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O autoritarismo por todos os lados

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Não é mais possível fingir que só um campo político é autoritário. A gramática da intolerância se tornou linguagem comum no Brasil

Nos últimos meses, uma sucessão de episódios cotidianos — em universidades, câmaras municipais, espaços legislativos, escolas públicas, redes sociais e debates culturais — esfrega em nossa cara um fenômeno espantoso que, infelizmente, não vem sendo acompanhado com o cuidado que mereceria: o crescimento acelerado do autoritarismo político entre nós.

Autoritarismo? Sim, senhor. Aquele modo de lidar com as próprias convicções marcado por vontade de controle, intolerância ao dissenso, rigidez de pensamento, hostilidade diante da divergência e disposição para punir ou constranger quem pensa diferente. Notem: o autoritarismo não é um conjunto de ideias, mas um estilo psicológico e moral que pode acompanhar qualquer posição ou preferência.

E aqui é preciso enfrentar de imediato um ponto incômodo: não existe monopólio ideológico desse problema. Os progressistas, principalmente os de esquerda, sempre nos vangloriamos da convicção de sermos não apenas mais inteligentes e mentalmente flexíveis do que os conservadores, mas também mais tolerantes, mais avessos à coerção e absolutamente refratários à violência. Podíamos não ganhar eleições, não governar, não liderar o país, mas pelo menos — acreditávamos — não estávamos infectados pelo morbo do autoritarismo. E isso era moralmente gratificante.

O que a realidade política nos joga na cara hoje é outra coisa. Sim, a direita radical está aí, ruidosa, mobilizada e nunca teve vergonha de revelar-se autoritária. Mas a esquerda — sobretudo a parcela identitária que ganhou força na vida universitária e na cultura digital — não apenas passou a assumir, com desenvoltura semelhante, um repertório autoritário próprio, como cada vez mais admite explicitamente que é assim que deve ser, que é obrigação da militância progressista comportar-se desse modo. Além de, naturalmente, assimilar sem disfarce o autoritarismo como parte das premissas que compartilha e das suas convicções fundamentais sobre o certo e o errado.

Autoritarismo é um modo de se relacionar com as próprias crenças e com as crenças alheias

Vale recuperar, a esse respeito, uma distinção que o psicólogo Thomas Costello e seus colegas deixam clara em estudos recentes: ideologia não é autoritarismo. “Esquerda” e “direita” são posições substantivas — convicções sobre economia, igualdade, costumes, religião, Estado e tradição. Já o autoritarismo é um modo de se relacionar com as próprias crenças e com as crenças alheias. Não diz respeito ao conteúdo das convicções, mas à forma como se reage à discordância, à incerteza e ao conflito.

Autoritarismo é um conjunto de traços psicológicos e morais:

  • intolerância a dissenso;
  • rigidez de pensamento;
  • preferência por uniformidade social;
  • disposição para coerção;
  • hostilidade a grupos percebidos como ameaça;
  • justificação moral da agressão (“eles merecem”);
  • abertura para violência política;
  • desengajamento moral (suspender padrões éticos para justificar dano ao adversário);
  • e Schadenfreude — prazer na desgraça alheia quando quem sofre é o outro lado.

Esses traços podem acompanhar qualquer conteúdo. Você pode ser conservador, progressista, de direita ou de esquerda, de uma religião ou de outra, ambientalista, feminista ou antirracista — e ser democrático ou autoritário. O que diferencia uns dos outros não é o que acreditam, mas o modo como organizam e protegem as próprias convicções: se toleram discordâncias ou veem opositores como inimigos morais; se respondem ao conflito com debate ou com intimidação; se aceitam viver em um ambiente plural ou preferem eliminar o que lhes parece errado.

Nos Estados Unidos, Costello demonstrou empiricamente que existe, sim, um autoritarismo de esquerda com núcleo psicológico muito semelhante ao autoritarismo de direita. Ambos compartilham rigidez cognitiva, hostilidade, punição moral do adversário, visão da política como combate épico entre bem e mal, defesa de coerção e, em níveis elevados, apoio a vários tipos de violência. A diferença está nos alvos: a direita autoritária tende a se alinhar ao Estado, à polícia e à ordem estabelecida; a esquerda autoritária tende a se alinhar a causas igualitaristas, minorias e movimentos identitários.

Se o autoritarismo pode se anexar a qualquer plataforma de crenças, o que seria exatamente um autoritarismo de esquerda? É simples: ele aparece quando aqueles traços autoritários assumem formas ideológicas ou moralmente alinhadas à esquerda. Quando se defende censura estatal, se transforma opiniões detestáveis em tipos penais ou se aciona a polícia para punir comportamentos considerados ofensivos, tudo em nome da proteção de minorias, está-se diante de autoritarismo de esquerda. O mesmo vale para justificar violência contra instituições vistas como reacionárias, punir dissidentes que violem credos progressistas, demonizar conservadores como “moralmente repugnantes” (fascistas!), apoiar coerção estatal para impor valores igualitaristas ou identitários e naturalizar vigilância e punição social em nome da justiça.

Nem sempre são as ideias de esquerda que geram autoritarismo, embora às vezes contribuam para isso. Trata-se, em geral, de certas pessoas e grupos de esquerda que expressam seus impulsos autoritários através de temas e justificativas progressistas. O mesmo ocorre na direita.

Essa distinção ajuda a iluminar o que vem acontecendo no Brasil.

Comecemos por um caso recente em São Paulo. Uma atividade escolar sobre religiões de matriz africana levou um pai a chamar a Polícia Militar. Quatro policiais — um com metralhadora — entraram numa EMEI para interrogar professoras por causa de desenhos inspirados em orixás. Agressividade, intolerância religiosa, uso intimidatório do aparato estatal: o repertório clássico da direita autoritária. O episódio lembra o que Costello chamaria de “agressão legitimada por ameaça imaginada”: o pai se vê moralmente autorizado a acionar coerção estatal para “proteger sua fé” de desenhos infantis.

Mas o outro lado da praça também vem colecionando exemplos. Na Faculdade de Direito da USP, estudantes do Centro Acadêmico XI de Agosto mobilizaram-se contra a presença de André Lajst, convidado para discutir o conflito Israel–Palestina. Primeiro, afirmaram em nota que “sionistas não são bem-vindos nas Arcadas”, classificando o palestrante como moralmente inadmissível. Depois, no dia da palestra, tentaram impedir a fala com gritos de “genocida”, “não se debate com opressor” e “você não é bem-vindo nesta universidade”. A lógica é a mesma de qualquer autoritarismo: absolutização moral do conflito, intolerância ao dissenso, punição simbólica do adversário e justificação do silenciamento em nome dos “oprimidos”.

Esse é o ponto decisivo: não há diferença estrutural entre um e outro caso. Ambos tratam o opositor como alvo moralmente ilegítimo; ambos recorrem à coerção; ambos suspendem critérios éticos por meio do desengajamento moral (“ofenderam minha fé”; “defendem genocídio; portanto, devem ser punidos”); ambos exibem a mesma gramática psicológica.

Na UFPR, há pouco tempo, centenas de estudantes cercaram um advogado conservador convidado para falar, impediram sua entrada, hostilizaram seus acompanhantes e transformaram o debate num ritual de expulsão simbólica. É autoritarismo com estética progressista, mas estrutura psicológica clássica: exclusão do “impuro”, fechamento do espaço público, supressão da liberdade em nome de um bem superior.

Na UnB, a polícia prendeu uma estudante por injúria homofóbica após conflito em um banheiro feminino, desencadeado porque a jovem não aceitou compartilhá-lo com um homem biológico que alegava ser não binário. Insultos são condenáveis, mas a resposta institucional — prisão em flagrante, sem fiança, com base na lei que equipara homofobia a racismo — revela um uso punitivo e moralizado da lei penal, típico de ambientes em que a política vira guerra moral. A jovem pode ter sido agressiva, mas o recurso a uma solução penal maximalista revela outro tipo de intolerância: a que pretende resolver conflitos sociais complexos com coerção exemplar. Certamente a equiparação da homofobia a racismo não tinha como propósito mandar meninas para a cadeia porque se revoltaram com a presença de um homem no banheiro feminino. O que, numa sociedade tolerante, se resolveria de outro modo, foi decidido pela polícia.

É consolador imaginar que o autoritarismo seja apenas uma “característica da extrema-direita”. Seria intelectualmente confortável e politicamente útil. Mas é empiricamente falso. E se pesquisadores e intelectuais evitam falar do autoritarismo de esquerda, é porque a dissonância cognitiva envolvida não deve ser pequena. Quanta autoestima há em jogo na crença de que somos mais inteligentes e menos autoritários que a direita? E qual o tamanho da perda ao se constatar que isso se prova cada vez mais falso?

Quando a identidade está em jogo, o pluralismo deixa de ser um valor; vira ameaça

A política brasileira vive um momento em que o autoritarismo de esquerda manda às favas seus escrúpulos de consciência e é transformado em programa de ação para consumo da militância. O conflito político se converteu em conflito de identidades sociais e, quando a identidade está em jogo, o pluralismo deixa de ser um valor; vira ameaça.

Com isso, desaparece o pudor de ser autoritário. Jovens militantes — de esquerda, de direita, nacionalistas, religiosos — adotam a mesma gramática de hostilidade moral: o outro não está apenas errado; é uma ameaça existencial. Isso legitima coerção, silenciamento, cassação, perseguição, violência simbólica e, em certos casos, violência física.

Obviamente, o autoritarismo de esquerda não ousa dizer o próprio nome; acostumamo-nos à ideia consoladora e enganosa de que só o outro lado é autoritário. Mas é exatamente assim que o autoritarismo prospera: cada grupo se vê como defensor do bem e do justo e considera a repressão do adversário uma necessidade moral. O resultado é que a sociedade inteira se torna autoritária — e ninguém se dá conta. Afinal, não estamos sendo autoritários ao pisar no pescoço do inimigo maligno sempre que a oportunidade surge; estamos, antes, abnegadamente trabalhando para fazer deste um mundo melhor.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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