A bizarra história do QAnon

Na última quarta-feira, Facebook e Instagram anunciaram a remoção de 790 grupos, 100 páginas, 1.500 peças publicitárias e um sem número de postagens relacionados a uma teoria conspiratória americana chamada QAnon. Algumas horas depois, na Casa Branca, uma repórter perguntou ao presidente Donald Trump a respeito dos seguidores desta teoria. “Não sei muito a respeito do movimento além do fato de que gostam muito de mim”, ele respondeu. A repórter insistiu. “No centro da teoria há uma crença de que você está salvando o mundo de um culto satânico de pedófilos e canibais.” Trump permaneceu impassível. “Não havia ouvido isso, mas é ruim?”, ele inquiriu. “Se posso resolver problemas do mundo, estou disposto a fazê-lo. E estamos fazendo. Estamos ajudando o mundo a se livrar de uma filosofia radical de esquerda.” Em momento algum o presidente ensaiou um sorriso, uma ironia. Se recusou a sugerir que a história foge à realidade.

Na eleição de novembro, pelo menos 20 candidatos republicanos à Câmara ou Senado manifestaram algum tipo de apoio à teoria. O caso mais gritante é o de Marjorie Taylor Greene, que nas primárias do partido no 14º Distrito da Georgia derrotou seu opositor com uma vantagem de 16 pontos percentuais. A única diferença ideológica entre os dois: Greene é uma ardorosa defensora de QAnon. Em eventos do partido, pessoas vestindo camisetas com uma grande letra Q estampada se tornam mais e mais comuns. E, no Texas, o Partido Republicano adotou oficialmente, como slogan, a frase We are the storm — Nós somos a tempestade —, referência direta a um dos preceitos do grupo. Embora teorias conspiratórias não sejam novidade em política, muitos republicanos estão ativamente atraindo seguidores deste grupo. Mantém ambiguidades, usam a mesma linguagem. E isto começa de cima, com Trump.

QAnon é uma teoria conspiratória. Ou seja: é mentira. Em nada corresponde à realidade. Seus seguidores, porém, são devotos. Quase como se fossem religiosos e, neste sentido, construíram coletivamente uma mitologia moderna. Assim como desenvolveram todo um vocabulário próprio.

Começa por Q, referência a um usuário no site 4chan, que assina com este pseudônimo, e que desde uns meses após a posse de Donald Trump vem publicando mensagens crípticas. Ninguém sabe quem é Q, que pode ser uma ou mais pessoas. Um anônimo na internet. 4chan é um site importante, ponto de encontro de trolls, geeks, uma esquina onde quase tudo pode ser publicado sem limites, nas margens da internet. De uns tempos para cá, Q se transferiu para o 8chan, um site ainda mais marginal. Quem acompanha suas publicações acredita que Q é um funcionário da Casa Branca com alto nível de acesso, com poder de consultar os documentos mais secretos. Entre suas funções está a de dar pistas à população sobre uma guerra secreta em curso. Os seguidores de Q são os Anons, uma abreviação de anônimo. Gente comum interessada nos destinos do mundo.

Muitos especulam sobre sua identidade. Uma das hipóteses é de que seja o próprio Trump. Outra que seria John Kennedy Jr, o jornalista filho do presidente assassinado, que morreu num acidente de avião, em 1999. Ele, em verdade, teria forjado sua morte para poder se dedicar a desmantelar o grande esquema criminoso.

Há um site que reúne todas as publicações de Q. Não custa lembrar: são os fragmentos de teorias conspiratórias que não correspondem a qualquer indício factual. Q usa uma linguagem parecida com a dos profetas — nada do que diz vai direto ao ponto. Em sua primeiríssima postagem, no dia 28 de outubro de 2017, escreveu assim:

HRC extradição já em curso autorizada desde ontem para o caso de cruzar fronteira. Passaporte marcado autorizado em 30/10 @ 0h01. Esperar passeatas massivas para distrair e outros deixando EUA. Ms americanos conduzirão operação, GN ativa. Chequem prova: localizem membro da GN e perguntei se está mobilizado em 30/10 nas grandes cidades.

HRC é Hillary Clinton, a ex-secretária de Estado e candidata derrotada na última campanha presidencial. Ms são os militares, GN a Guarda Nacional. Hillary estaria para ser presa ou poderia tentar fugir do país. Algumas horas depois, Q voltou. Trecho:

Passarinho contou
HRC detida, não presa (ainda)
Onde esta Huma? Sigam Huma.
Não tem nada a ver com Rússia (ainda).
Por que presidente cercado de generais?
Que diz inteligência militar?
Presidente não falará em cadeia nacional.
Presidente precisa se isolar para não ser percebido negativamente.
Eles não acreditavam por um momento que perderiam controle.

Huma Abedin é uma ex-assessora de Hillary Clinton. Quase tudo o que Q escreve é neste formato, frases curtas, muitas abreviações, perguntas que sugerem às pessoas que elas devem se esforçar para ligar os pontos. Os seguidores chamam cada uma destas afirmações ou perguntas de breadcrumbs, ou migalhas. Quem se dedica a juntar as peças para reconstruir a história que Q está contando é um baker, ou padeiro.

Evidentemente que, por vago, cada seguidor de Q tem uma teoria distinta a respeito de como a história se monta. Mas, de forma geral, ela é assim: Donald Trump foi convencido a se candidatar pelos militares com o objetivo de prender os criminosos que há décadas mandam nos EUA. Todos os ex-presidentes recentes, e muitos dos nomes mais poderosos e conhecidos do país, fazem parte de uma quadrilha de pedófilos que promovem rituais satânicos nos quais crianças são executadas e, em alguns casos, comidas.

Sim: os seguidores de QAnon acreditam que Hillary e Bill Clinton, Barack Obama, ou celebridades como o ator Tom Hanks, ou o investidor George Soros, são pedófilos e antropófagos. Neste universo, a aparente desorganização da Casa Branca é um truque para fazer parecer que Donald Trump está distraído. Mas sua principal missão no mundo, aquela para o qual foi convocado, é desmantelar a quadrilha.

Como é típico de teorias conspiratórias, alguns momentos vão se tornando importantes para o grupo que as seguem. No início de outubro de 2017, dias antes de Q vir a público pela primeira vez, Trump posava para fotos com militares quando comentou com os repórteres. “Vocês sabem o que é isto?”, indagou. “Talvez seja a calma anterior à tempestade.” Os jornalistas lhe perguntaram a que se referia. “A calma anterior à tempestade”, ele se limitou a responder. “The calm before the storm” — a tempestade seria, na leitura dos conspiracionistas, a ação definitiva contra os criminosos. É outra estampa de camiseta popular entre eles — We are the storm. Nós somos a tempestade. Este ano, também slogan dos republicanos do Texas.

Outro momento caro aos seguidores foi a prisão, em julho de 2019, do bilionário Jeffrey Epstein. Amigo de muitos na elite americana, frequente doador de recursos para políticos do Partido Democrata, Epstein controlava uma rede de tráfico de jovens mulheres, muitas menores de idade. Estimulava prostituição, há denúncias de maus tratos e estupro. Há também inúmeras provas e a investigação do FBI, em grande parte pública, detalha como funcionava sua rede. Aos seguidores do QAnon, porém, aquilo foi visto como o início da grande ação contra a rede de pedofilia antropofágica secretamente no comando dos EUA.

Há muito Trump, de maneira mais ou menos discreta, incentiva o QAnon, retuitando seus seguidores e adotando aqui e ali seu vocabulário. Esta semana foi a primeira vez em que falou de forma mais alongada a respeito do assunto. Mas é um tema polêmico entre jornalistas. Muitos argumentam que a repórter, quando lhe fez a pergunta com objetividade e sem manifestar julgamento, deu ao presidente a oportunidade de sinalizar algum tipo de apoio aos seguidores. Por outro lado, a norma jornalística é esta mesmo: ao embutir julgamento, não se extrai a opinião da pessoa mas se inicia um embate. Em entrevistas coletivas, é difícil ter a oportunidade de, na sequência a uma resposta, confrontar as incoerências.

Teorias da conspiração servem para organizar o caos do mundo, dão explicações para o que parece não ter lógica. Em momentos de maior confusão, tendem a ser mais populares. O que é novo em tempos recentes é um chefe de Estado flertar abertamente com conspiracionistas com o objetivo de ganhar poder. E, nos últimos meses, as redes bolsonaristas no Brasil vêm discutindo com mais frequências as ideias construídas no mundo paralelo do QAnon. Elos locais estão para surgir.

Por Pedro Doria

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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