O teatro político das CPIs

Para produzir efeitos práticos e concretos, as comissões, mecanismos que revelam um crescente protagonismo do Legislativo, precisam de algum nível de consenso, diz Creomar de Souza

Os efeitos que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional pode ter dependem, fundamentalmente, da disposição dos parlamentares em levar a cabo o que ali se apurou e de algum consenso em torno de seu produto. E, numa comissão como a do 8 de Janeiro, que nasce mais do desejo de se engajar em redes sociais do que de analisar fatos, esse resultado ainda está para ser testado. É o que analisa o cientista político Creomar de Souza, fundador da Dharma Political Risk and Strategy. “Mas o simples fato de se conseguir apresentar um relatório é um marcador de que há uma correlação de forças pendente mais a favor dos interesses do governo do que da oposição.” Não foi o caso da CPI do MST, por exemplo, que acabou sem um texto final.

Acontece que, como em todo processo político, os efeitos podem estar além do palpável. Na CPI da Covid-19, vale lembrar, embora a investigação não tenha produzido resultados práticos, houve uma mudança de percepção na opinião pública sobre a capacidade do governo Bolsonaro de lidar com aquela crise. Isso se deu ao longo dos procedimentos da comissão, que capturou a atenção e se tornou uma espécie de série da Netflix. “As CPIs têm uma dimensão de teatro político. E isso não é demérito. O parlamentar tem o direito de pegar seu celular e fazer um vídeo para dizer que fulano está errado e o outro, de reagir. Isso é parte do jogo e é parte do próprio processo de mutação da democracia representativa”, explica Souza. Confira os principais trechos da entrevista.

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro concluiu os trabalhos nesta semana. Como o senhor analisa esse instrumento de atuação parlamentar?
A primeira coisa que temos que entender é o modelo de construção e relação entre os Poderes na Nova República. A Constituição de 1988 foi construída dentro de um espírito de dar muito poder ao Parlamento, dar algum poder ao Supremo Tribunal Federal (STF) e tirar alguns atores tradicionais do processo de investigação e de mediação política, sobretudo os militares. Eu faço essa contextualização por uma questão muito simples. De 1988 até a crise de 2013, grande parte da iniciativa legislativa saía do Executivo, que era o grande proponente. Na época do Sarney, havia os decretos-lei. Depois, veio a medida provisória. O Legislativo veio amadurecendo, ganhando robustez. Pode-se dizer que um grande divisor de águas desse momento foi a atuação do [ex-presidente da Câmara] Eduardo Cunha, com tudo aquilo que ele fez de bom e de ruim. Foi o momento em que a Câmara desabrochou e disse: eu tenho poder, eu quero ter poder e, mais do que isso, eu sei como usar o poder. Isso gerou a lógica de um Legislativo cada vez mais capaz de propor agendas e de tocar determinadas questões, até um momento de ápice que é a lógica das emendas de relator.

Mas e as CPIs?
Até a Nova República, em outros momentos de vida democrática republicana, o artifício da CPI existia, mas não gerava resultados. É na Nova República que as CPIs começam a ganhar protagonismo e a ter seus relatórios entregues. É importante lembrar que uma CPI, antes de ser uma comissão investigativa, é uma comissão parlamentar. Então, ela é dependente de duas variáveis importantíssimas: a massa crítica de parlamentares envolvidos no processo e o consenso político, que dê a possibilidade de se ter um texto final efetivamente capaz de dar um direcionamento para a sociedade daquele processo investigativo. A CPI do MST, por exemplo, terminou sem um relatório consensual. Há uma diferença entre aquilo que é expectativa do eleitor e o que é a possibilidade gerada pelo consenso. Vale lembrar a CPI da Covid-19. Em algum momento, essa comissão virou algo como uma série da Netflix ou de streaming. Todo mundo queria assistir, o país parava para ver os depoimentos. Os parlamentares, muito espertamente, perceberam a oportunidade dos 15 segundos de fama em um ano pré-eleitoral. O político saía da sua atribuição, mesmo não sendo membro, e ia para a CPI. Hoje, o país segue dividido e polarizado. Temos um Executivo mais à esquerda, que tem tido capacidade de puxar apoios no Legislativo para tocar sua agenda, e o grupamento que estava no poder até o ano passado e que perdeu capilaridade.

O pedido de CPMI do 8 de janeiro teve origem na oposição, mas os trabalhos foram dominados pelos governistas. De uma certa forma, a CPMI se revelou uma armadilha?
Sim. O grupo político que forçou a mão para ter uma CPMI foi o de oposição. Ele pediu a abertura de uma CPMI para investigar atos antidemocráticos que teriam sido perpetrados pelo próprio governo que sofreu os atos. Ao pedir a CPMI, a oposição tinha expectativa de que o governo ficaria barrando para dizer que havia alguma coisa a esconder. Em termos de engajamento nas redes sociais, pedir uma CPI foi excelente, porque emplacou para alguns a narrativa: “isso tudo é um embuste, o governo federal foi omisso”, etc. Quando se chega no campo da política real, a oposição precisa se debruçar sobre o fato de que havia indícios muito complicados de enfrentar.

A CPI mostrou que há uma diferença clara entre fazer política nas redes sociais — dependentes do clique, do like e da atenção — e fazer política no cotidiano do Parlamento.

E o governo?
O governo, por falha ou por perspicácia, deixou a CPMI passar. E a gente caiu no embate: o governo de um lado tentando aproveitar a oportunidade de colocar membros do governo anterior ou de um grupo político concorrente na berlinda, e uma oposição tentando dizer que tudo não passou de um grande embuste. O problema é que havia os fatos. O grupo que apoia o ex-presidente faz acampamentos ao redor do país, na frente de unidades militares, um dos grupos que está em uma unidade militar em específico, na capital federal, por coincidência saiu caminhando dessa unidade militar e horas depois a Praça dos Três Poderes vira um pandemônio. Ora! A oposição criou uma armadilha para si mesma. Enquanto estava rolando a CPMI, havia o processo de investigação sendo noticiado. A cada informação nova ia se construindo uma árvore difícil de desarmar. É óbvio que, para aqueles que seguem como apoiadores leais do ex-presidente Jair Bolsonaro, o relatório não quer dizer nada. E, para aqueles que nunca foram apoiadores ou seguidores de Bolsonaro, o relatório só reforça aquilo que já é consenso. Mas o simples fato de você conseguir apresentar um relatório é um marcador de que há uma correlação de forças pendente num tema crítico, mais a favor dos interesses do governo do que a favor da oposição.

Uma CPI produz seus efeitos mais no processo que no resultado? No caso da CPI da Covid, por exemplo. Ela representou um momento de virada na opinião pública sobre a capacidade do governo Bolsonaro de dar respostas à pandemia.
É natural, justo e legítimo que o cidadão tenha a expectativa de que os representantes produzam determinados resultados. Esse parâmetro é importante. Isso não significa dizer que os representantes vão entregar esse resultado. Nesse sentido, concordo com a ideia de que a CPI é um processo. Como um processo de impeachment, por exemplo, é tudo menos um processo jurídico. É um processo político. Se o presidente da República tem capacidade de sustentação no Congresso, as evidências de um crime importam menos que o apoio político. Numa CPI, temos a mesma questão. O desenho da comissão no seu nascimento já indica o caminho. Quem é o presidente? Quem é o relator? Isso já dá um indicativo de para onde a comissão vai. Vamos lembrar a CPI da Covid-19, que foi um grande clássico. Houve um presidente oriundo de um estado que tinha sofrido demais com a pandemia, que era o senador Omar Aziz (PSD-AM) e um relator, que não era o autor do pedido, mas era mega experiente no jogo político: Renan Calheiros (MDB-AL). É claro que quem estava do outro lado (o governo Bolsonaro) iria ter dor de cabeça. A CPI da Covid-19 teve impacto direto na percepção das pessoas sobre a capacidade do governo de reagir a uma crise grave.

Mas, apesar do grande palco para alguns parlamentares, houve poucos efeitos práticos.
As CPIs têm esses elementos que vão criando o teatro político. Quando digo teatro, não é demeritório. É porque a política tem o elemento relacional e o elemento teatrológico. O parlamentar tem o direito de pegar seu celular e fazer um vídeo para dizer que fulano está errado e o outro tem o direito de pegar o celular e fazer outro vídeo para dizer que fulano está certo. Isso é parte do jogo e é parte do próprio processo de mutação da democracia representativa. O ponto é quando se debruça sobre o resultado prático eu volto ao início da minha fala. Esse resultado dependerá da massa crítica, ou seja, se os parlamentares estão realmente comprometidos em fazer a investigação e entender aquele objeto. Isso dependerá do consenso em torno da questão. A senadora Eliziane Gama conseguiu mostrar um relatório, mas o deputado Ricardo Salles, por exemplo, na CPI do MST, não conseguiu avançar. O governo conseguiu ir lá e desarmar a bomba e dizer: “Não, isso aqui não é importante para a gente”.

Quando o senhor acha que será possível medir o resultado político da CPMI do 8 de janeiro?
As eleições municipais de 2024 podem ser um termômetro. Há um fenômeno muito interessante sobre o qual gosto de me debruçar: no Brasil, os ciclos eleitorais nascem nas eleições municipais. Por exemplo, o ciclo eleitoral que elegeu Bolsonaro nasceu em 2016, com o João Doria propagandeando que não seria um político, mas um gestor para São Paulo. Aquilo trouxe de reboque um efeito quase catártico de rejeição à política que já estava sendo gestado em 2013. Era o movimento antipolítica. E Bolsonaro representou isso. Era o candidato antipolítica, dentro da política. O que que mudou em 2020 foi que houve uma nova tendência das pessoas buscando resolver problemas presentes e futuros olhando para o passado. Um grande indicador disso foi a eleição do Eduardo Paes para prefeito do Rio, sendo que ele havia saído da prefeitura da cidade muito mal avaliado. O eleitor votou olhando no para-brisa, mas a solução estava no retrovisor. Em 2022, essa tendência vem para a eleição presidencial, com a eleição de Lula. Em 2024, a grande variável será a performance econômica do governo.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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