Uma história da Ação Integralista Brasileira
São muitos os caminhos para compreender o que foi o Integralismo — mas a mensagem mais importante é simples. Foi grande. Pouco antes do golpe getulista de 1937, contava um milhão de afiliados num Brasil de 35 milhões de habitantes. Não apenas simpatizantes, mas afiliados de fato, portanto gente dedicada, que cumpria os rituais, vestia os uniformes. Houve o tempo em que, nas capitais brasileiras e também em algumas cidades do interior, era comum cruzar na rua com gente vestindo a camisa verde, a braçadeira com círculo branco e o Sigma grego em azul. Durante os anos 1930 se diziam fascistas com indisfarçável orgulho. Depois, quando o Eixo já estava derrotado e o tamanho do Holocausto conhecido, disfarçaram. Buscaram reinventar a história com auxílio, até, de alguns na academia. Explicavam que eram conservadores católicos. Mas isso foi depois. No período em que foi ativa oficialmente, entre 1932 e 37, a Ação Integralista Brasileira, AIB, definia a si própria como fascista. E, se são mesmo muitos os caminhos para compreendê-la, talvez o melhor seja começar por uma marcha. É domingo, um dia de tempo ameno em São Paulo, capital. 7 de outubro, 1934. Imagine-se como espectador.
O cenário é a Praça da Sé, que paulistanos logo identificarão. Ainda não há metrô e a Catedral está em construção — apenas o primeiro pavimento e as escadarias frontais foram erguidos. Alguns dos prédios no entorno estão entre os mais altos da capital. O concreto-armado é uma tecnologia nova e edifícios com nove ou dez andares, como o Palacete Santa Helena, ainda são raros. Mas o Santa Helena todo paulistano conhecia: um prédio largo, com um cine-teatro no primeiro pavimento, e inúmeras salas comerciais. Sede de muitos sindicatos. Em frente à catedral. Nos dias de semana, a praça servia de estacionamento para inúmeros Ford Bigodes enfileirados, mas aos domingos costumava ficar vazia. Naquele, muita gente se aglomerava pelas ruas secundárias para assistir o que, prometiam, seria o maior desfile integralista jamais realizado. Dez mil homens uniformizados marchariam, e muitos deles passariam pela cerimônia de batismo perante o führer brasileiro, Plínio Salgado. O Chefe Nacional, cujas ordens qualquer afiliado seguia sem piscar. Por dever.
A marcha desceu a avenida Brigadeiro Luís Antônio desde a esquina com a Paulista, e entrou na praça por volta das 15h30. À frente vinham dois porta-estandartes, com as bandeiras integralista e brasileira, então uma banda marcial, logo após dois batalhões de choque. Um paulista, o outro carioca — vindo da capital federal. E, na sequência, os outros camisas-verdes incluindo os novos recrutas que jurariam fidelidade pela primeira vez. Não faziam o passo de ganso pelo qual os nazistas se tornariam conhecidos, mas andavam em sincronia divididos em pelotões e buscavam impacto. Tão logo entraram na praça, soltaram bombas de efeito moral — as explosões deram um susto em quem assistia. Impacto. E distribuídos em fileiras após fileiras entraram aqueles homens, como que um exército político, causando forte impressão em quem assistia. A banda tocou o Hino Nacional, o Hino Integralista, e marchas várias. Quando já perfilados perante a Catedral se puseram a esperar Plínio e o comandante das Milícias, um historiador da Academia Brasileira de Letras chamado Gustavo Barroso, um pequeno grupo de comunistas à porta do cine Santa Helena tentou improvisar um comício antifascista. Foram calados em segundos. “Anauê”, gritaram os homens, o cumprimento fascista brasileiro que em tupi quer dizer ‘reconheço em você um irmão’. “Anauê”, novamente, “anauê”.
Naquele dia, o que eles não sabiam é que entravam numa armadilha. Se alguém, apenas cinco anos antes, sugerisse que a conversa entre sindicalistas, anarquistas, leninistas e trotskistas seria possível, na esquerda seria tachado de louco. Mas sem que o comando integralista o desconfiasse, um nobre italiano havia virado este jogo — o conde Francisco Frola. Conde, sim, de Turim, mas desde jovem um dedicado marxista. Era deputado federal quando assistiu Mussolini chegar ao Parlamento. Exilou-se em fuga do fascismo e estava decidido a não assistir sem resistência ao crescimento da onda nas Américas. Os discursos de Frola uniram, ainda que para uma única missão, todas as frentes de esquerda. E, quando os integralistas se perfilaram, havia snipers plantados em inúmeras janelas circundantes. Snipers que abriram fogo. A Praça da Sé foi testemunha de um espetáculo sangrento. A polícia montada não tinha como reagir, e muitos dos PMs na verdade simpatizavam com os atiradores — que, secretamente, ajudaram.
Não chegaram a dez os mortos naquela que ficou conhecida como Batalha da Praça da Sé. Mas o episódio deixou, na memória da esquerda, uma imagem vívida. Homens correndo de forma desordenada pela rua, apavorados, sem ter bem noção de para onde iam. Por entender que as camisas os identificavam, jogavam-nas para o alto, que flutuavam ao vento antes de cair. A mais de um ocorreu que a imagem lembrava a de um galinheiro quando se entra e as aves correm desnorteadas, algumas arriscando voos rasos. O jornalista e humorista Barão de Itararé, ele próprio um dedicado militante de esquerda, fincou naquele dia, inclemente, um apelido: galinhas verdes.
O que estava em jogo era estratégico. Em finais de 34, Plínio Salgado tentava executar o que muitos outros líderes no mundo buscavam — a fórmula empregada por Benito Mussolini uma década antes. Primeiro, ocupar as ruas com os encamisados. Tornar aquela gente uniformizada, pronta ao combate contra o comunismo, tão comum que passasse a se confundir com o normal. Torná-los primeiro cotidianos, fazer das marchas paisagem habitual, até o ponto em que a organização seria vista como inevitável no poder. Aqueles a quem buscar no auge da crise por sua notória organização. Em alguns países, vinha dando certo. No ano anterior, Adolf Hitler havia se tornado chanceler alemão seguindo em essência a mesma cartilha. Sua SA vestia camisas cáqui. Os fascistas de Mussolini, preto. Os brasileiros — verde. Em Portugal, azul. A cor era apenas detalhe. Como eram detalhe os símbolos. O Sigma brasileiro, a suástica nazista, o fascio — ícone dos tempos da Roma imperial, vários galhos atados. Mussolini o adotou porque, juntos, os galhos se tornam inquebráveis. Cada fascio, cada grupo de fascistas, seria assim. Inquebrável.
Dado o tamanho da população italiana de São Paulo, simpatizantes não faltavam. Metade dos paulistanos eram, se não italianos, filhos ou netos. A Itália fazia ainda parte integral de suas identidades. E não era possível cultivar uma identidade italiana, naquela década de 1930, sem ter posição firme a respeito do fascismo. Ou contra, ou a favor. Foi neste ambiente que a Ação Integralista Brasileira encontrou seus primeiros membros.
A AIB foi lançada num evento fechado, no final de 1932, no Teatro Municipal de São Paulo. Até ali, Plínio Salgado havia sido em grande parte sustentado por Alfredo Egídio de Souza Aranha, um advogado rico, de família tradicional, que uns anos depois fundaria o Banco Itaú. Alfredo, como Plínio, eram até a Revolução de 1930 membros do Partido Republicano Paulista, que havia eleito algo próximo de metade dos presidentes da Primeira República. Com a ascensão de Vargas, o jogo mudou. Aquele era um tempo de angústia em todo o mundo e a busca por ideias novas se acelerava. A revolução russa de 1917 havia assustado muita gente. Mas não só. A Primeira Guerra havia levado ao colapso o Império Austro-húngaro, que a um dia ocupou meia Europa. No seu rastro brotaram inúmeros países instáveis politicamente. Gente demais tinha para si a sensação de que democracias liberais eram frágeis, e que a instabilidade não era econômica tampouco dada pela desestruturação geral do pós-Guerra. O problema estava no regime. A solução de Mussolini era inteiramente nova — um Estado corporativo. Não eram as pessoas que se representavam politicamente, uma república de cidadãos individuais como sugeria a democracia regida pelo liberalismo. Eram as corporações — os sapateiros, os industriais, os professores, os operários, os médicos. Cada pessoa pertence ao organismo como um sindicato de sua corporação, e são as corporações que se fazem representar perante o Estado. Todas as corporações pertencem ao partido, e partido e Estado são o mesmo. Em cada corporação a hierarquia é rígida, e a mesma estrutura é repetida no governo com, no alto, a autoridade máxima, um líder carismático popular. Plínio, Barroso e o terceiro dentre os principais líderes da AIB, o jurista Miguel Reale, tinham o discurso do fracasso da democracia liberal na ponta da língua. E passaram pelo menos meia década o repetindo a quem quisesse ouvir. Muitos queriam.
Mas Alfredo Egídio financiava Plínio desde antes da formação da AIB porque o considerava justamente alguém que pudesse trazer algumas dessas ideias novas. Quando Getúlio chegou ao poder, o advogado chamou atenção de seu primo-irmão, Oswaldo Aranha, para aquele jornalista paulistano. Oswaldo, que era em essência o número dois do novo governo federal, de presto engatou numa conversa continuada com Plínio. Tinha em mente duas preocupações. Uma era a de criar um movimento político forte, em São Paulo, favorável ao governo e que evitasse um novo conflito como a Revolução Constitucionalista de 1932. Outro era interesse intelectual. Naqueles primeiros anos, cogitava que o fascismo pudesse vir a ser uma opção para o Brasil. Nenhum dos dois, nem Alfredo, nem Oswaldo, foram em qualquer momento filiados à AIB. Mas foi seu apadrinhamento — e dinheiro — que fez o partido fascista brasileiro nascer.
Em alguns estados, a AIB foi particularmente forte. No Rio Grande do Sul e Paraná, como em São Paulo, dado o grande número de descendentes alemães e italianos. Mas também no Ceará, na Bahia e em Minas Gerais, onde já havia ocorrido a formação de organizações de trabalhadores de extrema-direita. No Ceará, era a Legião Cearense do Trabalho. Em Minas, o jornalista Olbiano de Melo havia escrito um livro de razoável influência propondo uma ‘república sindicalista’ ao Brasil — um regime corporativo como o fascista. Do interior paulista vinha forte a Ação Imperial Patrianovista. Como a Legião cearense, ligada à Igreja Católica, e ultrarreacionária.
Da forma como Plínio Salgado o explicava, o Integralismo era uma forma de combater a decadência urbana à qual o Brasil havia sido lançado. Nas grandes cidades, homens e mulheres vinham se estrangeirando sob a influência do cinema, da música e da literatura que vinham de fora. Ele, que era escritor da Primeira Geração do Modernismo, defendia que o país precisava se redescobrir. Para Plínio, o brasileiro ideal era o homem do interior, o caboclo descendente dos bandeirantes. Sem abrir mão da industrialização, ele defendia que o país devia se voltar politicamente para o interior, longe das capitais, e que o Estado corporativista seria o processo para fazê-lo. (Juscelino Kubitscheck atribuía a Plínio a ideia da capital no interior.)
Nas últimas décadas, formou-se na academia brasileira um debate sobre a real natureza do integralismo — se pode ser mesmo ou não chamado de fascista. O fascismo é revolucionário, pois pretende criar um modelo de Estado radicalmente distinto e novo. Alguns argumentam que o foco de Plínio naquele Brasil de economia agrícola do interior, católico, em oposição ao industrial urbano, demonstrariam um movimento na essência reacionário. Cujo foco seria o retorno ao passado. A corrente majoritária dos estudiosos aponta para o fascismo — o Chefe Nacional era francamente favorável à industrialização, seu problema com as cidades era o estrangeirismo que se opunha a seu forte nacionalismo. Um nacionalismo, aliás, que já vinha desde o Modernismo — essa busca estética pelo que é novo e que mantém a identidade brasileira era a água comum bebida por todos daquela geração de intelectuais e artistas. Alguns de seus subgrupos, como os patrianovistas, estes sim poderiam ser chamados de reacionários — queriam o retorno da economia agrícola, mais poder para a Igreja e um Orleáns e Bragança no comando. Quando, aliás, o secretário de Doutrina da AIB, Miguel Reale, determinou que a Ação Integralista seria republicana — uma determinação que não poderia ser contestada —, os patrianovistas deixaram o grupo.
No início de 1936, a AIB chegava próxima de seu ápice. No fim do ano anterior, uma mal planejada e por isso desastrada tentativa de revolução comunista havia sido abortada. Foi, também, o começo do fim para os integralistas. Naquele momento, Getúlio Vargas começava a se preocupar com todos os movimentos radicais. Os de esquerda o afligiam mais, só que mesmo os encamisados de verde começavam a ser vistos com alguma desconfiança. Por conta das agitações da extrema-esquerda, baixara uma Lei de Segurança que restringia imensamente a atividade política — foi batizada de Lei Monstro pela oposição. Por conta dela, a AIB teve de aposentar sua milícia — ou, ao menos, disfarçar sua estrutura. Virou um braço atlético da entidade pois não poderia ter mais um exército particular. Só que outra mudança havia ocorrido. Àquela altura, Oswaldo Aranha já era embaixador do Brasil em Washington, e lá havia passado por duas transformações. Uma, política. Se convenceu de que os EUA deveriam ser o parceiro estratégico do Brasil num conflito que parecia se avizinhar. Os americanos já enxergavam os movimentos fascistas como adversários. A outra foi de ordem pessoal — no testemunho da experiência americana, Oswaldo guinou para o liberalismo, afastando-se de vez de qualquer interesse pelo fascismo.
Mas, ironicamente, o tiro que eliminou de vez a AIB saiu de suas próprias armas. No primeiro semestre de 1937, Plínio Salgado encomendou ao capitão Olímpio de Mourão Filho um estudo sobre como poderia ocorrer uma revolução comunista no Brasil. Ninguém jamais explicou o porquê, mas Mourão optou por construir seu texto como se fosse um plano real que assinou com um misterioso Cohen. Pelo que avaliavam ser sua boa experiência com estratégia militar, Mourão havia sido tornado número dois de Gustavo Barroso no comando da milícia. Talvez o objetivo dos integralistas fosse usar o Plano Cohen na campanha eleitoral que se aproximava — Plínio seria candidato a presidente. Talvez quisessem usá-lo como justificativa para um Golpe de Estado. Ou talvez tenha sido mesmo de boa fé — apenas um estudo. Ficará entre os mistérios da história. O texto terminou nas mãos do general Pedro de Góis Monteiro, ex-ministro da Guerra e chefe do Estado-Maior do Exército. Ele eliminou o primeiro capítulo — que deixava claro se tratar de um estudo fictício — e o governo comunicou ao país que havia descoberto os planos de um novo levante comunista. O Plano Cohen virou desculpa para que Getúlio desse um Golpe de Estado, fundando assim o Estado Novo e declarando todos os partidos políticos, incluindo a AIB, ilegais.
Os integralistas deram apoio ao Golpe e se calaram a respeito da fraude que era o Plano Cohen. Apoio em termos — Plínio abriu duas frentes simultâneas. Um de negociação com o ditador na qual esteve à mesa um convite para se tornar ministro da Educação e Cultura, que poderia servir de base para um projeto de doutrinação fascista. Pelo outro lado, permitia que líderes da AIB organizassem um outro Golpe de Estado. A negociação deu água. Em 11 de março de 1938, alguns integralistas chegaram a tomar uma rádio numa tentativa tímida de levante. Dois meses depois, em 11 de maio, um grupo armado invadiu o Palácio Guanabara, residência de Vargas. Foi cercado por horas — e a segunda e última tentativa de Golpe fascista caiu por terra.
Plínio Salgado passaria os anos seguintes no exílio, em Portugal. Quando retornou, após 1945, se elegeu deputado, fundou um partido conservador. Teve relativa importância, mas nada nunca sequer próximo do que havia sido a AIB. Feito general, Olímpio de Mourão Filho voltou a ter influência. Em 31 de março de 1964, foi o primeiro a botar as tropas na rua, decisão que culminou no Golpe Militar daquele ano.