O papa e a política

'Bergoglio — Una Biografia Política', do historiador italiano Loris Zanatta, analisa o legado político do papa Francisco
Na cabeça do papa Francisco, o mundo se divide entre povo e antipovo. Justamente por estar incondicionalmente ao lado da população mais pobre, em oposição às elites ilustradas que se amparam no secularismo, o legado da atuação política do argentino Jorge Mario Bergoglio no Vaticano pode deixar a desejar. A análise é do historiador italiano Loris Zanatta, professor de História das Américas no curso de Ciências Políticas da Universidade de Bologna, que analisa o papado de Francisco em seu mais novo livro, Bergoglio — Una Biografia Política (editorial Laterza, importado, ainda sem previsão de lançamento no Brasil).
A fragilidade do papa, que aos 88 anos está acamado, não foi a motivação de Zanatta para a obra. Estudioso dos vínculos entre a Igreja e o Peronismo, Zanatta escreveu livros como Perón y El Mito de la Nación Católica (ed. Sudamericana) e El Papa, El Peronismo y La Fábrica de Pobres (importado, ed. El Zorzal) e passa alguns meses do ano na Argentina, onde dá aulas sobre relações internacionais, com um foco específico entre religião e política.
Esse olhar interno das relações políticas argentinas é central em sua análise do legado de Bergoglio. No livro, recorda que o papa ficou amargurado com a aprovação da Lei do Aborto, em 2020, e que, por conta da forte polarização no país, nunca mais voltou ao bairro de Flores, onde viveu grande parte de sua vida, perto do estádio do San Lorenzo, seu time de coração.
Como papa, Bergoglio falha em dois pontos principais, segundo Zanatta. Primeiro ao não conseguir conter os avanços das igrejas evangélicas. A prédica “pobrista”, e em muitos aspectos antimoderna de Bergoglio, não teve nenhuma possibilidade de frear uma demanda da população, que se mostrou pragmática, vinculada à possibilidade de mobilidade social ainda nesta vida. Depois, ao apoiar implicitamente regimes autoritários latino-americanos como os da Venezuela e da Nicarágua, porque “a partir de seu ponto de vista, ainda que sejam maus ou bons, esses regimes nacional-populares são os que têm suas raízes na visão católica do mundo”.
Confira os principais trechos da entrevista que concedeu ao Meio em que trata de política latino-americana, do legado do papa e também das forças que influenciarão o próximo conclave.
Uma das missões de Bergoglio como papa foi colocar algum tipo de freio no avanço dos evangélicos na América Latina, nas igrejas pentecostais. O senhor crê que ele teve sucesso?
Não. E não havia muito como conseguir isso. Se analisarmos bem, esses grupos evangélicos cultivam uma teologia da prosperidade. Nesse sentido, a prédica “pobrista”, e em muitos aspectos, antimoderna de Bergoglio, não teve nenhuma possibilidade de frear uma demanda da população, que se mostrou sempre mais pragmática, vinculada à possibilidade de mobilidade social ainda nesta vida, e ao mesmo tempo em que também é super conservadora. A prédica de Bergoglio é mais mística e tradicional, por um lado, e assistencialista, por outro. Um outro tema importante foi que, na América Latina, como em qualquer outra parte do mundo, veio crescendo de um modo vertiginoso o percentual de agnósticos ou, ainda, daqueles que são não-crentes ou que moldam a religião à sua maneira. Bergoglio tentou atuar aí, mas também sem sucesso. Assim, cresceu uma espécie de religiosidade de tipo individual, ou seja, que as pessoas cultivaram à sua maneira.
O fato de expressar opiniões ou realizar gestos políticos na América Latina ajudou ou atrapalhou?
Difícil fazer esse balanço agora. O papa Bergoglio é um assunto divisivo na América Latina, porque sempre atuou como teólogo do povo e de suas lutas. Em sua cabeça, há uma divisão entre povo e antipovo. E os povos da evangelização são aqueles mais pobres, enquanto o “antipovo” seriam as elites ilustradas. Agora, esta é uma visão simplista e maniqueísta do conflito ideológico na América Latina, e também do resto do mundo. Mas segue a linha do que pensa Bergoglio. Na região, o papa tomou parte todo o tempo dos movimentos nacional-populares, como ele os chama. Não por que se identificasse com eles. Seria absurdo, por exemplo, dizer que o papa é chavista. Mas também é certo que, se olharmos para a Venezuela ou para as crises da Nicarágua ou a de Cuba, o papa ajudou a todos esses regimes para que ficassem no poder, pois, a partir de seu ponto de vista, ainda que sejam maus ou bons, esses regimes nacional-populares são os que têm suas raízes na visão católica do mundo, enquanto seus opositores são as elites ilustradas que querem conduzir a América Latina para que se aproxime de um ocidente secular. Para o papa, é uma visão que não muda, passem as décadas, passe o tempo. No caso da Venezuela, não tenho a menor dúvida de que o papa tem enorme responsabilidade. De que Bergoglio tenha dado uma implícita, e às vezes não tão implícita assim, legitimidade ao regime de Maduro.
Francisco fez as duas coisas. Limitou as críticas, ou as anulou completamente no caso da Venezuela, mas em alguns momentos específicos fez gestos concretos que acabaram ajudando Maduro.
De que maneira? O que ele fez de fato?
A linha entre “fazer” ou “deixar de fazer” algo é muito sutil. Eu diria que Francisco fez as duas coisas. Limitou as críticas, ou as anulou completamente no caso da Venezuela, mas em alguns momentos específicos fez gestos concretos que acabaram ajudando Maduro. Por exemplo, receber o venezuelano em um momento em que as praças estavam cheias de insurgentes, e que parecia que Maduro poderia cair. Recebê-lo no Vaticano foi uma forma de lhe dar crédito quando Caracas estava em chamas. Bergoglio o chamou a negociar, mas também obrigou a oposição a que aceitasse essa negociação, o que a levou a se dividir, porque é óbvio que a oposição se divide entre os que estão dispostos a negociar e os que não. Assim como fez ao notar que Maduro usava as palavra e os gestos do papa para defender sua posição. Nestas ocasiões, Bergoglio nunca os deslegitimou. Ou seja, houve mais do que tolerância, mas sim uma ajuda. Sempre a partir de uma perspectiva de que Bergoglio coloca a oposição como “antipovo”. Sobre Nicarágua, o papa foi muito tolerante quando Ortega atacou duramente o núncio apostólico como se não fosse um enviado da Santa Sé, quando um bispo foi preso. O papa conseguiu retirá-lo da prisão, aceitou que ele saísse do país, mas em vez de ter uma postura mais questionadora, simplesmente levou o bispo embora, atendendo a Ortega. Trata-se de um silêncio que também conta como ação.
O que isso diz da ideologia de Bergoglio?
Se gosta ou não do chavismo, castrismo e o sandinismo, e podemos crer por suas palavras que ele tem rejeição a esses movimentos, Bergoglio sempre os preferiu porque os encaixou na ideia de que há um povo e um antipovo. E que eles são mais representantes do povo, ainda que por vezes escolham um mau caminho. Bergoglio crê que podem ser direcionados ao caminho correto, coisa que a oposição liberal, ou os que considera “antipovo”, não poderiam. Assim aconteceu com o peronismo em 1955, que foi contra a Igreja, e chegou a incendiar muitas delas. Ainda assim, o peronismo era um movimento popular nacional, e por isso a corrente que segue o papa crê que era o caso de recuperá-los, e não de cortar relações com eles. O mesmo, talvez, não tenha ocorrido com Evo Morales, pois este lhe deu logo de cara mostras de corrupção, de associação com o narcotráfico. Pareceu a Bergoglio impossível defendê-lo. No Brasil, Bergoglio foi muito explícito em seu apoio a Lula contra Bolsonaro. Basta lembrar que enviou, por meio de Juan Grabois (líder de esquerda argentino), um rosário a Lula, quando este estava preso. A teologia do povo fez com que Bergoglio sempre tomasse partido. Para o papa, na América Latina existem os verdadeiros latino-americanos, que são o povo e se expressam por meio dos movimentos nacionais populares, como o peronismo, o chavismo, o castrismo, o indigenismo, o que for, e de outro lado está o “antipovo”. Ou seja, os outros, que seriam estrangeiros em outra pátria. Os ricos, para Bergoglio, não são legítimos.
Arrisca dizer algo sobre o próximo conclave?
O fato de Bergoglio ter nomeado vários cardeais alinhados a ele nos dá a sensação de que um possível sucessor poderia ser alguém vinculado à sua maneira de pensar. Mas há várias correntes de pensamento aí também. É muito difícil especular.
Seria possível um papa negro?
Claro. Só que estamos num momento em que se debate o celibato do clero ou o papel da mulher da Igreja ao mesmo tempo temos os cardeais africanos que são super conservadores. É difícil especular. É preciso dizer que este papa está se despedindo de um mundo em guerra, na Ucrânia e na Faixa de Gaza, e isso pode ter impacto na escolha do conclave.
Por que o papa decidiu nunca mais voltar à Argentina?
Qualquer momento em que decidisse ir, seria um mau momento. Sempre haveria políticos buscando tirar melhor proveito eleitoral em um sistema tão polarizado. Já havia uma ideia de que, por sua atuação nas “villas miseria”, ele seria um papa mais próximo ao peronismo. Mas o pontífice nunca quis ser usado como peça de propaganda de Cristina Kirchner. De Macri, a quem não queria por desavença ideológica, a mesma coisa. Bergoglio o considera um vende-pátria. Quando veio Alberto Fernández, houve uma chance, mas então o governo decide aprovar o aborto. Se ele viesse nessa época, iria referendar essa decisão. Já com Milei, que o havia insultado, a coisa ficou bem mais difícil. Milei depois pediu desculpas por chamá-lo de “o representante do maligno na terra”, mas mesmo assim ficou a marca. Bergoglio, de certo modo, quis castigar a Argentina, porque tem uma ideia de uma Igreja que representa a identidade nacional de um país. E alguns governos recentes o desapontaram por fugir da essência da identidade argentina.
Por outro lado, no Chile…
Sua viagem ao Chile foi um fracasso, devido a revolta que havia na sociedade contra os padres acusados de pedofilia. E isso mesmo depois que ele escolheu o timing para não ter de dar as mãos a Sebastián Piñera, mas sim a Michelle Bachelet. Não adiantou muito, as pessoas foram às ruas e até mesmo igrejas foram queimadas.
Este é o mito fundacional de Bergoglio, a ideia de que o estado natural de uma sociedade é a harmonia, o conflito existe e é necessário eliminá-lo em lugar de legitimá-lo.
Conte-nos sobre o seu novo livro.
Em nenhum momento pensei em fazer um instant book. Venho estudando o papa há mais de sete anos. Espero que as pessoas não pensem que estou usando a sua piora na saúde como um gancho. É um trabalho histórico que lê a história política de Bergoglio desde sua formação no seminário, nos anos 1950, sua relação com o peronismo e chega até o dia de hoje. Não é um livro simples porque se analisa muito também sua formação filosófica para entender sua visão holística de mundo e, portanto, sua formação, que vem da teologia medieval, mas que passa pela era moderna e chega à filosofia alemã antiliberal. É um trabalho que não chega a ser acadêmico para que o público em geral possa ler. E eu escrevo, creio, num modo simples em termos de linguagem. Há também muitas anedotas e passagens que mostram um papa afeito à ironia, ou seja, gosta de dizer uma coisa, mas também seu oposto. Tem o pé em vários sapatos. Mostro como Bergoglio sempre teve um nível muito elevado de oportunismo ao longo de sua carreira dentro da Igreja, mesmo antes de ter sido consagrado papa. A ideia é mostrar que, sim, o papa pode falar de modo complexo, mas que sempre teve ideias muito claras. E, o mais importante, uma tese de fundo que nunca abandonou, a de que existe um cristianismo latino-americano. Mais do que isso, em seu modo de entender, há também um cristianismo especialmente argentino. Bergoglio tem uma formação integralista e, ao ser integralista, pode parecer mais flexível, porque o integralista quer agregar a todos, quer a todos numa mesma rede e sob a mesma guarda. Assim foi um pouco como atuou com os “curas villeros” (padres de paróquias simples das periferias de Buenos Aires). A flexibilidade de Bergoglio permite também que ele baixe a guarda para observar e reconhecer ao outro dentro de sua dignidade, digo, a partir de seu ponto de vista da cristandade. O diferente não é diferente porque escolheu ser diferente, mas porque, em geral, é um cristão inconsciente de ser cristão, segundo Bergoglio. Este é o mito fundacional de Bergoglio, a ideia de que o estado natural de uma sociedade é a harmonia, o conflito existe e é necessário eliminá-lo em lugar de legitimá-lo. Essa é a sua raiz profundamente, radicalmente antiliberal e holística.
E como Bergoglio deixa a Igreja Católica?
Com um clima de conflito interno brutal, com muitos cardeais que querem, digamos, mudar de forma radical o rumo da instituição. São minorias, mas que têm amplos apoios nas diferentes igrejas, especialmente na Igreja Católica dos Estados Unidos, que é a mais conflagrada com Bergoglio nos dias de hoje. Depois, há um outro tema, que a mim me intriga muito, e me parece muito relevante, porque se o novo papa seguir a linha de Bergoglio, mas for europeu, a visão da América Latina muda. Estaria ele atento a essas escaladas terceiro-mundistas e anti-ocidentais? Seria inevitável que seu olhar estivesse voltando aos conflitos na Europa neste momento. É preciso esperar para saber.
Qual a diferença de Bergoglio e os papas anteriores?
Bergoglio é tão anti-ocidental e tão anti-iluminismo quanto Ratzinger sempre pensou que o cristianismo é inseparável de sua raiz greco-romana e inseparável ao aporte à cultura ocidental. Essa é uma diferença enorme. E a outra coisa está relacionada a valores não-negociáveis. Sem dúvida, doutrinariamente Ratzinger era mais fechado, mais racionalista ao defender a posição tradicionalista da Igreja, mas ao mesmo tempo reconhecia a existência de posições opostas às da Igreja que tinham sua própria razão. Não compartilhava, mas sabia que existia. Por outro lado, desde sua perspectiva mais integralista, Bergoglio, com seus gestos e falas ambíguos, não reconhece a legitimidade daqueles que têm posições opostas às suas. Por isso sempre tratou de unir essas posições, em lugar de reconhecer que há posições diferentes. Bergoglio é menos tradicionalista, mas é também menos democrático e menos pluralista.
E com relação a outros papas?
Há uma profunda afinidade entre Francisco e João Paulo II. Ambos pregavam um catolicismo nacional e popular, totalmente identificado com o popular, bastante distantes da frieza de Ratzinger. Toda a carreira eclesiástica de Francisco se deu aos moldes das de João Paulo II. Este viveu uma época diferente, em que era necessário que a Igreja abrisse suas portas ao fim do comunismo e aos fiéis que viriam então. Na verdade, tanto o papa Francisco como João Paulo II tinham a ideia de proteger a cristandade diante de uma Europa que se estava descaracterizando.