A surpreendente resiliência da democracia

Apesar de um ambiente internacional cada vez mais desfavorável, o último quarto de século continua sendo, de longe, o mais democrático da história

A democracia tem se mostrado surpreendentemente resiliente no século 21. Ao fim da extraordinária expansão democrática global do final do século 20, várias democracias proeminentes, incluindo as das Filipinas, Hungria, Índia, Tailândia, Turquia e Venezuela, sofreram retrocesso ou colapso. Mas a grande maioria das democracias da “terceira onda” — regimes que se tornaram democracias entre 1975 e 2000 — persiste. Apesar de um ambiente internacional cada vez mais desfavorável, os temores de uma “onda reversa” ou de um “renascimento do autoritarismo” global ainda não se concretizaram. E o último quarto de século continua sendo, de longe, o mais democrático da história.

A democracia sobreviveu ao fim das condições globais que ajudaram a impulsionar a terceira onda. Começando no sul da Europa em meados dos anos 1970, varrendo a América do Sul nos anos 1980 e atingindo o pico na década seguinte ao colapso da União Soviética, a onda quase triplicou o número de democracias no mundo (de 36 em 1975 para 95 em 2005, de acordo com o projeto Variedades da Democracia [V-Dem]). Essa expansão democrática sem precedentes foi apoiada por um ambiente internacional excepcionalmente favorável. A era pós-Guerra Fria, aproximadamente entre a queda do Muro de Berlim (1989) e a invasão do Iraque liderada pelos EUA (2003), foi mais favorável à democracia do que qualquer outro período da história. O colapso soviético fez o governo de partido único cair em descrédito enquanto modelo de regime e eliminou a principal fonte de apoio externo a essas ditaduras. Também destruiu a razão de ser das ditaduras anticomunistas.

A queda do comunismo levou a um breve, mas consequente, período de hegemonia liberal ocidental, durante o qual os Estados Unidos e a União Europeia foram as principais potências econômicas, militares e ideológicas do mundo. O virtual monopólio do Ocidente na provisão de assistência econômica criou fortes incentivos para que os Estados periféricos adotassem instituições ao estilo ocidental, particularmente eleições multipartidárias. A UE usou uma condicionalidade estrita de adesão para incentivar a democratização na Europa Central e Oriental, enquanto Washington aplicou pressão econômica, diplomática e, ocasionalmente, militar para desencorajar golpes de Estado e incentivar autocratas a deixar o poder ou a realizar eleições competitivas.

Essas mudanças geopolíticas tiveram consequências abrangentes. Privadas de apoio externo e enfrentando graves problemas econômicos, tanto as ditaduras apoiadas pela União Soviética quanto as anticomunistas mergulharam em crise no início dos anos 1990. Em toda a África, na antiga União Soviética e em partes da Ásia e das Américas, autocratas isolados e falidos ou realizaram eleições competitivas ou foram destituídos do poder nos anos 1990, dando origem a dezenas de novos regimes multipartidários. Nem todos esses novos regimes multipartidários eram completamente democráticos, mas muitos deles eram bastante competitivos. Assim, em meados dos anos 1990, a democracia era “o único jogo possível” em muitas partes do mundo.

As democracias performaram acima do esperado na era pós-Guerra Fria

O alcance extraordinário da terceira onda aponta para um fato subestimado: as democracias performaram acima do esperado na era pós-Guerra Fria. Décadas de pesquisas em ciências sociais identificaram uma série de condições estruturais que tornam tanto a democratização quanto a sobrevivência democrática mais prováveis, incluindo o desenvolvimento do capitalismo, uma ampla classe média e classe trabalhadora, uma sociedade civil forte, baixa desigualdade social, instituições estatais eficazes e crescimento econômico. Durante os anos 1990, a democracia surgiu em países com poucas ou nenhuma dessas condições — como Albânia, Benin, Bolívia, El Salvador, Gana, Honduras, Madagascar, Mali, Mongólia e Nicarágua. Essas democratizações surpreendentes eram frequentemente vistas como um desafio ou até mesmo como uma refutação das teorias estruturalistas estabelecidas, mas uma explicação mais plausível é que as condições internacionais eram tão singularmente favoráveis à democracia que atenuaram os efeitos dos fatores estruturais.

O fim da hegemonia ocidental

As condições favoráveis dos anos 1990 não perdurariam. A ascensão da China e o ressurgimento da Rússia como uma potência iliberal agressiva remodelaram o cenário global, encerrando a hegemonia liberal ocidental. À medida que o equilíbrio de poder se deslocava, a influência das democracias liberais ocidentais diminuía. Cada vez mais, autocratas podiam recorrer a Pequim, a Moscou ou a potências regionais emergentes, como Irã e Arábia Saudita, para obter apoio militar e econômico. Ao mesmo tempo, altas históricas nos preços do petróleo, do gás e de outros produtos minerais de exportação permitiram que muitos regimes autocráticos se estabelecessem (Equador, Venezuela), se consolidassem (Azerbaijão, Rússia) ou se reconsolidassem (Argélia, Camarões, Gabão, República do Congo) no poder. A combinação de apoio externo e recursos abundantes ampliou a margem de manobra dos autocratas, reduzindo sua dependência do Ocidente liberal. Na década de 2010, a democracia já não era mais o único jogo possível.

Simultaneamente, a crise financeira global de 2008, os fracassos dos EUA no Afeganistão e no Iraque e o surgimento de forças iliberais no interior de democracias estabelecidas corroeram o prestígio e a autoconfiança das potências ocidentais, reduzindo também sua disposição e capacidade de promover externamente a democracia. A UE, que havia sido tão influente no sul da Europa nos anos 1970 e na Europa Central nos anos 1990, pouco fez para combater o autoritarismo emergente na Hungria, na Sérvia e em outros lugares na década de 2010. Da mesma forma, enquanto as administrações dos EUA haviam intervindo com sucesso para bloquear tentativas de tomada autoritária do poder no Equador, Guatemala, Haiti, Paraguai, República Dominicana e em outros lugares no final do século 20, Washington não foi capaz de fazer o mesmo em El Salvador, Honduras, Nicarágua e Venezuela no século seguinte.

Assim, na década de 2010, os custos externos do autoritarismo haviam diminuído significativamente. Mesmo governos de Estados periféricos com laços estreitos com o Ocidente, como El Salvador, Hungria e Nicarágua, descobriram que podiam atacar as instituições democráticas impunemente.

Igualmente desafiadoras para muitas democracias da terceira onda foram as dificuldades inerentes a governar em “lugares difíceis”. Democracias recentes são geralmente mais propensas ao colapso, mas são especialmente propensas a crises em Estados fracos, com economias voláteis, desigualdade arraigada e pobreza e violência generalizadas. No início do século 21, muitas novas democracias enfrentaram todas ou quase todas essas condições.

Percepção versus realidade

Se os principais índices sugerem apenas uma modesta erosão da democracia global, o que explica a percepção generalizada de um declínio acentuado? Vemos várias razões. Primeiro, a eleição de líderes iliberais ou autoritários é frequentemente confundida com retrocesso democrático. Uma segunda razão é que os casos de retrocesso democrático são, frequentemente, de curta duração. Muitos dos autocratas eleitos que subverteram instituições democráticas no século 21 perderam o poder no período de uma década, resultando, muitas vezes, em um “retorno” à democracia. Uma terceira razão é que os casos de retrocesso democrático foram compensados por avanços democráticos em outros países. Armênia, Colômbia, Gâmbia, Libéria, Malásia, Moldávia, Nepal, Senegal, Serra Leoa e Sri Lanka fizeram avanços democráticos nos últimos quinze anos, mas esses casos receberam menos atenção — tanto da mídia quanto de acadêmicos — do que retrocessos bem conhecidos como na Hungria, Turquia e Venezuela.

A erosão democrática neste século foi modesta. A surpreendente persistência de regimes democráticos e quase democráticos está apoiada em dois fatores estruturais distintos: em alguns países, ela se baseia na força da sociedade, que é, em grande parte, um produto do desenvolvimento socioeconômico; em outros países, ela se baseia — de forma mais precária — na fraqueza autoritária, que é, em grande medida, um produto da incapacidade do Estado.

Décadas de estudos demonstraram uma correlação robusta entre desenvolvimento econômico e estabilidade democrática. Ao aumentar a capacidade dos cidadãos de se organizarem independentemente do Estado, o desenvolvimento econômico cria as bases estruturais para uma oposição viável. Democracias ricas não são imunes a retrocessos, como deixam claro acontecimentos recentes na Hungria, Israel, Turquia e até mesmo nos Estados Unidos. Mas democracias ricas são notavelmente mais robustas do que as mais pobres. Até 2022, vinte democracias da terceira onda estavam no grupo de alta renda ou muito próximos dele. Incluindo a Bulgária (que fica um pouco abaixo do limiar do Banco Mundial), são eles: Chile, Chipre, Coreia do Sul, Croácia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Grécia, Hungria, Letônia, Lituânia, Panamá, Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia, Taiwan e Uruguai. Destes, dezenove são democracias estáveis. A única exceção é a Hungria.

O desenvolvimento econômico não pode explicar a resiliência de todas as democracias da terceira onda

No entanto, o desenvolvimento econômico não pode explicar a resiliência de todas as democracias da terceira onda. Mesmo em países com condições estruturais menos favoráveis, muitos regimes democráticos ou quase democráticos — regimes com eleições altamente competitivas e alternância regular de poder, mas que não atendem a todos os critérios de democracia liberal, como Albânia, Benin, Geórgia, Indonésia, Malawi, Moldávia, Senegal, Ucrânia e Zâmbia — persistem no início do século 21. Essa persistência está em grande parte baseada na fraqueza autoritária. Assim como as novas democracias, a maioria das novas autocracias é frágil. É relativamente fácil para um político com tendências autoritárias chegar ao poder em uma democracia (Bolsonaro no Brasil ou Trump nos Estados Unidos, por exemplo), mas consolidar um regime autoritário é muito mais difícil.

Os esforços recentes para consolidar o autoritarismo foram frequentemente prejudicados pelos inúmeros desafios de governar em países de renda média com Estados fracos. Em toda a África, América Latina e partes da Ásia, instituições estatais fracas resultam em níveis moderados a altos de corrupção, oferta baixa e desigual de serviços públicos, déficits fiscais crônicos, gastos sociais insuficientes e, em muitos casos, violência generalizada. Esses problemas representam uma ameaça às novas democracias, mas também afligem as autocracias emergentes. Nos últimos anos, diante da erosão do apoio popular, presidentes autocráticos ou com tendências autocráticas na Albânia, Bolívia, Brasil, Equador, Honduras, Macedônia, Malawi, Moldávia, Nigéria, Senegal, Sri Lanka, Tailândia, Ucrânia, Zâmbia e em outros lugares têm perdido eleições ou foram forçados a ceder o poder a sucessores que governaram de forma mais democrática.

Sérios desafios

Para deixar claro, nada disso significa que está tudo bem. As democracias em todo o mundo enfrentam sérios desafios. O poder chinês e a agressão russa representam ameaças reais, assim como o crescente iliberalismo e polarização dentro de muitas democracias ocidentais. E, por razões que estamos apenas começando a entender, o descontentamento público e a desconfiança em relação às elites e instituições políticas aumentaram dramaticamente em democracias de todo o mundo. Nesse ambiente difícil, algumas democracias consolidadas e proeminentes, de Hungria e Polônia a Brasil, Estados Unidos, Índia, Israel e México passaram por dificuldades. Esses acontecimentos são profundamente preocupantes. E podem piorar, especialmente se a crise democrática nos Estados Unidos persistir ou se aprofundar.

Para proteger a democracia, no entanto, devemos ter uma compreensão clara de suas vulnerabilidades e de suas forças. Mudanças sociais, econômicas e tecnológicas de longo alcance representam desafios para as democracias do século 21, mas essas mudanças também empoderam forças pró-democracia em todo o mundo. E, embora forças autoritárias permaneçam ativas em muitos lugares, tornou-se mais difícil, na maioria desses lugares, consolidar a autocracia. Se a riqueza e as cidades continuarem a se expandir, essas vulnerabilidades autoritárias podem se aprofundar ainda mais. Nada disso garante a sobrevivência da democracia. Mas isso deu às forças democráticas, em um número sem precedentes de países, uma possibilidade de sucesso.

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