Uma rapsódia em quatro atos

Uma análise do governo, da oposição, do STF e da suspensão do 'X' em busca de sentido para o quadro do último mês

Muita coisa aconteceu de um mês para cá – tanta, que o leitor e o próprio colunista, desnorteados, correm de um lado para o outro para entendê-las: reformulação das regras do orçamento secreto, o fenômeno Pablo Marçal, o STF transformado em câmara de mediação, a decisão de Moraes de suspender o X. Aflito, o colunista tentará reduzir a própria ansiedade – e, por tabela, a do leitor – examinando o quadro como um todo e cada elemento separadamente: governo, oposição, Supremo Tribunal, suspensão do “X”. A análise pode destoar do senso comum e pode, claro, estar errada. Mas, se ela servir para reduzir a ansiedade do colunista, este se dará por satisfeito.

1. Saindo das cordas? A bonança relativa do governo no momento atual

O governo Lula enfrentou várias dificuldades desde o início de 2023. Internamente, foi criticado pela instabilidade econômica, com uma gestão fiscal vista como incerta, e pela falta de uma base sólida no Congresso, onde o Centrão buscava ampliar seu poder sobre o Executivo. Além disso, a política externa do governo foi alvo de críticas pela sua postura em relação à guerra na Ucrânia e ao conflito em Gaza. Para se equilibrar, Lula renunciou a várias agendas mais à esquerda para obter maior estabilidade política. Isso incluiu a adoção de uma postura mais moderada em temas como reformas econômicas e políticas sociais. Para garantir a governabilidade, o governo fez concessões significativas, como a manutenção de uma política fiscal mais rígida e a moderação em pautas ambientais e trabalhistas, o que gerou críticas de setores progressistas que esperavam uma agenda mais alinhada às promessas de campanha. Preferiu adotar uma estratégia de cunho mais social-democrata, dentro das margens disponíveis, voltada para o crescimento econômico.

Após um ano e meio de governo, Lula parece colher alguns frutos de sua estratégia, com a economia superando as expectativas iniciais. O crescimento do PIB foi revisado para cima, e as taxas de desemprego têm caído, indicando uma recuperação mais robusta do mercado de trabalho. Como resultado, a popularidade do governo mostra sinais de estabilização, com cerca de 53% dos entrevistados avaliando-o como ótimo ou bom – um patamar bastante apreciável para os atuais padrões internacionais. O governo também fez progressos na contenção do uso de recursos orçamentários pelo Congresso, graças ao “judiciarismo de coalizão”. Liderado pelo ministro Flávio Dino, o STF decidiu limitar o uso das emendas de relator, conhecidas como “orçamento secreto”, impondo regras mais rígidas de transparência e controle. Após as reações iniciais, líderes do Congresso, como Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, chegaram a um acordo com o STF para implementar essas mudanças, o que ajudou a reduzir as tensões entre os poderes. Discretamente, o governo parece ter saído das cordas e do noticiário negativo.

2. De furacão a vendaval: domesticação e declínio do extremismo golpista

É dever do sistema democrático reprimir quem tente destruí-lo. Como advertia Joaquim Nabuco, instituições que não se defendem, morrem. Contra o golpismo de Bolsonaro, o sistema lançou mão de todos os recursos legais para puni-lo e desestimulá-lo a seguir sua carreira. Declarado inelegível e pressionado com a possibilidades de prisão, Bolsonaro domesticou-se para tentar, pelas vias regulares, preservar seu ascendente como líder da direita, necessário para obter uma possível anistia. Ao mesmo tempo, a moderação de Lula e a ênfase no crescimento econômico fizeram recuar parte da guerra cultural antes onipresente no debate público.

Como resultado, a direita perdeu parte do ímpeto. Não perdeu hegemonia, nem deixou de sonhar – parte dela, ao menos – com um populista radical que garanta os privilégios ameaçados – desde os traders inescrupulosos do mercado financeiro até os patrões que não querem pagar direitos, impostos ou multas; ou gente que não tolera a ascensão de pobres, pretos, mulheres, ou o pluralismo religioso. Ocorre que, representada desde 2018 em todos os níveis institucionais, fruindo das delícias do sistema, parte da tração golpista de perdeu pela ação combinada da repressão institucional e acomodação ao poder. Em outras palavras, parte da direita radical entrou na rotina.

O fenômeno Pablo Marçal pode ser lido – de forma contrária ao senso comum – como sintoma do declínio do extremismo. É tanto uma reação do eleitorado radical à domesticação (identificada no insosso Ricardo Nunes) como expressão dela. Embora também seja populista, mitômano e lacrador, cuja ladainha do pobre solitário em luta contra o sistema de novo contrasta com extensa ficha criminal, os elementos ideológicos do bolsonarismo nele aparecem repaginados e redistribuídos em proporções diferentes. O individualismo libertarianiano prevalece sobre o reacionário. Pablo se diz evangélico, mas não se veem pastores, nem igrejas. Deus se limita a sancionar seu êxito empreendedor. O perfil patriarcal e militarista de Bolsonaro também está ausente, tanto quanto a utopia reacionária que evoca as belezas da ditadura e da tortura. Em resumo: ausência de golpismo.

Marçal rebaixa o nível moral do eleitor para que o faça chegar ao seu patamar, já que 'ninguém é santo'.

Outra diferença é que o coach se apresenta aos moderados como um “populista instrumental”, ou seja, um moderado que se faz de radical para obter o voto dos “idiotas”. Da mesma forma, para reduzir a resistência diante de seu prontuário criminal, Marçal rebaixa o nível moral do eleitor para que o faça chegar ao seu patamar, já que “ninguém é santo”. Ele socializa os custos de seus crimes (“quem nunca?”), se faz de vítima (“não tive outro jeito”) e de ignorante (“não sabia”). Tenta, enfim, convencer o eleitorado de que todo mundo tem dentro de si um Pablo Marçal, atual ou potencial. Velha tática, conhecida desde que Gustave Le Bon estendeu também aos conservadores as mumunhas do populismo em sua Psicologia das Multidões (1896).

É cedo para prognosticar o futuro de Marçal. O fato é que Bolsonaro não o controla, e hesitou entre combatê-lo como seu concorrente à liderança da direita – de que precisa em sua busca pela anistia – ou aceitar a condição que o próprio Marçal lhe quer impor de seu herdeiro. Depois de alguns dias de indecisão e briga, o capitão achou melhor canalizar a empolgação para si para não ser visto como derrotado em São Paulo – já que será derrotado no Rio. O essencial para ele, no momento, é mobilizar a direita com um grande comício no dia 7 que, pedindo o impeachment de Moraes, sirva de pressão para mandar arquivar algum processo contra ele. Se puder contar com Marçal, tanto melhor. Quanto a Nunes, não será a primeira nem última vez que largará um aliado na estrada.

3. De “bastião da democracia” a “Conselho de Estado”: as metamorfoses do Supremo

Depois de duas décadas como “vanguarda iluminista”, com a emergência da nova direita e dos conflitos intestinos provocados pela Lava Jato, o descrédito do Supremo Tribunal chegou a tal ponto que no final de 2018 se disse que, para fechá-lo, bastavam um cabo e um soldado. O golpismo de Bolsonaro deu-lhe, porém, a chance de se reinventar como “bastião da democracia”. O ministro Alexandre de Moraes encarnou esse perfil, ao ser encarregado pela condução dos três inquéritos abertos quando a Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal estavam capturados pelo bolsonarismo: 1) o das Fake News, que investiga a disseminação de desinformação e ataques contra ministros do STF (2019); 2) o das Milícias Digitais, que investiga a atuação de grupos organizados que utilizavam as redes para propagar a desinformação e atacar as instituições (2021) e 3) o dos Atos Antidemocráticos, dedicado a investigar a trama e os responsáveis pela Intentona Reacionária de 8 de janeiro (2023). Embora o Supremo tenha validado a constitucionalidade dos inquéritos e as decisões de Moraes, o declínio do extremismo golpista tem reduzido o apoio público aos inquéritos, mantidos em sigilo e cujo andamento se arrasta diante das sucessivas prorrogações dos prazos da investigação.

O Supremo Tribunal Federal parece apostar agora para legitimar-se no exercício de uma estranha função de 'Conselho de Estado do Império'

Para contornar as críticas do Congresso, agastado com o “ativismo” e o “judiciarismo de coalizão”, o Supremo parece apostar agora para legitimar-se no exercício de uma estranha função de “Conselho de Estado do Império”, reunindo os notáveis da república para negociar o implemento das próprias decisões e assegurar a resolução pacífica dos conflitos entre os poderes. É como se, acima dele enquanto tribunal constitucional, estivesse este “conselho de Estado” extraconstitucional cujo pleno parece composto de 15 integrantes: os onze ministros, mais os presidentes da República, da Câmara e do Senado, e o Procurador Geral da República. Também a exemplo do Império, o “conselho” parece também funcionar por seções dependendo da menor magnitude do assunto sub judice: terras indígenas, orçamento secreto, previdência social. No lugar do presidente da República, convida-se o ministro da Casa Civil, da AGU; pode ser chamado também o presidente do TCU. Tudo se pode negociar. O cumprimento das próprias decisões parece subordinado ao objetivo superior de dissipar as tensões com os outros poderes, que ameaçam a posição do Supremo como “poder moderador” – se não mais na chave ativa de “vanguarda iluminista”, noutra, mais passiva, de “câmara da conciliação”. O problema é que, para que este novo perfil surta seus benfazejos efeitos, é preciso transitar do anterior, o de “bastião antigolpista”. Movimento atrapalhado pela prorrogação indefinida dos inquéritos de Moraes.

4. O X da questão: a direita contra Moraes

A relativa bonança do governo Lula, somada ao declínio do golpismo na extrema direita, precipitou o ressurgimento das demandas de um centro direito ou direita que, tendo sido lavajatista, não se aliou, porém, a Bolsonaro. Ansiosos por se livrarem da companhia de Lula depois da derrota do capitão, foram obrigados a seguir junto dele a contragosto devido à tentativa de golpe de Estado. Com a aparente trégua na polarização, voltaram à carga. As queixas são várias. Mas o alvo principal é o Supremo Tribunal, seja por conta do “judiciarismo de coalizão”, pela pretensão de se arvorar em Conselho de Estado ou pela suposta ilegalidade dos inquéritos conduzidos por Moraes. A campanha ganhou “momento” diante da decisão do ministro de suspender a plataforma “X” (antigo Twitter) pela recusa de seu proprietário, o bilionário Elon Musk, a indicar um representante legal de sua empresa para receber citações e intimações judiciais.

Como todos sabem, o X é uma multinacional que por meio de um libertarianismo anárquico, ignora a soberania jurídica dos Estados-Nação em nome da liberdade irrestrita de expressão. Essa esfarrapada bandeira lhe serve para atiçar a Internacional Reacionária e impede o avanço do debate sobre a regulação das redes nos Parlamentos, jogando no fogo os tribunais constitucionais obrigados a agir em seu lugar. Engana-se quem acha que o problema de fundo é o Moraes; Musk faz a mesma coisa em toda a parte onde encontra obstáculos e arranja tretas “libertárias” em favor do seu imperialismo informacional. Como o respeito às suas decisões é a pedra toque da autoridade de qualquer tribunal, qualquer outro juiz teria agido da mesma forma. Natural e inevitável que a extrema-direita aproveitasse o incidente para mobilizar eleitores para seu comício de 7 de setembro, no qual será pedido o impeachment de Moraes. Nem por isso se deve deixar de chamar a atenção para o perigo de atacar o Supremo como órgão politiqueiro, cujos integrantes se moveriam por táticas, dribles ou coisas semelhantes.

Como explicado por Hans Kelsen em obra velha, quanto mais elevado um tribunal, mais lida com questões constitucionais que, forçosamente, são políticas. Também por isso outro jurista, Konrad Hesse, reconhecia em A força normativa da Constituição que os juízes constitucionais agiam politicamente. Agir politicamente, aqui, não significa, porém, agir partidário ou arbitrário. Significa que a lei e a natureza das coisas conferem inevitavelmente ao juiz certa margem discricionária para interpretar a lei e decidir conforme seus sentimentos. Erros, faltas ou excessos decorrentes de seu mau uso encontram remédio no recurso ao colegiado. A responsabilidade impõe não confundir o exercício legal da margem de discricionariedade inerente à atividade jurisdicional em expressão de politicagem ou má fé. Do contrário se apaga a distinção entre política e direito, a legitimidade dos tribunais e, com ela, a democracia. Foi com argumentos semelhantes – o de que a vontade da maioria deve se impor contra a politicagem judiciária – que se aprovou há poucas semanas no México uma reforma que castrou a Corte Suprema e a colocou na dependência do governo.

Como já sugeri antes, o STF, por óbvio, também não está isento de erros e precisa contribuir para reduzir os riscos da reação, atacando suas conhecidas desfuncionalidades. Felizmente, na semana passada, o presidente daquela Corte, ministro Luís Roberto Barroso, indicou que o fim do inquérito das fake news está próximo; que a Procuradoria-Geral da República já estaria recebendo o material para decidir sobre possíveis arquivamentos ou denúncias. Além disso, há sinais de que o inquérito das milícias digitais também pode ser encerrado em breve. Antes tarde do que nunca. Quanto antes, melhor.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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