Patriotismo reacionário não é nacionalismo

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Bolsonarismo confunde conceitos e cede a um chefe de Estado estrangeiro ingerência na política brasileira
Na longa duração, nota-se uma tendência irreversível à integração pela mundialização e à democratização das relações entre países e no interior de cada um — formas políticas cada vez mais livres e igualitárias. À ordem de impérios e colônias sucederam os Estados-nação; às autocracias, as democracias liberais. O processo, porém, não é linear. Alterna fases de expansão — globalização, animada por ideologias cosmopolitas e idealistas — e de retração — desglobalização, guiada por ideologias particularistas e “realistas”. Renascimento, Iluminismo, Belle Époque e pós-Guerra Fria foram fases de expansão; Contrarreforma, Restauração e o “curto século 20” (1914-1989), de retração.
Nos últimos dez anos consolidou-se novo ciclo de desglobalização, conduzido por setores outrora dominantes que se julgam prejudicados pelo nivelamento anterior. No plano internacional, querem conter novas potências; no doméstico, frear grupos historicamente subalternizados. É nesse cenário que florescem ideologias nacionalistas nos EUA e na Europa, potências que se percebem em declínio. A extrema direita recorre a revisionismos históricos para reabilitar hierarquias étnicas, culturais e religiosas — a chamada “guerra cultural”. Esses movimentos, contudo, variam conforme o contexto. Nos EUA, fala-se em “nacionalismo cristão”: projeto de restauração da glória nacional, que legitima governos de exceção e políticas imperialistas agressivas, sustentado na mística do Destino Manifesto. Parte da ideia de que a decadência decorreu do abandono da matriz europeia, cristã e empresarial que, no século 19, fez do país uma superpotência, substituída no pós-guerra por políticas cosmopolitas voltadas a negros, mulheres e hispânicos. A solução seria restaurar antigas hierarquias.
Esse nacionalismo integra a chamada Internacional Facho-Reacionária, que articula governos e militantes autoritários — de Netanyahu e Orbán a Milei e Bolsonaro. Ao mesmo tempo, a violência do imperialismo norte-americano desperta resistências que também se expressam em nacionalismos.
No Brasil, dizer que o lulismo arrebatou a bandeira nacionalista da extrema direita é erro. O patriotismo bolsonarista nunca foi nacionalista e, até onde eu saiba, nunca reivindicou esta condição, nem esta palavra. Disseram-se sempre “patriotas”, e com razão.
Nacionalismo quer dizer valorização da nação como expressão de uma entidade nacional singular por suas características culturais. Mas ele se apresenta de forma diversa nos países cêntricos e nos países periféricos. Nestes últimos, o nacionalismo não se apresenta na forma de uma mística de superioridade cultural, nem como tradução no exterior de uma política imperialista. Ao contrário, nacionalismo se apresenta tradicionalmente como uma reação voltada para garantir a sobrevivência da nacionalidade num contexto de agressão do imperialismo estrangeiro.
Nada melhor do que recorrer aqui àquele que pode ser considerado o pai do nacionalismo brasileiro, Alberto Torres. O patriotismo era definido por ele em 1914 como o sentimento de solidariedade entre os brasileiros, o elo afetivo que ligava as pessoas numa história comum. O nacionalismo era o passo seguinte: transformar esse sentimento em programa de ação, disciplinando a sociedade, fortalecendo as instituições, protegendo a economia e conservando as riquezas naturais. Em Torres, portanto, patriotismo e nacionalismo não se opõem — complementam-se. O primeiro é sentimento; o segundo, doutrina prática. O sentimento patriótico leva ao nacionalismo, movimento político que põe a nação acima de tudo. É neste sentido que falam os nacionalistas brasileiros, quando se referem inclusive ao que querem dizer por patriotismo.
Pergunta-se : é possível falar em nacionalismo cristão?
Em regra, não. Trata-se de um oxímoro, ou seja, uma junção de palavras cujos significados são contraditórios. Um nacionalismo cristão seria aquele que consagraria o cristianismo como a característica suprema da cultura nacional, devendo seus mandamentos prevalecer na tomada de toda e qualquer decisão política. A política fica assim sujeita à sanção última de autoridades religiosas e não daquelas representativas da particularidade da nação. E o cristianismo é, por definição, universalista, porque foi Deus que criou o universo e incumbiu depois sua igreja, centralizada no Vaticano e tendo o papa como seu representante supremo, de preservar a integridade da ordem por Ele criada. É por isso que em regra não se pode falar de nacionalismo cristão, porque o cristianismo é universalista e o nacionalismo, por óbvio, não.
Há, porém, duas exceções possíveis. A primeira é a Itália, que pode falar em nacionalismo cristão, ao menos de matriz católica, porque o Vaticano fica dentro do seu território, em Roma. Da mesma forma, pode-se falar de nacionalismo cristão nos Estados Unidos, potência cuja matriz religiosa é originariamente protestante. Suas autoridades eclesiásticas supremas estão dentro do país, e os católicos que o seguem não reconhecem a autoridade papal desde que a Igreja deixou de ser reacionária na década de 1960. Principal potência mundial, a autoridade religiosa última dos reacionários norte-americanos está hoje reunida naquela de seu atual chefe de Estado: Donald Trump. Trump é o chefe da Internacional Reacionária, que faz hoje as vezes de uma igreja ou congregação universal, da qual figura como papa. Não à toa, por ocasião da eleição do papa Leão XIV, Trump se fez apresentar em suas redes sociais paramentado como sumo pontífice em seu lugar.
O presidente dos Estados Unidos, para os reacionários, é ao mesmo tempo autoridade religiosa máxima do mundo. Por isso mesmo, no resto do mundo, não se pode falar em nacionalismo cristão. Os reacionários brasileiros não podem ser “nacionalistas”, porque colocam a religião e, por extensão, a autoridade da igreja acima da nação e das autoridades seculares que representam.
E a autoridade suprema da igreja, como centro decisório último da política legítima, está fora do território nacional, assentado na Casa Branca. Como universalistas, porém, os reacionários podem ser “patriotas”, exigindo como pressuposto de patriotismo, porém, que seu amor ao Brasil decorra primariamente de seu pertencimento ao cristianismo.
Não por acaso, um dos mais célebres doutrinários reacionários do século 20 brasileiro, Gustavo Corção, foi um crítico virulento do nacionalismo, tal como entendido por Alberto Torres. O patriotismo exigia que a pátria fosse cristã, e cristãos os cidadãos da pátria. O nacionalista era um vicioso, que não amava a pátria real, mas uma invenção abstrata do que a pátria deveria ser. Idolatrava uma pátria futura e se fechava à justiça universal de Cristo, cujo supremo guardião era o papa assentado no Vaticano. O patriotismo, ao contrário, era uma virtude moral, prolongamento do amor e reverência à autoridade do pai de família e de fidelidade ao passado, baseado em uma ordem supostamente natural representada pela família, pela paróquia, pelas instituições corporativas municipais. Dispensável acrescentar que Corção foi um dos maiores entusiastas do golpe militar de 1964.
Daí por que o patriotismo bolsonarista, orientado por um universalismo periférico reacionário, não é nacionalista, mas universalista de tipo entreguista, não tendo qualquer escrúpulo em recorrer à intervenção estrangeira para garantir que o Brasil seja governado de acordo com os princípios divinos do nacionalismo cristão… dos norte-americanos. Assim como, para os reacionários do passado, não era demérito nenhum que o Brasil fosse uma província de Roma, com o papa dando as ordens na nossa política interna, para os reacionários de hoje, também não é nenhum demérito ser satélite ou província dos EUA, como são o Panamá ou Porto Rico.
É desse barro que é feito o tal patriotismo da extrema direita brasileira.
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