‘Não vale a pena pagar para ver’, diz Levitsky sobre Milei

Para o autor de ‘Como as Democracias Morrem', embora haja um bom nível de solidez nas instituições argentinas, a chapa de ultradireita ameaça fundamentos do país, como a repulsa à ditadura

Steven Levitsky é um cientista político com duas especialidades: a de autopsiar democracias e a de dissecar as instituições políticas da América Latina. Imagine, então, a acuidade do microscópio com que o coautor de Como as Democracias Morrem acompanhou as eleições do último domingo na Argentina, um dos países sobre o qual se especializou, em que o radical Javier Milei despontava como favorito. Seu oponente peronista, Sergio Massa, acabou levando a disputa para o segundo turno. Mas, para Levitsky, Milei segue sendo uma enorme ameaça. Mais que isso. Ele enxerga na sua candidata a vice, Victoria Villarroel, uma negacionista das atrocidades da ditadura, um perigo ainda maior. “Ela é capaz de romper algo que a Argentina conquistou e que é o que mais me emociona neste país, a ideia do ‘Nunca Más’”, diz Levitsky ao Meio.

Quando se entra no perfil do professor em Harvard, está registrado ali que o curso que ele ofereceu em 2022, o GOV1295, seria um exame da “dinâmica das mudanças políticas e econômicas na América Latina moderna, com foco na Argentina, Brasil, Chile, Cuba, México e Venezuela” e que os tópicos incluiriam “a ascensão do populismo e da industrialização com substituição de importações, revoluções e movimentos revolucionários, as causas e consequências do regime militar”, entre outros. Talvez por isso, por estudar há tanto tempo como o autoritarismo se transmutou para não precisar mais da violência das ditaduras e corroer as instituições por dentro, é que ele considere Milei o “mais louco” de todos os candidatos da democracia argentina.

Autor de Argentine Democracy: The Politics of Institutional Weakness e Transforming Labor-Based Parties in Latin America: Argentine Peronism in Comparative Perspective, ambos publicados nos EUA, Levitsky aponta que, ao aderir ao extremismo da chapa de Milei, a candidata Patricia Bullrich perdeu a chance de conquistar a direita moderada — algo que Massa deve se empenhar para conseguir. E compara o que acontece na Argentina hoje com o movimento de outros países latinoamericanos, em especial aqueles em que uma terceira força política emergiu de uma polarização desgastada entre outros agentes. Confira os principais trechos da entrevista.

Como o senhor analisa o resultado da noite do último domingo?
Apesar da boa performance obtida por Sergio Massa, a grande história desta eleição argentina, até aqui, continua sendo Javier Milei. Isso porque ele chegou sem partido, sem equipe, com um discurso radical que tocou a quase 30% do eleitorado. O fato de Massa sair em primeiro lugar não elimina o sentimento que tomou conta principalmente desse extrato de eleitores que estão com raiva, que vivem na periferia, que são jovens que apenas conheceram o kirchnerismo como modelo de governo. Mas se pode qualificar como um resultado extraordinário por Massa ser o ministro da Economia de um país que está próximo de uma hiperinflação.

Javier Milei estava confiante demais?
Talvez sim, embora considere que ele sabia que era uma jogada exagerada a narrativa que ele quis imprimir de que era possível ganhar num primeiro turno. Milei é um extremista instável, e obviamente para ele seria melhor ganhar de uma vez e não ter de se expor mais. Sua própria equipe deve temer essas semanas que faltam para o segundo turno, porque haverá mais tempo para que dê bolas fora. Milei é o mais louco de todos os candidatos recentes da democracia argentina.

No caso de uma vitória no segundo turno do La Libertad Avanza (o partido de Milei), isso pode ser comparado com outras experiências na América Latina?
Há outros casos, sim, que poderiam ser evocados. Classificaria como aqueles em que partidos muito tradicionais, há muito no poder, perdem para candidatos recém-surgidos ou dissidentes. Seria o caso de Andrés Manuel López Obrador, que se apresentou como alternativa ao PRI (Partido Revolucionário Institucional) e ao PAN (Partido da Aliança Nacional). Ou de Bolsonaro, no Brasil, que se posicionou em contraposição ao PT e ao PSDB. E ainda de Nayib Bukele, em El Salvador, que pulverizou o Partido Frente Farabundo Marti para la Liberación Nacional (FMLN) e o Partido Alianza Republicana Nacionalista (Arena). Milei poderia ser o candidato que faria isso com o peronismo e com o Juntos por el Cambio. O que está em jogo aqui e o que veremos agora é se ele tem equipe, habilidade e votos para isso.

E qual foi o diferencial de Massa para obter esses pontos de vantagem?
Simples. Nem Patricia Bullrich nem Javier Milei são políticos de talento. Sergio Massa é. Isso se sabia desde o início da eleição e talvez tenha ficado um pouco ofuscado pelo chamado fenômeno Milei. Bullrich cometeu um erro. Em vez de se comportar como uma candidata de direita moderada, mais próxima ao centro, decidiu deixa-lo vago, e agarrou bandeiras mais radicais, principalmente na segurança, correndo para a direção extrema onde já estava Milei. Massa, justamente mostrando habilidade política, colocou o foco nesse espaço vazio, já tinha o da esquerda do peronismo, já tinha o centro e podia conquistar parte da centro-direita. Aí ele está posicionado. Aí está a explicação da quantidade de votos que teve.

É certo que há um humor direitista neste momento na Argentina, mas Milei e Bullrich foram para a ultradireita, e Massa se meteu no espaço que embarca esse humor direitista, porque tem mais experiência.

A isso, deve-se somar a fortaleza da máquina do peronismo, que se move como nenhum outro partido na Província de Buenos Aires, algo que se mostra claro com a eleição de Axel Kicillof [reeleito governador e que alavancou muitos votos para Massa]. Ele vai ser muito importante nesta nova fase e pode ser um fator parecido ao que foi Maria Eugenia Vidal (eleita governadora da Província de Buenos Aires pelo Juntos por el Cambio em 2015), que alavancou votos para Mauricio Macri. É também uma máquina que está presente em todo o país, com fiscais de mesa, com referentes e representantes em todas as províncias.

Por que o peronismo continua tão forte, tantos anos após a morte de Perón e Evita?
Há muitas diferenças por conta do tempo que passou, mas continua sendo o partido mais identificado com as classes populares. Mileístas ou macristas praticamente não circulam fora da cidade de Buenos Aires. Custa-lhes muito. Mas é preciso ter em mente que o movimento mudou. Naquela época, era confrontativo com a classe média, média alta, hoje está incorporado, virou um partido mais convencional em sua forma. Por outro lado, perdeu um pouco da mística. As pessoas não nascem e já recebem a filiação partidária como antes, e que favoreceu muito a continuidade do peronismo através das gerações. Esse processo de se tornar peronista é um pouco diferente. Mas essa força política se consolidou no sistema partidário.

Há paralelos entre esta eleição argentina com eleições recentes brasileiras?
Talvez com a de 2018, na qual as pessoas não optaram por votar na extrema direita, mas sim para votar contra Lula/Haddad, contra o PT. Ainda que houvesse outras alternativas. Nesta eleição argentina, igualmente, quem quisesse votar “gorila” (como são apelidados os anti-peronistas) não precisava votar no Milei, havia alternativas. Mesmo assim, estes votaram no Milei, como os anti-PT votaram no Bolsonaro.

Milei representa uma ameaça à democracia?
Toda vez que, num sistema presidencialista, alguém decide votar em alguém com pouco compromisso com a democracia, coloca automaticamente em risco a democracia. Portanto, sim, Milei é uma ameaça. Como são e foram outros líderes latino-americanos, que ganharam eleições desprezando a democracia como Nayib Bukele (El Salvador), Alberto Fujimori (Peru) e Hugo Chávez (Venezuela). Toda vez que um líder se elege com um discurso anti-sistema, e depois que começa a governar, não se modera, acaba criando conflito e outros problemas. No caso de Milei, temo muito a figura de Victoria Villarroel [sua candidata à vice, que é negacionista da ditadura]. Ela é capaz de romper algo que a Argentina conquistou e que é o que mais me emociona neste país, a ideia do “Nunca Más”, da justiça aos repressores. Villarroel, relativizando os crimes dos militares, defendendo genocidas, pode causar imenso dano à democracia argentina. No geral, porém, não creio que Milei e Villarroel consigam acabar com a democracia argentina, porque a Argentina está mais dentro do grupo de países como México e Brasil, cujas instituições existem e não sucumbem facilmente ao Executivo. Algo que acontece, sim, no Equador, na Bolívia. De todo modo, não vale a pena pagar para ver, correr esse risco.

E qual seria o risco com Massa?
Completamente outro. Se Massa segue com as políticas governistas de hoje, se não apresenta saídas à crise ou algo novo, haverá muita insatisfação social, que pode escalar. Se ele for mais do mesmo, temo muito pelo que pode acontecer na Argentina.


*Sylvia Colombo é historiadora, jornalista especializada em América Latina, colunista da ‘Folha’ e vive em Buenos Aires. É autora de ‘O Ano da Cólera’

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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