A direita radical não se resume a Bolsonaro

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As instituições brasileiras — incluindo dois dos três comandantes das Forças Armadas — resistiram a uma tentativa de golpe de Estado na virada de 2022 para 2023. Seus orquestradores, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foram julgados e condenados, e a expectativa é que comecem a cumprir as penas até o fim deste ano. Mas, mesmo com esta dura e inédita resposta ao golpismo e a prisão de seu principal líder, o populismo de extrema direita não vai sair de cena. Até por não ser um fenômeno circunscrito ao Brasil.
Diante dessa constatação, a Fundação Fernando Henrique Cardoso lança, no próximo dia 18, Nova Onda Populista: Direitas Radicais, da série Vale a Pena Perguntar, trazendo entrevistas em texto e vídeos com sete especialistas em diversos campos, incluindo nosso colunista Wilson Gomes. Para falar sobre esse trabalho, o peso que a direita radical ainda tem no debate político brasileiro e as perspectivas de renovação tanto no campo conservador quanto na esquerda, o Meio Político conversou com Sérgio Fausto, cientista político e diretor geral da Fundação FHC. Veja a seguir os principais pontos da entrevista.
Como a condenação de Jair Bolsonaro impacta o populismo autoritário de direita no Brasil?
Não estamos vendo o ocaso do populismo, mas houve uma saída de cena de Jair Bolsonaro. Ele sofre um abalo com o revés político-judicial do ex-presidente, claro. Os personagens importam na política, e, gostemos ou não gostemos do Bolsonaro — sabidamente eu não gosto —, ele foi o personagem que conseguiu mobilizar esse extremismo de direita que era latente na sociedade brasileira. Encarnou-o e deu-lhe expressão eleitoral, virando presidente da República. Então, perder um quadro político com essa capacidade é um tremendo revés. Agora, o fenômeno da extrema direita não se reduz a ele. A trama não se reduz ao personagem. E, continuando a metáfora cinematográfica, esse não é um “filme brasileiro”. Ele está passando em todo o mundo e sua maior sala de exibição são os Estados Unidos.
Ao contrário dos EUA, as instituições brasileiras reagiram ao furor autoritário do populista de direita. O que fez a diferença?
Eu vejo dois aspectos principais aí. Um tem a ver com o sistema de Justiça e o outro, com o sistema político, embora essas duas coisas estejam inter-relacionadas. O fato de que Bolsonaro não tenha conseguido construir um partido para chamar de seu, e um partido que tivesse maioria no Congresso, criou um limite para a concentração de poder que ele pretendia exercer. Como explica no Vale a Pena Perguntar a professora de Direito Ana Laura Barbosa, o bolsonarismo praticou um autoritarismo infralegal. Era difícil para Bolsonaro aprovar as matérias que contemplassem a sua vontade autoritária mais extremada. Ele não contava com maioria para isso no Congresso. O que ele fazia? Editava decretos. É diferente do que acontece nos demais países. Para ficar só no caso de Donald Trump, ele conquistou por dentro um dos partidos, o Republicano, em um sistema bipartidário.
Trump também tem maioria favorável a ele na Suprema Corte. Essa é outra diferença?
Sim. O Brasil tem uma Constituição que estabeleceu uma série de direitos, alguns deles como cláusulas pétreas, e deu muitos poderes ao Supremo Tribunal Federal. Isso permitiu que esta instituição, numa situação extraordinária em que os demais poderes recuaram ou se omitiram, exercesse o protagonismo. No caso, o enfrentamento com o governo Bolsonaro. Nós temos no nosso Código Penal os crimes de atentado contra o Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Curiosamente, esta parte do Código Penal foi criada depois do famigerado episódio de 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro disse: “Eu não respeitarei mais as decisões do STF”. Havia um projeto [de alteração do Código Penal] no Congresso que ganhou celeridade, porque se percebeu ali um risco real de virada de mesa. Por fim, mas não menos importante, é que o Brasil tem, desde 1932, uma Justiça Eleitoral de âmbito nacional. Isso deu robustez ao sistema para enfrentar não só as acusações de fraude, mas as fraudes que ocorrem em países com legislação e aplicação da legislação muito descentralizada.
A pauta da segurança pública pode levar a direita a prescindir de Bolsonaro?
Eu acho que é cedo para dizer isso. Nos nossos cadernos, [o filósofo e cientista social] Marcos Nobre fala do Partido Digital Bolsonarista. O fato é que Bolsonaro se aninhou no PL, mas não é propriamente um personagem típico do partido ou do sistema político tradicional. A sua base de apoio desde a origem se organizou no mundo digital, nas redes. E essa rede bolsonarista de extrema direita ainda opera e é bastante efetiva na formação da opinião pública. Os governadores de direita batem muito nessa tecla conservadora da segurança pública, mas ela pode não ser suficiente para atrair o eleitor bolsonarista sem um apoio do ex-presidente. A campanha a rigor já começou. Ter presença nas redes, ter esta máquina digital azeitada é fundamental. E esses políticos tradicionais — e mesmo o Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo], que não é um personagem típico do bolsonarismo — precisam, para sustentar as suas campanhas com força para a presidência da República, do Partido Digital Bolsonarista.
Nós entramos numa nova era da sociedade e da política marcada pela disseminação das mídias sociais
Como a eventual vitória de um candidato da direita tradicional em 2026 afetaria o bolsonarismo?
Haveria um ocaso da figura de Bolsonaro, o que não significa que alguns traços dessa maneira de fazer política desapareceriam. Isso tem a ver com uma atitude antissistema, de contestação das instituições e das elites. Não só das elites políticas, mas de todas as elites em geral, as elites científicas, intelectuais. É uma contestação que diz ‘tudo que está aí está errado precisa ser destruído para que um mundo melhor seja recriado’. Este tipo de pulsão política não desaparece da sociedade brasileira. Nós entramos numa nova era da sociedade e da política marcada pela disseminação das mídias sociais. E no mundo digital o poder de atores não institucionais é muito maior do que foi anteriormente.
De que maneira?
Antes, para entrar na opinião pública, você precisava que a imprensa te desse atenção. Ela filtrava de alguma maneira quais eram as opiniões válidas. Os líderes partidários também estabeleciam a “fila na política”, quem ia ser candidato pelos partidos que realmente eram competitivos. Este mundo mudou. Veja o caso de Pablo Marçal em São Paulo. Ele enfrentou o candidato apontado e apoiado pelo Bolsonaro e quase chegou lá. Esse tema também aparece no nosso trabalho. As novas formas de comunicação criam um ambiente propício à política antissistema, que, no momento, vem pelo extremismo de direita.
O que fez os partidos tradicionais de direita, que tinham um perfil muito fisiológico, se tornarem mais ideológicos?
Essa é também uma mudança provocada pela extrema direita, pelos vários rios que vão convergindo para ela, como o bolsonarismo, o olavismo, os líderes evangélicos mais politizados. Eles perceberam, diferentemente da direita mais fisiológica, que a pregação de valores, o embate ideológico é muito importante na política. Nas eleições majoritárias você precisa marcar muito claramente quem é o antagonista, precisa fazer um trabalho na base da sociedade. Os conservadores passaram a ocupar as igrejas e, mais recentemente, os conselhos tutelares. Curiosamente, essa ocupação de espaço na sociedade era uma estratégia da esquerda.
Mas como isso afeta os partidos?
As forças convencionais no Congresso não podem desconsiderar essa mudança no campo da direita, porque ela pegou uma parte dos eleitores. Claro que, para a eleição de um deputado, que é proporcional, não é necessário ter votos em um estado todo. Basta ele ter voto em alguns municípios nos quais concentra os recursos via emendas. Mas ainda assim eles estão sendo cobrados sobre sua identidade política, sua posição em questões como aborto, por exemplo. São temas que vão exigir posicionamentos. Não quero passar a ideia de que o Brasil é uma sociedade brutalmente polarizada, que há duas grandes massas opostas. O Pablo Ortellado chama a atenção no nosso documento que a polarização é a rigor um fenômeno ainda minoritário, de gente muito engajada. Mas o peso dessas parcelas engajadas na formação da opinião pública é muito maior do que se nós fôssemos medir o tamanho delas em termos populacionais.
Nós falamos bastante na direita, mas e quanto à renovação na esquerda? O PT e a esquerda como um todo estão preparados para um “pós-Lula”?
Aí faz muita diferença uma vitória ou uma derrota de Lula em 2026. Uma coisa é o pós-Lula com o PT no Planalto, outra na planície. Quando se está no poder, conta-se com uma série de instrumentos que dão capacidade eleitoral, especialmente com o empenho direto do presidente em criar um sucessor com peso político real. Fazer isso fora do poder é sempre muito mais difícil. Mas há que se levar em conta que Lula é, mais uma vez goste-se ou não dele, a maior liderança política dos últimos 40 anos. Eu considero o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso um estadista de maior envergadura. Essa é a opinião do cidadão Sérgio Fausto, com todos os seus vieses. Agora, como expressão política, Lula não tem rival. E ele é uma referência internacional como nenhum outro político brasileiro foi nos últimos 40 anos. É um fato.
Mas isso também dificulta o surgimento de novas lideranças.
Claro. A sucessão de um homem como esse, que não deixou que outros outras lideranças crescessem sob a imensa sombra da sua frondosa árvore, é um processo muito complicado. Embora o PT possa ser um partido mais organizado do que a média das outras legendas, do ponto de vista da expressão das suas lideranças, é um partido como outro qualquer. Talvez até menor, porque a esquerda é mais velha do que a direita.
A direita conseguiu atrair quadros novos. Os quadros da esquerda envelheceram.
Como assim?
A direita conseguiu atrair quadros novos. De novo, podemos gostar ou não gostar, mas é uma questão geracional. Os quadros da esquerda envelheceram. Acho que o PT vai ter que olhar o campo da esquerda sem a pretensão de hegemonizar, de manter o comando do campo. Vai ter que ser parte de uma construção que pode passar por lideranças de outros partidos.
Daí o convite para o deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) ser ministro?
O presidente Lula é daqueles que, quando nós estamos indo com o fubá, ele já está voltando com o bolo — sem querer fazer trocadilho com o nome do ministro (risos). Embora no PSOL, Boulos hoje é uma encarnação do Lula. Está até ficando fisicamente mais parecido. Creio que o presidente se identifica com ele, embora Boulos seja uma pessoa de classe média. Nós estudamos na mesma escola, em épocas diferentes, claro. Mas ele foi liderar o movimento dos trabalhadores sem teto e absorveu características de líder popular, com um linguajar de filho de professores da USP. Mas essa também é uma mistura que tem sua força, seu apelo. O presidente já o está preparando, mas o PT vai precisar entender que, não tendo mais Lula como candidato, vai ter que se sentar à mesa com os outros partidos, e não na cadeira alta.
Pablo Ortellado apontou uma massa de eleitores não identificados com esquerda e direita. Nesse caso, o centro não deveria ter um desempenho eleitoral melhor?
São vários processos que convergem para explicar esse esvaziamento do centro. Não podemos abstrair o impacto da Operação Lava Jato, que atingiu o conjunto dos principais partidos. O PT foi altamente atingido, mas tinha um enraizamento social e sobretudo uma liderança que permitiu, numa reviravolta da política, ressurgir com força. Se você tira Lula de cena, o PT diminui, mas conseguiu sobreviver à Lava Jato. O Centrão também foi muito atingido, mas como a reputação desses políticos não se baseava, digamos, numa proposta republicana e eles não procuravam reivindicar a bandeira da ética na política, superaram seus reveses. Antes mesmo da Lava Jato, Valdemar Costa Neto cumpriu prisão por conta do mensalão, e continua aí, presidente do PL, o maior partido da direita.
Mas e o centro?
Pois é. Os partidos que tinham mais solidez no centro, em particular o PSDB, se arrebentaram com o processo da Lava Jato. Além disso, pelas características de buscarem posições intermediárias, formarem consenso, ficaram fora de sintonia com a maneira pela qual se passou a fazer política no país. O que era visto como uma posição de equilíbrio passou a ser encarado como vacilação inaceitável. Isso arrebentou os partidos de centro. Agora, não foi só no Brasil. Em todo o mundo os eleitorados passaram a demandar clareza política e radicalidade nas propostas, ainda que fosse do ponto de vista retórico, simbólico. Nesse mundo do centro você tem uma rotatividade de partidos um pouco mais à esquerda, um pouco mais à direita. Mas, aos olhos do eleitor, isso ganhou a aparência de um jogo de cena em que tudo muda para ficar como sempre foi.
E há esperança de mudança nesse cenário?
Sim. Estão acontecendo processos de reconstrução. Na Holanda um partido de centro conseguiu desalojar o partido de extrema-direita e deverá ser capaz de formar a coalizão governante majoritária. O jogo está sendo jogado, e claramente o centro continua perdendo de goleada. Mas marcou um golzinho no final do primeiro tempo para dar alguma esperança no segundo.
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