Mamdani para Esquerda e Centro
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A eleição de Zohran Mamdani traz lições para o Partido Democrata, nos Estados Unidos? Mais do que isso, traz lições para a esquerda para além dos Estados Unidos? E para o Centro liberal? A resposta é, sim, traz. Mas calma, nem todas as lições são óbvias. Algumas das características do sucesso de Mamdani, como candidato, são muito tipicamente novaiorquinas e não se aplicam ao resto dos Estados Unidos, quanto mais ao mundo. Às democracias ocidentais. Mas tem outros pontos que fizeram parte da campanha que têm eco para muito além da cidade.
Antes de tudo, Mamdani jamais será presidente dos Estados Unidos. Ele nasceu em Uganda. De acordo com a Constituição, apenas americanos natos podem se candidatar à Casa Branca. Mas ele pode ser Speaker da House, que é tipo presidente da Câmara e é o cargo mais alto do Congresso. O futuro dele é esse. Se tudo der muito certo na Prefeitura, pode também seguir o caminho de Bernie Sanders, que foi prefeito de Burlington, a maior cidade de seu estado, Vermont, e de lá se tornou o senador mais à esquerda do Congresso. Bernie está com 84 anos. Precisa de um sucessor de líder da esquerda Democrata. Elizabeth Warren, outra senadora, é um nome. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez pode ser candidata ao Senado no ano que vem. Mais carismática do que Warren. Tem uma disputa aí.
Esse é meio que o tamanho da esquerda americana, tá? Esquerda como nós a reconheceríamos na América Latina e na Europa, lá são uns cinco, seis deputados federais, dois senadores, e agora o prefeito de Nova York. E esse é o primeiro ponto a compreender sobre o Mamdani no cenário americano. A cidade de Nova York é um dos cantos mais progressistas do país. A Califórnia é barbaramente progressista. Mas essas são exceções. Um político muçulmano, filho de um professor da Universidade de Columbia e uma cineasta iraniana, que se declara socialista, de tempos em tempos pode encantar um lugar como Nova York. É uma cidade do mundo, cosmopolita, e que se orgulha disso. Nova York é onde a expressão “melting pot” surgiu. O caldeirão de gentes diferentes que se derretem e se misturam para virar uma coisa particular, única. E, ironicamente, a cidade símbolo dos Estados Unidos talvez seja uma das cidades menos americanas dos Estados Unidos.
Isso quer dizer que alguém com o discurso de Mamdani não tem qualquer chance de se eleger presidente americano? Calma. Eu não iria tão longe. Só que, antes, é preciso entender que Mamdani representa, ao mesmo tempo, duas esquerdas diferentes. Sim, porque há muitas esquerdas, assim como há muitas direitas. Por um lado, aos 34 anos, com esse perfil cosmopolita, filho de pais sofisticados culturalmente, ele dá liga muito fácil com um tipo muito particular de eleitores jovens, muito comuns nas grandes universidades americanas. O eleitor woke.
Não é só isso. Foi justamente no campus da Universidade de Columbia que se deu o maior conflito entre o governo Trump e os estudantes que se levantaram contra Israel por conta da guerra em Gaza. Um dos intelectuais mais influentes do mundo woke, do mundo identitário, é Edward Said, professor de Columbia, que morreu em 2003. Ele popularizou dentro da academia, nos anos 1970 e 80, a ideia de Orientalismo. Ele é o pai intelectual do conceito de Decolonialismo. O antropólogo Mahmood Mamdani, seu colega em Columbia, era também um de seus mais próximos amigos e colaboradores. Amigos íntimos mesmo, de se frequentarem, de um ajudar o outro quando tinha algum apuro. Pai de Zohran. O discurso que os estudantes de Columbia mobilizados contra Israel era puro Said. Era puro Mamdani pai.
Neste momento da história, em Nova York, com Donald Trump na presidência, aqueles estudantes e os não-estudantes mas que estão ali pela faixa dos vinte anos e são igualmente bem-educados, progressistas, novaiorquinos, pertencem pesadamente a este universo que constrói esse discurso. Mamdani é um político talhado para se encaixar no seu ideal de candidato. Só tem um problema: o resto dos Estados Unidos, inclusive muita gente que vota Democrata, criou verdadeiro horror a este movimento. O considera radical, alienado, e autoritário. Aqui não importa se concordamos ou não. É como é percebido. Em Nova York, na Califórnia, vai ter muito lugar em que o eleitorado vai gostar. No resto do país? Não tem chance.
Só que, e esse “só que” é muito importante aqui, Mamdani pertence a outra esquerda. Uma esquerda que tem um pesado discurso econômico preocupado com desigualdade, que deseja maior presença do Estado na economia. Intervencionista e distributivo. Sua campanha foi feita com inteligência. Ele quase apagou o discurso woke, sabia que já tinha aqueles eleitores garantidos. E jogou lá pra cima o discurso econômico. Esse é um discurso que encontra muitos eleitores. Tanto a esquerda quanto o Centro Liberal precisam aprender muito sobre este lado de Mamdani e, principalmente, com seus eleitores.
Não bastasse, tem uma última lição. 34 anos. Não pertence mais ao mundo da televisão. Pertence ao mundo do Instagram e do TikTok. Para ele, essa é a comunicação mais natural. Mamdani é um político que não está na direita e faz redes sociais como ninguém.
A globalização dos anos 1990 e início dos 2000 foi muito boa pra uma quantidade muito grande de pessoas. 23%, quase um quarto da população mundial, passava fome quando o Muro de Berlim caiu. Em 2020 esse número estava por volta de 9%. Para os muito pobres, a globalização representou uma melhoria de qualidade de vida sem igual. Na Ásia, a classe média explodiu. Uma quantidade gigante de pessoas teve uma melhoria sem igual de qualidade de vida. O número de muito ricos também aumentou.
Mas a globalização teve custo para dois tipos de pessoa. Operários do mundo desenvolvido perderam empregos que pagavam bem e eram estáveis. Despencou o número de vagas boas para homens com ensino médio, principalmente nos Estados Unidos e Europa, mas também na América Latina. E a classe média tradicional no mundo desenvolvido estagnou. Não teve ganho relevante, alguns até pioraram de vida. Então, na Europa e nos Estados Unidos, a distância entre os muito ricos e a classe média e os operários ficou gigante.
No mundo das empresas, vimos uma concentração imensa de alguns grupos. Formação aberta de monopólios e oligopólios, principalmente na nova elite da indústria de tecnologia. Temos problemas de regulação. Para os mais jovens, essas coisas se juntam. A tecnologia vai aos poucos tornando mais difícil acesso a bons empregos para recém-formados. Nas grandes cidades do Ocidente, essa concentração de renda por um lado, e o achatamento da classe média tradicional do outro, cria um problema mais agudo. O valor de imóveis vai escalando, morar em centro urbano vai encarecendo muito, porque tem muito mais bilionário e milionário. A classe média profissional e estudada, quanto mais jovem for, mais dificuldade tem em morar no mundo cosmopolita.
Se a esquerda abandona o woke, o identitarismo, que afasta eleitores, e mergulha em propostas econômica, ela terá muito eleitor para disputar com a direita populista. O Centro Liberal não carrega o peso woke, mas precisa revisitar o resultado da globalização. Não devia ser difícil. Liberais são pró-mercado, pró-concorrência, enfrentar monopólios deveria ser natural no discurso. E compreender que regras são necessárias para promover igualdade de oportunidades, que há dois séculos liberais defendem igualdade de oportunidades, deveria ser o suficiente para voltarmos a imaginar políticas públicas que encaram o problema.
Por fim, precisamos todos fora da direita dura um banho de loja em comunicação. Só virá com mais políticos jovens. Gente para quem a comunicação digital é natural, vai no fluxo. A eleição de Zohran Mamdani é simultaneamente fruto de uma cultura progressista e woke que só tem em Nova York. Mas é também fruto de uma concentração de riqueza que está tornando muito, muito difícil para alguém bem formado e com trinta e poucos viver numa cidade global. Nas grandes cidades brasileiras, esse fenômeno também ocorre. Congelar preço de aluguel não vai resolver o problema. Mas isso não quer dizer que outras soluções não sejam possíveis.
Sabe, temos trabalho para fazer. Tem certos temas nos quais só a direita autoritária e populista mergulha. É hora de repensar políticas, de imaginar, de criar. O mundo do século 21 tem problemas que não são os mesmos do século 20. As soluções terão de ser novas.


