BDSM, prazer
Nas paredes de uma cripta em Monterozzi, na Itália, traços revelam dois homens flagelando uma mulher. Essa cena erótica pintada na Tomba della Fustigazione em 4 a.C é o primeiro registro histórico que remete às práticas BDSM. A reprodução da pintura está logo no começo do quadrinho Amarras, lançado na CCXP2022, que mergulha no mundo Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo. Folheando mais, uma enorme ilustração toma uma página dupla e desenha como funcionam as sessões de BDSM. Nela, estão quatro mulheres seminuas, duas dominadoras e duas submissas. Uma delas pratica o spanking, outra é amarrada. “O importante é que seja um ambiente seguro e controlado”; “antes de partir para a prática, ambos negociam o que será feito. Quais são os limites de cada um e qual será a palavra de segurança”; “durante a prática, o dominador aplica no submisso aquilo que foi combinado e cada um joga com seu prazer” — as explicações vêm em balões em torno da imagem.
Acompanhando a vida de praticantes e traçando uma linha do tempo para recuperar a história do BDSM no mundo, a obra foi construída para preencher o vácuo de informações a respeito do tema, muitas vezes é distorcido em representações na cultura pop. É o que conta uma das autoras, a jornalista Giulia Tartarotti. Além dela, escreveram e ilustraram o livro Barbara Teissere e Cecília Marins, respectivamente. Em entrevista ao Meio, Tartarotti analisou que as práticas BDSM não podem ser entendidas apenas como sexuais.
Como você define o BDSM?
O BDSM é um jogo de poder. Não necessariamente precisa ter dor ou sexo envolvidos, a não ser que os praticantes queiram. A grande questão é a dominação, dominar ou se submeter a alguém. Mas a noção de dominação e submissão é completamente individualizada. Pode ser uma dominação física ou psicológica. Fora do sexo, por exemplo, há quem leve o BDSM como estilo de vida em relacionamentos 24/7, nos quais pessoas se submetem a outras integralmente. Também há a submissão doméstica, quando o submisso cuida da casa do dominador. Sem falar no findom (financial domination), um fetiche em que o dominador recebe dinheiro e presentes, também numa forma de humilhação. Esses são alguns casos, mas existem infinitas possibilidades. Mesmo assim, as práticas mais conhecidas são sim ligadas ao sexo. É importantíssimo ressaltar que, sexuais ou não, todas devem ser feitas com responsabilidade e, sobretudo, consentimento dos participantes.
O que o praticante ganha ao se envolver com BDSM?
Por lidar com a dor, há quem diga que o BDSM é uma válvula de escape. Isso é muito errado. Trata-se de uma válvula de prazer. Não é para compensar algo ruim de sua vida, é para aproveitar, ter um momento compartilhado de confiança extrema. Quando você percebe que consegue realizar todas as suas fantasias e que, quando quiser, pode parar com tudo aquilo imediatamente acionando uma palavra de segurança, acaba se permitindo experimentar novas sensações.
Por que contar essa história em quadrinhos?
O quadrinho foi uma forma de fazer com que nosso público não apenas lesse sobre BDSM, mas conseguisse visualizar, para que a prática seja desmistificada. Pesquisando, percebemos que não existem muitos materiais oficiais sobre o tema. As informações estão espalhadas em fóruns, sites, blogs e perfis em redes sociais. Não vemos livros, best-sellers, ou representações fiéis na TV ou no cinema. Então, decidimos fazer esse livro-reportagem em quadrinhos. Nele, traçamos uma linha do tempo que recupera as primeiras referências a práticas que ligam dor ao prazer. A mais antiga é de 4 a.C, quando um ato de flagelação foi pintado na Tomba della Fustigazione. Pouco depois, foi escrito o Kama Sutra que já indicava pontos do corpo humano mais sensíveis ao toque e à dor. Avançando para o século XVIII, na França, o roteirista de peças de teatro Marquês de Sade escrevia cenas escandalosas — o que fez seu nome dar origem à palavra sadismo. Mesmo que o 120 Dias de Sodoma, seu livro mais famoso, jamais tenha sido concluído, ainda hoje toma o imaginário das pessoas. Depois, o chicote se popularizou na Inglaterra, surgiu a figura da Dominatrix, foram inaugurados bares fetichistas em todo o mundo e o resto é história. Mas é fundamental esmiuçá-la porque diz respeito a vontades, muitas vezes, reprimidas. Por falar nisso, aqui no Brasil, algumas práticas de BDSM foram consideradas distúrbios mentais até 2013.
De que forma o livro é organizado?
Além da linha do tempo, nas páginas, abordamos os principais pilares do BDSM. Explicamos cada um deles usando personagens reais, pessoas que contam como vivem e o que praticam. Inclusive, o quadrinho começa com a ilustração da Cláudia, uma das praticantes, explicando o que é o BDSM e indo ao Dominatrix, um dos bares fetichistas de São Paulo. Muitas pessoas da comunidade e curiosos se encontram nesses bares, são ambientes seguros. Ah, o livro também abre espaço para especialistas, como psicóloga e sexóloga.
Quais são esses pilares?
São pontos que consideramos fundamentais. Há um capítulo sobre ‘Ética e Moral’, outro sobre ‘Segurança e Comunidade’ e ‘Relacionamento’. Na parte dedicada a ‘Práticas’, escancaramos muitas delas, como o spanking, a degradação e bondage. Todos os tópicos são atravessados pelo ‘SSC’: são, seguro e consensual. Qualquer prática BDSM precisa dessas três bases. O submisso está seguro? O dominador está seguro? O dominador estudou o suficiente para saber o que está fazendo? Tudo tem uma maneira de fazer. Quando falamos de spanking, por exemplo, a pessoa que está batendo precisa saber exatamente onde está batendo e com que força para não machucar de verdade.
Qual o limite da dor?
O que delimita a dor dentro do BDSM é o quanto ela, realmente, agride seu corpo. As práticas só podem deixar dores passageiras. A pessoa pode ficar marcada por algum tempo, com hematomas, perfurações e marcas, mas não pode ser algo permanente. Quando se escolhe sentir a dor, a ideia é curtir, dentro de um ambiente controlado, até onde for seguro para o corpo da pessoa. Por isso é importante praticar com alguém com quem se tem confiança e estude sobre o assunto.
Você falou sobre a falta de materiais fiéis sobre o assunto. Como você enxerga a representação do BDSM nas artes?
Quando se fala nisso, a primeira coisa que vem à mente é o filme Cinquenta Tons de Cinza — o que me deixa profundamente irritada. Essa obra não trata de BDSM, mas de um relacionamento abusivo. Na vida real, antes de começarmos qualquer ato, é preciso negociar uma palavra de segurança, conversar sobre os limites e expectativas de cada um. No ‘Cinquenta Tons’, não há consentimento em momento algum. Isso jamais deve ocorrer. Basicamente, quando vemos BDSM na cultura pop, nunca vemos BDSM de verdade. São sempre situações de abuso nas quais parece que quem está dominando pode fazer o que quiser. Mesmo nas práticas de dominação 24 horas por dia, os limites são combinados, não é como nos filmes. Por isso, nos preocupamos muito para que esse livro não fosse erotizado. Não queríamos produzir mais um material que vinculasse o BDSM à pornografia. Claro que são ilustradas cenas das práticas, mas mostramos como é o BDSM na vida real de forma explicativa, é um papo sincero sobre desejo e segurança.