A direita na defensiva: uma nova era

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Como uma sequência de erros do bolsonarismo e do Centrão devolveu à esquerda a bandeira anticorrupção e reacendeu as pautas do nacionalismo e da defesa dos pobres
Nos dois últimos meses, a política brasileira passou por uma reconfiguração que parecia impensável há pouco tempo. Pela primeira vez em uma década, a correlação de forças entre esquerda e direita, democracia e autoritarismo, alterou-se de modo visível. Desde 2015, a direita vinha dando as cartas sozinha: empunhava a bandeira anticorrupção, dominava o Congresso, ocupava as ruas e ditava o tom do debate político. A esquerda parecia reduzida a um papel defensivo. Agora, porém, a cena se inverteu. A direita encontra-se na defensiva, dividida e desmoralizada, enquanto a esquerda recupera bandeiras históricas que haviam escapado de suas mãos há muito tempo.
Até meados deste ano, o governo Lula parecia condenado a um desempenho medíocre. Minoritário no Congresso e sem grandes novidades em sua agenda, limitava-se a reeditar os bons tempos anteriores à Lava Jato, sem convencer que pudesse inaugurar um novo ciclo. Mas a conjuntura já não era a de 2010. O fim da globalização, a ascensão das redes sociais e a fragmentação do sistema político mudaram radicalmente o campo de disputa. O Planalto parecia sem rumo, acuado entre pressões contraditórias.
De um lado, a extrema direita pressionava pela anistia a Jair Bolsonaro (PL), exigindo não apenas o perdão pelo golpe fracassado, mas também por um ataque direto ao Supremo, numa estratégia que espelhava o trumpismo. De outro, a direita institucional do Centrão buscava uma anistia “moderada”, reduzindo a pena sem mexer na inelegibilidade, de modo a manter aberta a linha de comunicação com o bolsonarismo e, ao mesmo tempo, preparar Tarcísio de Freitas (Republicanos) como herdeiro. Paralelamente, o Centrão impulsionava a chamada PEC da Blindagem: para a extrema direita, garantia de impunidade; para os parlamentares, a consolidação de um projeto que, desde 2015, buscava transformar o Brasil num regime oligárquico, sustentado pelas emendas Pix e pela apropriação crescente do orçamento.
Esse projeto, porém, tropeçou nas próprias contradições. Ao resistir em votar a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, o Centrão transmitiu a imagem de um Congresso hostil aos assalariados. Ao se opor ao projeto que trocava a jornada 6×1 pela regra 5×2, negou a milhões de trabalhadores a conquista de dois dias de descanso semanal. Eram pautas simples, de apelo imediato, mas o erro estratégico foi fatal: a direita institucional passou a ser vista não apenas como corrupta, mas como inimiga dos pobres.
Foi nesse momento que a esquerda encontrou espaço para reagir. O ato de 10 de julho na Avenida Paulista, quando Lula acusou o Centrão de “jogar contra os pobres”, marcou a retomada da iniciativa política. Pouco depois, veio a inesperada ajuda externa. Em 20 de junho, Donald Trump decretou um tarifaço contra o Brasil, seguido da aplicação da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes. Ficou claro que se tratava de uma tentativa de interferência estrangeira no processo político brasileiro, algo não visto desde a Revolta da Armada, em 1893.
A ironia histórica foi imediata. Ao ressuscitar doutrinas arcaicas como o Destino Manifesto e a Doutrina de Monroe, os Estados Unidos buscavam reatar a América Latina à sua órbita, impondo um modelo de colonialismo autoritário que Hélio Jaguaribe, ainda nos anos 1960, chamara de “colonial fascismo”. Mas o efeito foi o contrário: reacendeu-se no Brasil a tradição do nacionalismo defensivo, que parecia adormecida desde os anos 1990. O governo Lula assumiu esse papel com altivez e prudência, reafirmando a soberania nacional. Num mundo em que os próprios Estados Unidos abandonam a forma democrática, o Brasil despontou, paradoxalmente, como a maior democracia sobrevivente.
O discurso histórico de Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU marcou esse deslocamento.
Ali, ele se apresentou como liderança global contra a internacional reacionária de Trump e defendeu a ordem multilateral e a chamada globalização B — aquela que favoreceu o Sul Global, em vez do Atlântico Norte. É aqui que se revela o fundo da transformação: o avanço do autoritarismo e do imperialismo no antigo Primeiro Mundo, acompanhado de uma pauta regressiva também em direitos sociais, abriu espaço para que a esquerda reorganizasse seu discurso em nome da democracia, dos pobres e do multilateralismo. Não se trata de uma conjuntura passageira, mas de uma reconfiguração estrutural destinada a moldar o novo ciclo histórico que se abre com o fim da globalização.
Nesse cenário, o Brasil voltou a ser visto não como uma potência regional secundária, mas como um verdadeiro laboratório democrático do Sul Global. Enquanto os Estados Unidos se transformam em vitrine do autoritarismo contemporâneo e a Europa se fragmenta sob o peso da extrema direita, o Brasil surge como referência positiva: a maior democracia do mundo em desenvolvimento a resistir tanto às tentações internas do golpismo quanto às pressões externas do imperialismo. A imprensa liberal internacional, que há anos descrevia o país com ceticismo, hoje deposita nele expectativas inéditas: a de funcionar como bastião da resistência democrática diante do avanço autoritário, seja nos antigos países democráticos do Atlântico Norte, seja em contraste com as potências autocráticas emergentes, como China e Rússia.
Outro efeito dessa virada foi devolver à esquerda a bandeira anticorrupção. A aliança entre Centrão e extrema direita para aprovar, em pacote, a anistia e a blindagem revelou-se um tiro pela culatra. Em vez de proteger Bolsonaro e blindar o Congresso, reacendeu a indignação popular contra a corrupção. Pela primeira vez em 20 anos, a direita perdeu o monopólio desse discurso. O julgamento de Bolsonaro, o primeiro a levar um ex-presidente e sua cúpula militar ao banco dos réus por tentativa de golpe, expôs de forma incontornável seu caráter golpista e pusilânime. O processo acelerou a queda de prestígio da família, hoje reduzida a uma sombra do que já representou no passado.
O peso da opinião pública fez o resto. Enquanto o Supremo e o governo orbitam em torno de 40% de aprovação, o Congresso mal chega a 10%. Não surpreende que as manifestações do último domingo tenham rivalizado com as da direita no Rio e em São Paulo e as superado em outras capitais. Foi uma mobilização transversal, que reuniu esquerda, centro e até setores da centro-direita contra a anistia, a blindagem e a corrupção. A reação institucional foi rápida: o Senado fechou questão contra a PEC da Blindagem, e até a versão atenuada da anistia, apelidada de PEC da Dosimetria, perdeu fôlego com a extensão da Lei Magnitsky à esposa de Moraes.
A direita aparece agora perdida na defensiva. Pela primeira vez em dez anos, encontra-se dividida quanto à candidatura presidencial, dilacerada entre nomes e sob o estigma renovado da corrupção. A esquerda, em contrapartida, retoma bandeiras que lhe haviam escapado: a desigualdade, a anticorrupção e o nacionalismo democrático. Pesquisas confirmam essa inversão de forças: Lula reaparece como favorito, até com chances de vitória no primeiro turno. O Centrão arrisca-se a perder cadeiras no Congresso, e a extrema direita vê desmoronar o projeto de dominar o Senado para ameaçar o Supremo.
E como se não bastasse, Trump ofereceu o golpe final. Após breve encontro com Lula na Assembleia Geral da ONU, foi mais comedido ao criticar o Brasil do que ao atacar Cuba e Venezuela. Não mencionou Bolsonaro e, para espanto de seus aliados, elogiou o presidente brasileiro, evocando a mesma simpatia pessoal que Obama já havia registrado. Para a extrema direita brasileira, que sonhava com uma intervenção salvadora, foi um banho de água fria comparável às manifestações de rua.
Tudo isso aconteceu enquanto o governo permanecia quase parado, colhendo dividendos políticos das trapalhadas da oposição.
O balanço é claro. A direita, que por uma década ditou o rumo da política, hoje está desorientada. A extrema direita perdeu o apoio externo para libertar Bolsonaro e não confia em candidatos moderados. O Centrão, frustrado em seu projeto oligárquico, vê-se ameaçado de encolher no próximo pleito. Tarcísio de Freitas, diante do favoritismo de Lula, cogita recuar e contentar-se com a reeleição em São Paulo.
Enfim, tudo se inverteu. Os Estados Unidos, em decadência, sob um governo de autoritarismo desabrido, já não oferecem ao mundo senão um modelo regressivo. O Brasil, resistindo como bastião da democracia e dos valores humanitários, fala de igual para igual à comunidade internacional. A popularidade de Lula cresce, sustentada pelo discurso nacionalista e pela retomada da agenda social. A direita, cega pela corrupção e pelo radicalismo, perde-se no labirinto que ela mesma construiu. Parece, enfim, que o ciclo iniciado em 2015 chegou ao fim — e que um novo mundo começa a se desenhar.
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