Software do bolsonarismo não roda no sistema da democracia

Onde um liberal-democrata vê constrangimentos republicanos ao exercício do poder político, Bolsonaro viu um obstáculo ilegítimo, criado apenas para impedir que ele governasse como gostaria, um estorvo

Vamos ser francos, o bolsonarismo e a democracia nunca se deram bem. A começar pelo fato de que a democracia realmente nunca lhes chamou a atenção. O que até aí nada tem de peculiar, visto que fora o acordo geral segundo o qual o outro lado é sempre fascista ou antidemocrático, faz tempo que a democracia não está no topo das prioridades dos brasileiros. De fato, em uma pesquisa do fim de janeiro deste ano, da Atlas Intel, em que as pessoas podiam escolher até três tópicos dentre os principais problemas do país, o “enfraquecimento da democracia”, indicado por 11,3%, posiciona-se bem longe das duas primeiras preocupações nacionais, que são a “criminalidade e tráfico” (59,4%) e a “corrupção” (57,6%).

Talvez exagerando um pouco, parece que quem gosta de democracia é intelectual e o Supremo Tribunal Federal. A massa está preocupada mesmo é se os seus filhos chegarão em casa vivos esta noite, o que é compreensível, ou em como punir os políticos e seus amigos empresários que saqueiam a bolsa da viúva. A viúva, no caso, é a Fazenda Pública.

Entretanto, nem mesmo no que se refere ao não dar bola para a democracia o bolsonarismo é igual a todo mundo. Na verdade, o bolsonarismo, como outras versões do populismo autoritário que brotam mundo afora, não foi feito para rodar no hardware da democracia liberal. Para entregar tudo o que promete, precisaria de liberdades de movimento que Estados democráticos simplesmente não podem conceder, ficar imune a constrangimentos de que não se pode abrir a mão e de um desenho institucional incompatível com um regime republicano.

Basta ver como o bolsonarismo e o trumpismo, que conhecemos melhor, lidam com eleições e com as regras do jogo eleitoral. Se Bolsonaro alegou fraude até na eleição em que ele, surpreendentemente, ganhou, por que não manteria a mesma alegação numa eleição que temia perder desde o primeiro dia no governo? É típico do líder carismático acreditar que deve exercer o poder por causa do vínculo orgânico que o conecta profundamente ao povo — entendido “o povo” como a parte mais autêntica de uma nação.

Vale para o populismo de esquerda ou de direita. O líder deveria ser escolhido pelos deuses, ou algo que cumpra essa função, ser ungido pelos sumo-sacerdotes que o reconhecem como tal e ser aclamando pelo “seu” povo e por “seus” exércitos. Não em eleições seculares sob a supervisão de elites que certamente trapacearão para manter os próprios privilégios. Bolsonaro, Trump, e mais uns tantos aí em quem vocês e eu pensamos agora, acham que deveriam liderar nações, povos e exércitos porque merecem, porque são destinados a isso, não porque se submeteram a eleições. Já são “os eleitos” do povo e dos deuses, por que ainda precisam “ser eleitos” pela plebe e segundo métodos mundanos?

Se Bolsonaro e Trump são, ontologicamente, os eleitos, qualquer disposição humana em contrário há de ser um ato espúrio, claro. Um ato contra a natureza das coisas, patrocinado e implementado per perversos.

Por isso mesmo, falam abertamente de “fraude eleitoral” com aquela convicção típica dos crentes, que, como se sabe, vivem da própria fé. Não há sequer necessidade de evidências, do “ver para crer”. “Credimus quia absurdum”, acreditamos juntamente porque não faz sentido, pois é de fé que se trata, não de demonstração. Os “do mundo” demandarão sinais e ainda assim não acreditarão, tal a dureza do seu coração e a realidade do pecado que lhes cega a vista. Quanto a nós, que outra razão há para que o escolhido não seja eleito, a não ser justamente uma conspiração do inimigo?

Não é apenas devido à dificuldade com eleições, contudo, que afirmo que o software do bolsonarismo custa a rodar no hardware da democracia liberal. Na verdade, é justamente no aspecto liberal da democracia que o sistema deles costuma travar.

Os regimes políticos moldados pelas revoluções burguesas do século 18 são um combinado de princípios e instituições cultivados desde a democracia dos antigos com intuições, princípios e normas criadas pelo pensamento liberal. O sufrágio universal, os princípios da igualdade e da liberdade políticas, o método da deliberação como forma de dar legitimidade às decisões políticas, a regra da maioria e a ideia de soberania popular vêm da democracia dos antigos, com consideráveis reinterpretações. Já o liberalismo é fundamentalmente um sistema desenhado para enfrentar o absolutismo, a autocracia, a razão de Estado e os arcanos do poder, e entrou no projeto com os direitos e garantias fundamentais, os sistemas de pesos e contrapesos no funcionamento do Estado, as obrigações de prestação de conta e de responsabilização de quem governa. A herança da tradição democrática do governo representativo diz que todos somos iguais, mas é a parte liberal quem insiste que quem governa não se torna dono do Estado e das suas instituições, não se transforma em intérprete imperativo da Constituição, não pode tocar nos direitos ou nas liberdades dos cidadãos, nem pode moldar a sociedade e os seus valores à sua imagem e semelhança. O liberalismo na democracia liberal tem a ver com tudo o que impede que presidentes, por exemplo, se tornem príncipes eleitos, perpetuem-se no poder ou usem o Estado como se fosse coisa sua e em vez de coisa pública.

O bolsonarismo, o trumpismo e outras criaturas semelhantes são sistemas voluntaristas. Na lógica que compartilham, a vontade do líder — férrea, obstinada e virtuosa por si só — tem o direito (divino?) de prevalecer, porque o líder e o povo são organicamente uma coisa só. Como a democracia liberal, por outro lado, é um sistema de contenções e constrangimentos ao arbítrio, é evidente que o voluntarismo vai se debater contra as instituições e leis justamente criadas para isso. Um governo de leis (rule of law) é justamente o oposto de um governo de vontades.

A história do governo de Bolsonaro, nesse sentido se descolando de Trump, é a história de colisões e contusões. Bolsonaro tentou arrebentar paredes e empurrar limites desde o momento inicial do seu governo. Com surpreendente sucesso em alguns casos, como aconteceu com a cooptação da Procuradoria-Geral da República e o aparelhamento de grande número de instituições que cederam pela pressão ou por falta de convicção republicana. Nem vamos falar das Forças Armadas, porque aí, infelizmente, já falamos de uma parte do bolsonarismo. Por outro lado, com o parlamento, Bolsonaro teve que ceder à barganha, acabando por deixar metade do governo à disposição do presidente da Câmara como caução antecipada para impedir o prosseguimento de pedidos de impeachment. O STF e o Tribunal Superior Eleitoral, entretanto, foram o seu mais retumbante caso de fracasso. Foram o osso duro de roer em que acabou quebrando os dentes.

Bolsonaro tentou também e muito as táticas do chicote, da intimidação ou da servidão voluntária com instituições importantes para a vida democrática, mas fora do Estado, como o jornalismo, as universidades, o campo cultural, os intelectuais. Porque o sistema do bolsonarismo, claramente, não apenas considera insuportável que fatos brutos molestem suas lindas crenças, tem enorme intolerância à divergência e ao desafio intelectual e moral.

Por quatro anos assistimos a esses episódios em que a vontade do líder se chocou inúmeras vezes contra alguma instituição, princípio ou norma típicos da democracia liberal.

E a cada contrariedade respondia com um clamor contra o sistema e as suas malignidades que não permitiam que o Messias exercesse o poder político em conformidade com o seu arbítrio. A cada barreira encontrada, grandes lamentações subiam aos céus e às plataformas digitais, nas quais o líder compartilhava com os seus fiéis as próprias frustrações contra um sistema que não lhe permitia governar, contra um conluio cada vez mais ampliado de conspiradores empenhados em impedir que fossem realizadas as promessas de campanha, contra “ladrões”, “vagabundos” e “ditadores” cuja missão existencial era impedir a verdade que nos libertaria. Grande parte da energia do governo foi gasta em rituais diários de denúncias das contrariedades que lhe eram impingidas por uma grande maracutaia que envolvia todas as forças malignas esquerdistas, globalistas e secularistas que dominam o mundo.

Como assim não vai para a cadeia quem chama o presidente de “pequi roído” ou genocida? Como assim o presidente não pode nomear o próprio filho embaixador em Washington? Só os filhos dele não podem comer filé? Como assim não se pode insultar jornalistas que publicam essas fake news contra o presidente? Quer dizer que não pode cortar o orçamento de universidades que fazem balbúrdia e subversão?

Onde um liberal-democrata vê constrangimentos republicanos ao exercício do poder político, o bolsonarismo viu um obstáculo ilegítimo, criado ad hoc e apenas para impedir que ele governasse como gostaria. Das regras eleitorais aos direitos fundamentais, a democracia liberal era basicamente um estorvo.

E foi muito fácil convencer os seus fiéis de três coisas. Primeiramente, de que todas as entregas relacionadas à renovação mais completa do país, prometidas nas eleições, não poderiam ser feitas simplesmente porque não lhe deixavam governar. Em segundo lugar, que a eleição seria necessariamente fraudada, uma vez que as forças terríveis que se levantaram para impedir que o presidente governasse tampouco iriam permitir que ele se mantivesse no poder. Terceiro, que o país vive, na verdade, sob uma ditadura, entendendo-se por ditadura qualquer forma de exercício do poder que eventualmente anula a vontade do presidente, pune os seus seguidores no exercício das suas liberdades, impõe ao presidente, ao seu círculo íntimo e aos seus seguidores a obediência estrita às leis, principalmente às leis de que eles não gostam.

A convicção de que vivemos sob uma ditadura do Judiciário foi, finalmente, documentada e medida. Pesquisa Atlas Intel realizada depois da última onda de revelações de que Bolsonaro pelo menos planejou e deu os primeiros passos para um golpe de Estado, na semana passada, revela que 47,3% da amostra acham que o Brasil vive hoje sob tal ditadura. Contra apenas 20,9% que acham que o Judiciário cumpre corretamente o seu papel e 16,9% que acham que não há propriamente uma ditadura, “mas muitos juízes cometem abusos e ultrapassam suas atribuições”. Se a fotografia estiver correta, praticamente a metade dos brasileiros comprou a ideia de que existe uma ditadura de toga e só dois em cada 10 acreditam que o Judiciário se comporta adequadamente.

Ora, admitido esse pressuposto não é de se admirar que, depois de tudo o que soubemos nos últimos dias, 34% ainda achem que Bolsonaro nem deveria ser investigado, 41% sejam contra a sua prisão, 42,2% (a maioria) achem que as investigações judiciais contra ele são simplesmente uma perseguição política injusta (contra 40,5% que discordam). E, o que talvez seja mais grave, que 36,3% digam com toda clareza que teriam apoiado a decretação de um estado de sítio depois do segundo turno, feito para “tirar os poderes do STF e convocar novas eleições”. No seio do bolsonarismo, como se pode depreender, gosta-se mais de Bolsonaro que da democracia. Mas é porque, claro, afinal de contas, uma democracia em que uma instituição como a Suprema Corte obriga, constrange e pune Bolsonaro e o bolsonarismo, não importa por qual razão, não é uma autêntica democracia. Na verdade, é já uma ditadura.

Então, não é como eu principiei esta coluna, dizendo que o bolsonarismo não sente atração pela democracia. Na verdade, ele até jura que a adora, declara para quem quiser ouvir que até seria capaz de apoiar um golpe de Estado só para salvá-la da ditadura do Judiciário. Ele não gosta é desta democracia “que está aí”, que não permite que o Eleito se perpetue no poder ou possa governar conforme o próprio arbítrio. Um sacrilégio desses não é aceitável. Então, tá.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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