Acabou, Bolsonaro
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Aconteceram muitas coisas interessantes nesse fim de semana, não é? E vocês bem imaginam que não estou falando só da prisão de Jair Bolsonaro, né? Porque é mais do que isso. As coisas que aconteceram nos últimos três dias abrem uma janela imensa para compreendermos o fenômeno do bolsonarismo. E, dessa compreensão, põe no centro do palco a pergunta mais importante que temos para fazer. Tudo leva a crer que esta prisão preventiva se tornará permanente ainda esta semana. O bolsonarismo está acabando de vez?
A pergunta importa, tá? Ela é mais premente do que nunca. Pelo seguinte: na quinta-feira, o senador Flávio Bolsonaro foi para as redes e convocou uma vigília quase na porta da casa do pai. Uma grande oração coletiva, uma grande muvuca, para aguardar a prisão que todos sabem estava por vir. Só que aí o ex-presidente tomou a decisão de meter um ferro de solda na tornozeleira eletrônica, que é a condição fundamental para a prisão ser domiciliar. Gente, do ponto de vista jurídico não faz diferença se ele surtou ou se fez consciente. No momento em que ele se mostra inconfiável para usar uma tornozeleira, não pode ficar em casa. Porque ele é um homem em risco de fuga. E esse é um dos assuntos nos quais a gente vai entrar hoje. O fato é que antecipou-se a prisão. Convocou-se a vigília, o presidente foi preso e aí foram meia dúzia de gatos pingados. Não tem multidões acampadas, não tem multidão na paulista. Não tem milhares. Está entre as dezenas e centenas. A prisão não está mobilizando os bolsonaristas. Por quê? O que isso quer dizer?
E tem dois pontos aos quais quero me ater aqui, pra gente fazer o mergulho que precisamos fazer. O bolsonarismo tem duas características. Uma é que ele é paranoide. Ele se sustenta por paranoia. Por um pensamento conspiratória. Quando os advogados dizem que o ex-presidente entrou num surto achando que a tornozeleira estava gravando, olha, ele é um paranoico sim. Se houve surto, é médico que pode afirmar. Mas ele tem uma mentalidade paranoide, sempre teve. Tudo tem uma grande teoria para explicar qualquer coisa. Desde o tempo em que ele queria espalhar umas bombas, lá atrás, ainda capitão do Exército, paranoia já era um traço importante dele. E isso ajuda a compreender o bolsonarismo demais. O segundo traço, a segunda característica, é a covardia.
Vamos lá. Do Mensalão para cá, a gente prendeu um monte de políticos. José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares, o próprio Lula. Todos se entregaram à polícia. Tem mais. Se entregaram perante as câmeras e erguendo a mão direita fechada. Estavam na luta, mobilizando a militância. Mas não ficou nisso, né? Foram presos também Michel Temer, Moreira Franco, Eduardo Cunha, Rodrigo Rocha Loures. Caramba, acho que quase todo governador do Rio dos últimos 25 anos. Sobra quem? A Benedita? Sergio Cabral Filho ficou seis anos na cadeia. E em penitenciária, tá? Eles não ergueram braço, não fizeram campanha, mas quando a polícia bateu à porta, foram. Ora, são políticos, são ex-parlamentares, trabalham dentro de uma máquina que é um Estado de leis e quando o Estado decide pelo cerceamento de liberdade, você joga dentro.
E no bolsonarismo? Allan dos Santos, Zé Trovão, Carla Zambelli, Alexandre Ramagem. A lista é longa, viu? Bolsonarista rejeita a Justiça brasileira. Acha que não se aplica a ele. Bolsonarista acha que as regras valem pros outros mas não para eles próprios. Pra não falar do Jair, né? Carta pros argentinos pedindo asilo, noite dormida na embaixada húngara. É tal coisa, né? Sobe o carro de som e fala que nem macho. Ou me reelejo, ou me prendem, ou vão me ver morto. E prisão não é alternativa. Pura bravata, não acredita em nada disso.
Como essas duas peças se encaixam? A paranoia e o achar que as regras são para os outros, não para si? E o que entender essa chave do bolsonarismo ajuda a desvendar se o bicho está vivo ou moribundo? Vem comigo, vamos contar.
Vou lançar mão de dois cientistas políticos aqui, tá? O primeiro é o birtânico Michael Freeden. Ele é, possivelmente, a maior autoridade viva no estudo de ideologias políticas. E, mais do que explicar o que diz cada uma, ele tenta compreender a visão de mundo que as pessoas que abraçam cada ideologia emanam. E a mete conservadora, ela é bem diferente da mente socialista e da liberal. É que o conservador parte de uma maneira bem particular de compreender o jeito que a sociedade se organiza. Para ele, a organização social, as hierarquias, o chefe e o funcionário, o marido, a mulher, os filhos, a escola, o quartel, a firma, tudo está organizado de um jeito que veio de muito tempo atrás, foi construído muito lentamente, e que isso promove um equilíbrio sólido mas delicado. Se mexe demais, gera desordem, gera caos, gera uma ameaça a todos. O incômodo do conservador com liberais e socialistas vem principalmente disso. Os dois querem mexer com políticas públicas. De jeitos diferentes, claro, mas querem mexer. O conservador acha isso um risco tremendo.
Agora olha pros últimos 35 anos. De 1990 para cá. Fim da União Soviética, globalização, abertura das nações ao comércio de todos com todos, formação da União Europeia, Internet, comunicação rápida de todos com todos, consolidação de direitos LGBTQIA+, de direitos femininos, ampliação da classe média, urbanização rápida, mudança radical do perfil religioso brasileiro com ampliação dos evangélicos por um lado e dos ateus, principalmente entre os mais educados. Líderes políticos perdem poder para plataformas digitais globais. O perfil do trabalho operário muda para trabalho mediado por plataformas. O desenho da família tradicional entra em colapso, os casais param de ter filhos. E IA já entrando. Olha, se você parte de um olhar que qualquer coisa distinta do que sempre foi é desordem, se conta com lentos movimentos, estamos no caos. Estamos no surto. O mundo colapsou.
Agora pensa o seguinte. Se você acha que a organização da sociedade é um processo de muito séculos, muito lento, isso quer dizer também que, quando as mudanças são rápidas, na sua cabeça, isso não pode ser natural. Não é porque houve uma transformação de base tecnológica que levou a contatos que antes não haviam e isso altera economia e comportamento e valores. Não é porque multidões mudaram de tal forma seu jeito de ser que, coletivamente, isso levou a um rearranjo ainda em curso. Não pode. O conservador, no ambiente que ele entende como a mais pura desordem, acha que tem de ter um culpado.
Aí entra outro cientista político, o americano Richard Hofstadter. Ele propõe a ideia de um “estilo paranoico de fazer política”. Puro Bolsonaro. Bolsonaro sempre foi um camarada conspirador. Por que ele não tinha público grande em 1990? Por que não tinha em 2010? Por que começou a crescer em 2016 e explodiu em 18? Porque os conservadores não estavam assustados antes. Mas conforme compreenderam que o mundo estava acelerando sua transformação, panicaram. E, ao entrar em pânico, foram buscar um culpado. Alguém que explicasse quem, ou que pequeno grupo de pessoas, havia tomado a decisão de mudar tudo secretamente. O Foro de São Paulo, o Marxismo Cultural, as ONGs a serviço de estrangeiros.
Jair Bolsonaro soa cada vez menos atraente para este público. O conservador, gente, gosta de ordem. Não gosta de caos. E talvez, fora do núcleo principal bolsonarista, aqueles 12 a 13%, muitos estejam começando a ver Bolsonaro ele próprio como um agente do caos e da desordem. Será? É uma tese na mesa. Mas isto não quer dizer que outro que apresente outra teoria conspiratória não ganhe espaço. Ou pode querer dizer que exista sede por uma direita que traga tranquilidade, paz, que prometa um governo chato. Sabe chato? Presidente que chega no Palácio to dia 9 horas, saia à 5, faça suas viagenzinhas, cumprimente outros presidentes e não grite, e não faça marola com pouco.
O estilo paranoide de política sempre tem ali seus 10% da sociedade, na direita, que vive mergulhado nele. Ele se amplia por um tempo, em momentos como o atual. De muita transformação. A ironia é que ele não evita a transformação, ela vai continuar acontecendo. Ele só aumenta a dor, o esforço coletivo para lidar com as mudanças, ele só cria mais atrito, faz com que o custo de se adaptar à nova realidade fique maior. Tem uma hora que as pessoas percebem isso.
Sabe o que os cientistas políticos não sabem dizer? Quanto tempo demora pra ficha cair? Oito anos, dez? Vinte? Será que, no Brasil, já caiu? Eu acho que temos indícios de que sim. Depende de alguém na direita comprar a ideia da tranquilidade como plataforma. Depende de alguém, na direita, vestir a camisa do conservador de verdade e rejeitar o tumulto reacionário.


