundo de um armário. Em suas alegações, Novacki pinçou até uma perícia constatando ausência de digitais no papel. Papel que existia na casa de todo mundo, assume.

Que mundo todo é esse? Afinal de contas, o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira nasceu longe do golpismo e conduziu seu caminho na paz, como defendeu o advogado Andrew Fernandes e suas muitas citações literárias. “Sua história começa lá atrás, no dia 28 de agosto de 1958, no interior do meu querido estado do Ceará. Em Iguatu, terra bonita, terra do algodão, ornada e banhada pelo rio Jaguaribe, que, em Tupi, significa Rio das Onças, que curiosamente era a paixão do general Paulo Sérgio, Guerra na Selva, representado por uma Onça”.

Adapta, então, na tribuna, o poema I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias: “‘Guerreiro nasci, sou brabo, sou forte, e digo eu, sou filho do Nordeste’ e o general Paulo Sérgio é um brabo guerreiro do nordeste” porque deixou “o aconchego da família”, a “rede branca” e o “cachorro ligeiro” para estudar em um internado em Fortaleza, aos 11 anos. Ali, conta Fernandes, “começaria a crescer seu espírito pacificador”. “Mal sabia que a vida estava lhe forjando e aperfeiçoando e preparando para um momento decisivo da história nacional”. Acusado de apoiar a narrativa de fraude nas urnas eletrônicas e instigar a intervenção militar. Para a defesa, todavia, Nogueira atuou no sentido oposto, chegando a redigir um discurso no qual Bolsonaro reconheceria o resultado das eleições e trabalhando para “demover” o ex-presidente.

Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro. O nome ecoa entre todos os defensores. “Eu copiei aqui cinco vezes. Disse que o réu, neste caso, o cliente de vossa senhoria, ‘estava atuando para demover o presidente da República’. Demover de quê?”, interveio a ministra Cármen Lúcia. Sem pestanejar, Andrew Fernandes respondeu: “de qualquer medida de exceção”. Teria, então, finalmente, a culpa encontrado colo para repousar?

Na trincheira jurídica pelo ex-chefe de Estado, os advogados Celso Vilardi e Paulo Cunha Bueno negam — negam tudo. Cada qual a sua maneira. O primeiro incumbiu-se da defesa técnica. Entre os principais pontos criticados estavam, novamente, a delação de Cid e o cerceamento ao acesso à totalidade das provas. “A delação, da forma como está sendo proposto nas alegações finais do Ministério Público, não é uma jabuticaba. É algo que não existe nem aqui, nem em nenhum lugar do mundo”, defendeu. E continuou já desenhando o destino que se aproxima. “O que está se pretendendo aqui é reconhecer uma parcial falsidade da delação e, ainda assim, fazer um aproveitamento dela diminuindo a pena. Mas não é, na verdade, uma parte da pena em função de ela ter uma parte de omissões ou contradições. Omissão ou contradição é algo que deve anular a colaboração, ela não pode ser aproveitada.”

Sobre o material coletado pela PF, relatou que recebeu 70 terabytes (TB) de documentos, folhas de cadernos e mensagens trocadas no Whatsapp. Tudo para ser analisado em pouco mais de 10 dias. A título de comparação, um filme em qualidade Full HD ocupa, em média, de quatro a cinco gigabytes. Ou seja, 70 TB equivalem ao espaço tomado por 17.500 filmes em 1080p. Esse argumento reaparece em quase todas as sustentações. E mesmo assim, com tanto documento, reclamou de não ter contato com uma papelada cara à defesa: a prova referente ao general Mário Fernandes e ao Punhal Verde e Amarelo. “Eu quero dizer, vossas excelências, que em 34 anos é a primeira vez que venho à tribuna, com toda humildade, para dizer o seguinte: eu não conheço a integra deste processo. Eu não conheço. São bilhões de documentos”.

Moraes nega que tenha havido cerceamento. Na fala que abriu o julgamento, além de mandar variados recados sobre coragem e independência do Judiciário, na leitura do relatório do processo ele afirmou: “As defesas tiveram acesso a todos os autos e elementos probatórios. Os mesmos elementos em que se baseia a denúncia. Cerceamento de defesa é inexistente”.

Cunha Bueno, por outro lado, questionou o mérito das acusações — numa abordagem muito mais agressiva, e que chegou longe. Chegou à União Soviética. “Vejam, vossas excelências, temos aí o crime de golpe de Estado — tentar depor, mediante violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído. Se nós subtrairmos essa oração explicativa onde é colocada a violência ou grave ameaça como conduta pré-estabelecida, teríamos um tipo penal redigido da seguinte forma: tentar depor o governo legitimamente constituído. Ou seja, teríamos um tipo penal extremamente aberto e com uma perigosa amplitude, notadamente em delitos políticos.” Ao passo em que defende o acusado, os tec-tecs dos teclados ocupam a Primeira Turma, quase como uma orquestra uníssona. Fux olha fixamente nos olhos de Bueno. Moraes grampeia papéis e digita no celular repetidas vezes, como quem já se deixou perder a linha de raciocínio, o feixe de atenção. E Cunha Bueno continua, colocando que o Código Penal Soviético previa um tipo penal exatamente dessa forma: atentar contra o Estado Soviético. Por isso, um indivíduo teria sido processado e condenado sobre essa acusação por, simplesmente, urinar na parede do Kremlin.

O advogado ainda viajou para a França, comparando Bolsonaro a Alfred Dreyfus, militar francês julgado e condenado a prisão perpétua em 1894 por traição e, anos depois, inocentado. Um dos argumentos centrais da defesa de Bolsonaro é um que, não à toa, ressoa fortemente com quem ainda não compreende onde começa o planejamento e a tentativa de golpe de Estado — spoiler: começa quando o aspirante a ditador deixa de delirar na privacidade de seu banho ou de sua alcova e passa a conspirar com outros atores, especialmente os militares. Mas Cunha Bueno insistiu na tese de que, se é que houve algum, Bolsonaro não ultrapassou os limites dos “atos preparatórios”.

O que afirmam ambos os advogados é que não há provas de que seu cliente tenha atentado contra o Estado Democrático de Direito, participado de planos golpistas ou incentivado os atos de 8 de janeiro. Alegam que se trata de uma “sucessão inacreditável de fatos” com o intuito de “tragá-lo” para a trama. Vilardi tentou formular da seguinte maneira sua defesa: “Não tem um e-mail, não tem uma comunicação. Não tem nada. A denúncia está baseada num general que imprime. Que imprime uma minuta no Palácio e no mesmo dia vai ao Palácio do Alvorada. Essa é a prova? Não existe absolutamente nada”.

Mas Cunha Bueno quis dar um passo além, num tom intimidatório, enquanto do outro lado da Praça dos Três Poderes já se articula uma anistia ampla, geral e irrestrita a seu cliente. “Esta Suprema Corte não lida hoje com um caso trivial. Não. Estamos diante de um caso que, como todos e mais do que qualquer um, exigirá a credibilidade da decisão desta Corte. E essa credibilidade terá de ser exteriorizada pelo respeito ao devido processo legal, à ampla defesa, ao princípio do juiz natural, à imparcialidade objetiva, e principalmente em uma decisão calcada em provas contundentes, evidentes, e não simplesmente em narrativas ou suposições. De outra forma, se se prescindir desse mecanismo, teremos um julgamento que será inacabado. Porque ele estará sempre submetido ao irrequieto tribunal do povo.” É uma fala que conta com a mobilização popular anti-Supremo — convocada mais uma vez para ir às ruas neste domingo, em mais um 7 de Setembro sequestrado pelo ex-presidente.

Mas é preciso se agarrar à alguma tábua de salvação a essa altura, diante de uma acusação tão robusta, que chega a sua fase final. De um caso tão grave, como sustenta precisamente o procurador Paulo Gonet. “Os atos que compõem o panorama espantoso e tenebroso da denúncia são fenômenos de atentado, com relevância criminal, contra as instituições democráticas. Não podem ser tratados como atos de importância menor, como devaneios utópicos anódinos, como aventuras inconsideradas, nem como precipitações a serem reduzidas, com o passar dos dias, ao plano bonachão das curiosidades tão-só irreverentes da vida nacional. O que está em julgamento são atos que hão de ser considerados graves enquanto quisermos manter a vivência de um Estado democrático de Direito.”

São essas duas versões que os juízes, agora, avaliam. O julgamento do século chega a seu ápice.

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