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Economia criativa, de noite e de dia

Neste ano, Alê Youssef abriu duas novas casas no Centro de São Paulo. No primeiro semestre nasceu a Laje do Baixo, um lugar mais diurno para valorizar o samba, aproveitando o embalo do sucesso do bloco de carnaval do qual foi um dos fundadores em 2009, o Acadêmicos do Baixo Augusta. E, com Ale Nastacci e Facundo Guerra, acaba de inaugurar a Formosa Hi-Fi, um bar de áudio que ocupa o subsolo do Viaduto do Chá. Ex-secretário de Cultura na gestão Bruno Covas, além de empresário da balada, Alê é um dos maiores especialistas em economia criativa, mantendo uma coluna no UOL. Nos encontramos para um drink no Formosa Hi-Fi e depois fizemos esta conversa por telefone para falar sobre os rumos da política cultural no Brasil e, claro, dos dois novos projetos paulistanos. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Nós passamos pelo maior ataque à cultura com o governo Bolsonaro. Esperava-se que o governo Lula desse mais importância para essa área ao reinstalar o MinC. Mas até agora não vimos avanço significativo. Há um descaso federal com o potencial da economia criativa??

Olha, não se viu um avanço significativo porque, infelizmente, não houve uma atualização do que nós entendemos como política cultural. A gente tem uma maneira de pensar muito ultrapassada. A política cultural é restrita e pouco conectada com os novos tempos e especialmente com as novas gerações. Existe uma incompreensão do que significa a economia criativa. Existe uma estigmatização por parte de movimentos que estão presos a dogmas um pouco mais sectários, antigos, de que a economia criativa seria uma ameaça à pureza, entre aspas, da cultura, que só poderia se financiar através do dinheiro do orçamento público direto. Por outro lado, neste ano foi criada pelo governo federal a Secretaria de Economia Criativa, que é um avanço. Mas esse quadro maior gera uma confusão, uma guerra de narrativas, uma disputa de poder e de espaços no universo cultural, o que faz com que essa atualização fique cada vez mais atrasada.

Por conta das disputas do próprio setor cultural?

As próprias linguagens disputam entre si porque concorrem por um cobertor muito curto que é o orçamento público direto. É um contrassenso. As pessoas não querem ampliar o leque de possibilidades de alcance da política cultural para aumentar o dinheiro disponível porque têm receios ideológicos, às vezes protecionistas em relação ao Estado, muito por conta do acesso que já têm a determinado subsídio. Mas ao mesmo tempo brigam entre si para garantir esse fomento. É uma situação estranha e que parece não ter solução, porque se perpetua de forma muito contundente. O setor cultural é o único que não consegue se atualizar. Fica aí rodando em círculos há tantos anos em torno da mesma política. E não é um problema só desse governo, isso já vem há algum tempo.

Hoje o PIB da cultura já é maior do que o da indústria automobilística. Mas não chega nem perto de receber os mesmos incentivos fiscais. Existem modelos mais eficientes do que as leis de renúncia fiscal?

A economia criativa, no mundo inteiro, passa por ações estratégicas de crédito. Apesar de uma coisinha ou outra, de algum tipo de ação meio paliativa, não existe um financiamento do BNDES para um setor que representa 3,11% do PIB. É o setor que mais gerou emprego recentemente. Como é que você não faz uma análise ponderada desse potencial e investe com esse olhar de economia criativa? Então, de fato, achar que a política de cultura tem de ser restrita a incentivo fiscal, é simplificar demais a capacidade de abrangência que ela tem. Quando se faz uma política de crédito, você tem a capacidade de ser muito, mas muito mais capilar do que quando você faz uma política de incentivo, porque o incentivo tem regras, complexidades e processos que acabam beneficiando quem já tem a expertise de se relacionar com o mercado e de fazer processos com esse mecanismo. O crédito é mais ágil e mais democrático. A gente tem quase 200 mil CNPJs derivados da economia criativa. Se você fizer um cálculo de quantos prêmios de fomento ou de incentivo foram pagos versus esse número de CNPJs, aí você já vê o tamanho do déficit, da inacessibilidade de recursos que existe hoje no nosso setor. Dar crédito seria também uma maneira de dialogar com esse novo empreendedorismo criativo, que me parece que é um desafio não só dessa área, mas para todas as áreas do governo. Sem juízo de valor, existe uma nova realidade que se impõe e a gente precisa se adaptar a ela.

Muito se fala em descentralização das verbas da cultura. Há a célebre frase de Gilberto Gil, de quando era ministro de Lula, de que era necessário fazer um Do-In na cultura brasileira, significando levar verbas para outros lugares que não os grandes centros. Você acha que essa ainda é uma visão válida ou teriam outros caminhos?

Essa teoria é obviamente importante, dado o nosso abismo social. Entretanto, com a revolução tecnológica , com a hiperconectividade e também com o hiperadensamento das periferias dos grandes centros urbanos, fica muito complexo você simplesmente fazer uma divisão de aqui pode, aqui não pode. Há vulnerabilidades em todos os lugares. Como é que você explica para uma massa de jovens das periferias do Rio, de São Paulo, de BH, de Brasília que não vai fazer uma linha porque vai descentralizar para o outro que está precisando mais? As elites têm um acesso à cultura extraordinário numa cidade como São Paulo, mas a gente sabe do déficit que a periferia da cidade tem. O mapa da Rede Nossa São Paulo sempre mostra o acesso a cinema, teatro, museus, tudo isso é muito complexo mesmo numa cidade tão impressionantemente rica culturalmente como São Paulo. Essa atualização de visão passa pela compreensão de qual é o protagonismo do jovem nesse processo. As produtoras de funk têm uma capilaridade, uma força tão impressionante no território e elas se fazem totalmente independentes, sem qualquer tipo de apoio. Como é basicamente toda a história das culturas periféricas no Brasil, né? Quando você territorializa essa narrativa de que precisamos antagonizar quem teve recurso com quem nunca teve, e lê a letra fria do percentual de valores que cada cidade recebeu, tanto de incentivo como de fomento, você ignora que esses valores estão no centro rico, onde as grandes produtoras estão sediadas.

Agora vamos falar de coisas bacanas. Você abriu duas novas casas no Centro. Quais são as histórias da Laje do Baixo e do Formosa Hi-Fi?

A Laje era um sonho antigo nosso, desde os tempos da Casa do Baixo Augusta, que era um espaço de múltiplos usos, uma escola livre de economia criativa, de eventos e um lugar de ativismo pelo direito à cidade, e fechou na pandemia. A gente queria reviver um pouco essa experiência, mas sem aquele conteúdo todo. A melhor notícia cultural de muitos anos é o que aconteceu recentemente no Brasil com as rodas de samba e nós queríamos mostrar isso. Essas rodas foram apropriadas pelas novas gerações e estão acontecendo no Brasil inteiro, inclusive no Centro-Oeste, em lugares de muita expressão da música sertaneja. Elas transformaram o hábito cultural do brasileiro. Na pesquisa de hábitos culturais recentemente publicada pela JLeiva, o samba e pagode estão em segundo lugar, quatro pontos percentuais apenas atrás do sertanejo. E nas plataformas de streaming, na última aferição feita, o samba passou o sertanejo depois de oito anos. Tudo isso tem um pouco a ver com aquele movimento que aconteceu nos grandes centros urbanos brasileiros de retomada dos carnavais ou de criação dos carnavais de rua, especialmente em São Paulo. A gente fazer uma casa de samba no Centro é um jeito de prestar homenagem ao samba da nossa cidade e de colocar a visibilidade do bloco do Baixo Augusta a serviço desse movimento do samba o ano todo.

E ali perto você acaba de inaugurar a Formosa Hi-Fi, que é para um outro público, não?

Tem uma diversidade nos dois projetos. Mas a Formosa tem um aspecto, digamos assim, dedicado à questão da excelência de sonorização, do hi-fi, do som em alta definição, que também cumpre um papel de representação nessa miscelânea cultural que é a nossa cidade. A Formosa surge a partir de um encontro meu e do Ale Natacci com o Facundo [Guerra]. Nós estávamos de olho naquele subterrâneo do Viaduto do Chá para fazer essa experiência que acabou se concretizando na Laje, e o Facundo tinha um projeto já de anos de fazer uma casa de altíssima qualidade sonora. Nós juntamos as duas expectativas e desejos e criamos esse projeto que tem várias camadas históricas, ao retomar o projeto original do Mário de Andrade, que projetou o espaço para ser uma extensão do Theatro Municipal para danças populares, com gastronomia paulistana, uma mistura de comida brasileira empratada à francesa, aquela visão futurista do Mário. Mas ele saiu da Secretaria de Cultura e esse projeto nunca se concretizou. A Elis Regina ensaiou o show do Falso Brilhante lá, o Teatro da Vertigem fez aquela peça inspirada no Deleuze naquele túnel. Decidimos fazer o bar de audição com esse peso histórico e colocamos isso no nosso cardápio, nos nossos drinks. E, claro, também com a coincidência histórica maravilhosa de fazer 20 anos da abertura do Vegas e do Studio SP neste ano.

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