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Minorias que berram e maiorias silenciosas

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Militantes políticos, à esquerda e à direita, são uma bolha, mas acreditam representar a maioria do país

A direita brasileira é bem maior do que o bolsonarismo, mas o bolsonarismo continua se comportando como se fosse a única e verdadeira direita — e, acima de tudo, como se fosse a voz autêntica do nosso povo. De fato, uma pesquisa recente do Instituto Ideia, feita a pedido do Meio, ajuda a distinguir com precisão as coisas quando se trata do perfil da direita no país: apenas 12% dos brasileiros são efetivamente de direita e bolsonaristas, enquanto 26% se encaixam na direita, mas não são bolsonaristas — uma proporção de um terço para dois terços.

No detalhamento, a diferença é marcada: o núcleo bolsonarista é mais rico, mais escolarizado e mais radicalizado; a outra direita é mais pobre, mais preocupada com segurança pública e custo de vida, menos interessada em guerra cultural. O bolsonarismo, como era de se esperar, é vinculado pessoal e organicamente ao seu líder e coloca a sobrevivência dele acima de outros valores; a direita não bolsonarista tem outras prioridades. São dois mundos com alguma interseção no que diz respeito à autocompreensão ideológica, mas que se afastam em tudo o mais.

A direita bolsonarista é pequena, barulhenta e convicta de que fala pela maioria. A direita não bolsonarista é numericamente maior, mas hesitante, dispersa e, sobretudo, menos visível. A primeira ocupa as redes, pauta o noticiário e define o clima político; a segunda assiste a tudo com muito menor ímpeto missionário e fervor crédulo no seu papel de “salvar o país”. Acontece que, em política, como em muitos domínios da vida pública, a visibilidade costuma valer mais do que a quantidade: quem fala mais alto convence-se (e convence os outros) de ser mais numeroso; quem fala sozinho tem certeza de que todos concordam.

Um levantamento ainda mais recente, produzido pelo think tank More in Common, em parceria com a Quaest, mostra com números e nomes que o Brasil não é simplesmente uma arena dividida entre duas metades que se odeiam. A pesquisa, que entrevistou 10 mil pessoas em todas as regiões, identificou seis grupos politicamente coerentes:

  1. Progressistas Militantes: 5%
  2. Esquerda Tradicional: 14%
  3. Desengajados: 27%
  4. Cautelosos: 27%
  5. Conservadores Tradicionais: 21%
  6. Patriotas Indignados: 6%

Desses seis conjuntos, apenas dois, situados sintomaticamente nos polos — os Progressistas Militantes e os Patriotas Indignados — formam os extremos vocais da polarização política. Juntos, contudo, somam meros 11% da população. Os Desengajados e Cautelosos, que respondem por 54%, constituem o grosso da “maioria silenciosa”: gente que quer tranquilidade, talvez até ver os problemas sociais resolvidos pela política, mas não por cruzadas morais.
No debate público, o que se ouve são os 11%.

Pablo Ortellado, diretor da More in Common no Brasil, explicou que entre os conservadores a diferença entre “tradicionais” e “patriotas” é de intensidade: ambos pensam parecido, mas os patriotas vivem a política como identidade e se reconhecem como bolsonaristas. Já entre os progressistas, a diferença é de pauta: os militantes concentram-se em temas de opressão de gênero e raça, enquanto a esquerda tradicional ainda organiza sua visão de mundo em torno da desigualdade social.

As vanguardas políticas — isto é, as pessoas mais ativas, vocais e envolvidas — não se definem por ideologia, mas por uma atitude principal: a convicção de que representam não apenas o círculo restrito que veem ao seu redor, mas uma massa que não quer ou não pode falar, embora pense e sinta exatamente como elas. O que define um militante — alguém que não apenas se interessa por política, mas já tem um lado escolhido e está convencido de que tem uma missão na mudança do mundo — não é o conteúdo do que ele pensa, e sim a certeza de que pensa pelo país.

Ao acreditar que ‘todo mundo pensa assim’, o indivíduo protege a autoestima e reduz a ansiedade que sente quando se percebe socialmente isolado

Essa certeza é um fenômeno estudado há décadas pela psicologia social e tem nome: viés de falso consenso. Trata-se da tendência que muitos de nós temos de superestimar o grau de concordância dos outros com nossas próprias opiniões. Em bom português: o sujeito toma sua maneira de ver o mundo como padrão supostamente adotado por “todo mundo”. É um atalho cognitivo, mas também um mecanismo de conforto emocional e moral. Ao acreditar que “todo mundo pensa assim”, o indivíduo protege a autoestima e reduz a ansiedade que sente quando se percebe socialmente isolado.

Ocorre que essa ilusão de maioria se transforma, com frequência, em combustível político.

Quanto mais moralizada é a disputa, mais forte o viés. Grupos ideológicos intensos — sejam progressistas, conservadores, religiosos ou identitários — tendem a viver dentro de círculos de semelhança, as tais “bolhas”, o que reforça a impressão de unanimidade. Redes de afinidades, como as redes sociais digitais, somadas à segmentação algorítmica, completam o serviço: como as pessoas acabam sendo expostas quase exclusivamente a quem pensa de forma semelhante, encontram nos outros principalmente versões de si mesmas. O resultado é uma percepção distorcida da sociedade, em que cada facção acredita representar integralmente o verdadeiro povo brasileiro.

A polarização, nesse sentido, decorre menos de um confronto entre ideias e mais de uma competição de maiorias imaginárias.

O falso consenso pode ter efeitos políticos profundos. Ele legitima a intolerância, porque transforma discordância em desvio moral. Se “a maioria pensa como eu”, quem discorda não está apenas errado: está fora da comunidade moral. Daí para a prontidão de calar o outro, punir, excluir ou ridicularizar é um passo curto. O mesmo mecanismo que sustenta o populismo — “eu sou o povo” — alimenta também a arrogância moral de vanguardas políticas, de qualquer polo do espectro ideológico, que se julgam porta-vozes da civilização. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: desaparece o espaço do dissenso legítimo.

A política brasileira recente fornece exemplos de sobra. Patriotas indignados veem em Lula a usurpação de um poder que, por direito, pertenceria à “maioria conservadora”. Setores progressistas radicais, por sua vez, tratam opiniões divergentes sobre costumes ou segurança como se fossem agressões intoleráveis a direitos humanos. Ambos acreditam estar do lado certo — e, mais grave, do lado da maioria. Por isso estão mais dispostos a soltar a voz em público, a transformar seus sentimentos de ultraje moral em performances de punição ou reivindicação, a realizar manifestações e protestos.

Por outro lado, a psicologia tem mostrado que, quanto maior a intensidade da certeza, maior a ilusão de consenso. Ou seja: quanto mais certo se está do que se pensa, do valor da própria causa e do papel que se exerce na transformação do mundo, menos se percebe o mundo real à volta.

As pesquisas citadas revelam um país muito mais fragmentado do que frequentemente supomos. Há múltiplas minorias políticas disputando atenção, recursos e legitimidade. Nenhum grupo chega perto de representar sozinho um terço do eleitorado. Mesmo assim, as minorias mais engajadas dominam a esfera pública porque falam alto, alimentam conflitos e sabem usar os algoritmos da visibilidade. São pequenas em número, mas enormes em ruído.
E o ruído, em tempos digitais, é a nova métrica da força.

Esse descompasso entre barulho e tamanho tem efeitos corrosivos. Ao obter visibilidade desproporcional, minorias militantes criam a ilusão de que o país está rachado em duas metades equivalentes. O cidadão comum, cercado por gritos de um lado e do outro, sente-se compelido a escolher um campo — ou a calar-se. É assim que a “maioria silenciosa” se torna, de fato, quieta e aparentemente aquiescente: não por falta de opinião, mas porque sua voz não se faz ouvir na algazarra política geral.

Mas há algo de mais profundo. O falso consenso não é apenas um engano perceptivo; é também uma autorização moral. Quem acredita falar em nome da maioria sente-se no direito de agir em seu nome. É daí que brota o populismo autoritário — a ideia de que há um “povo verdadeiro”, homogêneo e virtuoso, traído por elites ou minorias espúrias. Essa convicção não é exclusiva da extrema direita. Há versões ilustradas e progressistas do mesmo mito: a crença de que a sociedade decente coincide com “o campo democrático”, e que os demais são bárbaros a serem educados ou cancelados.

Ambos os lados, ironicamente, se sentem nos braços da maioria silenciosa.

O resultado é o que se vê: uma democracia cansada, em que o diálogo cede lugar à catequese

O autoengano tem custo alto. Ele dispensa o trabalho de ouvir, de argumentar, de negociar. Se a maioria já está comigo, por que conversar? A política vira palco de performances morais, não de persuasão racional. Em vez de disputar ideias, disputam-se virtudes. O adversário não é alguém a convencer, mas um inimigo a derrotar. O resultado é o que se vê: uma democracia cansada, em que o diálogo cede lugar à catequese.

Há quem veja nisso um traço inevitável das redes. Mas as redes apenas potencializam uma distorção antiga. Desde os anos 1970, estudos sobre o viés de falso consenso mostram que o ser humano tem dificuldade estrutural de imaginar que os outros pensam diferente. O digital apenas transformou esse traço cognitivo em epidemia política. O que era tendência virou arquitetura: algoritmos alimentam certezas, certezas alimentam engajamento, engajamento alimenta lucro.

E assim se constrói a ilusão reconfortante de que “a maioria está comigo”.

O problema é que não está. O Brasil das pesquisas mostra um país múltiplo, hesitante e menos extremado do que seus intérpretes. Há conservadores pobres que votam à direita sem idolatrar Bolsonaro; há progressistas tradicionais que não se reconhecem na pauta identitária; há milhões de cidadãos que rejeitam tanto a demagogia quanto o moralismo.

Mas esse centro difuso não tem narrativa nem heróis — e, portanto, quase não existe na política.

Reconhecer a ilusão de consenso é um passo essencial para reconstruir o espaço comum. Enquanto cada tribo se imaginar a voz do povo, o país continuará refém de minorias ruidosas. A democracia precisa de maiorias reais, feitas de discordâncias administráveis, não de unanimidades imaginárias.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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