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Toni Garrido, Zero Três, Lula e Trump

Toni Garrido decidiu mudar a letra de Girassol. É. No trecho que dizia “Já que pra ser homem tem que ter a grandeza de um menino, de um menino”, agora canta “Já que pra ser homem tem que ter a grandeza de uma menina, de uma mulher.” O que isso quer dizer? Não tenho ideia. Mas o Toni avisa que a versão anterior era machista. Enquanto isso, noutro canto da internet, Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo estão se debatendo com a conversa do presidente Lula com o presidente Donald Trump. O filho Zero Três queimou a largada. Dizia que Lula estava com a agenda cheia para falar com Trump. “Eu só fico imaginando qual compromisso um sujeito pode ter mais importante do que poder conversar com o presidente da maior potência econômica mundial.” Bem, falou isso e, duas horas depois, Lula estava conversando com Trump. O neto de João Figueiredo se saiu um pouco melhor. “Estou em breves férias familiares, mas acordei embasbacado vendo a imprensa comemorando porque Trump colocou Marco Rubio para negociar com o Brasil. Zero de avanço!”

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Esses eram os dois assuntos mais debatidos nas redes brasileiras no início da tarde dessa sexta-feira. E o que eles têm em comum? Ora, tem o fato de que eles representam as preocupações de um pedaço muito pequeno do Brasil. Estamos falando de pessoas alienadas. Mesmo. É que essa coisas das redes sociais, muito onipresentes, criam essa grande distorção. Fica parecendo que boa parte da direita é bolsonarista e que boa parte da esquerda é identitária. Só que nenhuma dessas coisas é verdade. Ontem, no Globo, saiu uma pesquisa imensa da ONG More in Common sobre quem é o brasileiro e quais seus valores. Sabe o que saiu dali? Uma sociedade um tico conservadora, mas no essencial muito razoável, muito moderada e, principalmente, muito parecida em seus valores.

Imagina o seguinte experimento. Bota toda a sociedade numa praça. Todo mundo junto. Aí pega um grupo de direita bem pequeno, mas muito aguerrido. Esse grupo acha que todo mundo diferente dele deveria ou pensar igual a si ou ser defenestrado do convívio social. Pega, daí, um grupo de esquerda com ideias muito diferentes daquela turma de direita, mas a mesma convicção de que só existe um jeito certo de pensar. Dá, para cada um desses grupos, um megafone. Quem faz parte de um dos dois grupos fala muito alto. Todo o resto fala muito baixo. Então aqueles dois grupelhos falam e todo mundo os ouve. A maioria das pessoas não têm isso. Não são ouvidas.

Quem frequenta essa praça sai com impressões bastante claras sobre o que é a direita e o que é a esquerda. E todo mundo estará alienado. Sabe por quê? Porque a maioria das pessoas de direita não são daquele jeito. A maioria das pessoas de esquerda não são daquele jeito.

Essa praça é o Brasil. Essa praça é a maioria das democracias. Se você é uma pessoa progressista que tem amigos conservadores e acha que há um certo exagero na militância identitária, você não está sozinho. Na verdade, você é maioria na esquerda. Se você é uma pessoa conservadora que tem amigos progressistas e realmente preferia não ter de olhar pra cara de Eduardo Bolsonaro mais uma vez, olha só: você representa a maioria da direita brasileira.

Veja bem, Donald J. Trump é uma ameaça à democracia americana e, se a democracia americana se desmontar, este é um presságio terrível para democracias como a nossa. Só que, e isso devia ser óbvio, Trump não está nem aí pra Bolsonaro, nem aí pra Lula, Trump só pensa em si. Se ele for convencido de que é bom negócio melhorar as relações com o Brasil, ele vai melhorar. É claro que Paulo Figueiredo e o Zero Três querem manter a ilusão de que só eles falam com Trump. Não é. O presidente americano puniu o Brasil porque estava julgando Bolsonaro. Aí o Brasil condenou Bolsonaro por golpe de Estado. O que aconteceu? A relação do Brasil com os Estados Unidos melhorou. O problema está resolvido? De jeito nenhum. Mas talvez Joesley Batista tenha argumentos mais sólidos para defender a relação bilateral do que Eduardo Bolsonaro tenha para bombardeá-la. E, no momento, a briga está Joesley 2, Eduardo 1.

Já o Toni Garrido achou que era machista dizer que dentro de um bom homem é preciso haver um bom menino. Sabe, quase todos os homens foram meninos. Nem acho particularmente que a poesia seja boa, tá? Mas ela tem uma coerência. Para ser um bom homem é preciso ter dentro uma mulher? Essa mudança é ridícula porque é transparente. Ele achou que era bom negócio fazer um aceno pros identitários, só isso. Talvez seja um bom golpe publicitário. Porque, olha, funciona. É só fazer qualquer mudança desse tipo em qualquer letra de música, em qualquer livro, em qualquer obra de arte que, eu te garanto, o Twitter vai passar dois dias falando disso, o Instagram vai passar a semana e, como tudo que explode nas redes, a coisa vai transbordar pro Zap. Essa é fácil de apostar.

Por que explode? Pela mesma razão que o bolsonarismo sempre explode. Porque as redes dão voz às minorias mais estridentes e calam 80% da sociedade. O que a gente começa a ter hoje, e não tinha até alguns anos atrás, são pesquisas mostrando que a polarização está concentrada em duas minorias. A gente tem de descobrir como romper isso. Porque nosso país foi sequestrado por dois grupos de pessoas que têm preocupações muito distantes do que importa à maioria.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Opa, só um minutinho aqui. Você conhece as produções originais do Meio? Estou falando de filmes e séries com imagens em 4K, trilha sonora original, fotografia profissional, aquele padrão de cinema mesmo. Em nosso streaming, exclusivo para assinantes premium, você encontra conteúdos especiais como as entrevistas completas do Julgamento do Século, nosso documentário sobre a trama golpista que condenou Bolsonaro. Tem a série do PdP, com o primeiro episódio sobre a sociedade que o algoritmo criou. Nos outros episódios a gente vai refletir sobre o conflito Palestina-Israel. Para você mergulhar nas raízes da guerra entre árabes e judeus. E ainda tem documentários da PBS disponíveis só até o final de outubro. Acesse nomeio.com.br/streaming e descubra um catálogo que você não vê em outro lugar. Depois me conta o que achou.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

O cidadão de bem deve ter direito à posse de arma? 68% de quem votou em Jair Bolsonaro acha que sim. Só 34% de quem votou em Lula acha isso. Quantas vezes vimos pesquisas desse tipo? Veja, a pergunta é importante. E, se fazemos o corte pelo voto escolhido no segundo turno de 2022, vai dar essa imensa diferença. Faz parecer o quê? Faz parecer que há uma divisão radical que separa os brasileiros em dois grupos. O que a metodologia do More in Common, que no Brasil é coordenado pelo professor Pablo Ortelado, da USP, propõe: e se a gente organizasse a sociedade de um outro jeito.

Eles fizeram um patacão de perguntas para dez mil brasileiros, tentando entender seus valores. Dividiram a sociedade em seis grupos. Nas duas pontas temos os progressistas militantes, 5% da sociedade. E os Patriotas Indignados, 6%. O que separa esses dois grupos não tem nada a ver com democracia. O que os separa é que são os militantes mais engajados das guerras culturais. Mulheres trans devem ter direito a usar o banheiro feminino nas escolas? Os dois grupos mais fortemente convictos a respeito de perguntas desse tipo são esses dois. Um não é capaz de sequer tolerar a existência do outro. 5% e 6% de todos os brasileiros.

O mais impressionante é o seguinte. Os 5% dessa esquerda mais aguerrida, mais convicta, estão entre os brasileiros mais ricos, mais bem educados, mais brancos e menos religiosos. Os 6% da direita mais aguerrida? Também um grupo super-educado e muito religioso. De todos os seis segmentos, é o com maior proporção de evangélicos. Mas não pensa aí no pobre de direita, não, tá? Essa turma é outra.

Aí vem a esquerda tradicional, 14%, e os conservadores tradicionais, com 21%. Têm lado, mas simplesmente não vivem a vida em função de política. Não passam os dias nas redes sociais batendo boca. Têm outros assuntos pra tratar no WhatsApp. Os conservadores tradicionais votam sem piscar em quem for de direita no segundo turno, a esquerda tradicional vota no seu. É só que eles têm mais o que fazer.

De acordo com essa pesquisa, a esquerda corresponde a 19% da sociedade e, a direita, a 27%. Sabe quem falta nessa conta? 54% dos brasileiros. Mais da metade. São o que o pessoal da More in Common chama de os Invisíveis. Sempre que falamos de política, sempre ignoramos esse pessoal.

Estes são dois grupos. Os Desengajados e os Cautelosos. Cada um corresponde a 27% da população. Os desenganados são o segmento menos escolarizado e mais pobre. Os cautelosos, o segundo menos escolarizado, o segundo mais pobre.

Os brasileiros mais pobres, esses desenganados, não estão nem aí para política. Se preocupam é com viver um dia após o outro, mesmo. Esses convivem com uma insegurança econômica profunda e, veja que curioso, têm mais simpatia pelo PT do que por outros partidos. Mas são conservadores. Esse aí é o voto que Lula tem mas a esquerda não tem. A identificação com Lula tem peso pra essa turma. É o segmento que menos vota. E é por isso que, quanto menor a abstenção numa eleição, maiores as chances de Lula ou seu candidato vencer. Porque quem não costuma votar, quando vota tem uma probabilidade um pouco maior de votar em Lula.

Os cautelosos são um pouco diferentes. Pobres, menos evangélicos, mais católicos. Mais nordestinos. Alguns têm memória de ter tido fome. E, embora todos sejam conservadores nos valores, no voto se dividem entre petistas e de direita. Esse pessoal, os cautelosos, são os que mais desconfiam das elites, sobretudo das elites intelectuais.

Sabe quem, dentre estes 54% de brasileiros, está preocupado com a letra de Girassol ou com as aventuras de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos? Pois é.

A gente pensa tanto no Brasil rachado entre petistas e bolsonaristas e pensamos tão pouco no Brasil de verdade. Em 2026 há uma oportunidade. As redes, pessoal. Elas são uma ilusão. O que se discute nelas não mobiliza o Brasil lá fora.

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