Godard e a geração de cineastas criada pelo cinema
“Basta considerar, certamente, o desenvolvimento do maior artista americano — refiro-me a Howard Hawks — para ver quão relativa é esta ideia de classicismo. [Nas obras dele], o que é possível ver? Um gosto cada vez mais preciso pela análise, um amor por essa grandeza artificial ligada aos movimentos dos olhos, por uma maneira de caminhar, enfim, saber como ninguém que o cinema pode ser orgulhoso, e uma recusa em ganhar lucro com isso para criar o anti-cinema, mas sim, através de um conhecimento mais rigoroso de seus limites, fixar suas leis básicas”, escreveu Jean-Luc Godard em setembro de 1952 na Cahiers du Cinéma nº 15, sua primeira crítica publicada na revista. No texto intitulado “Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica”, o jovem cinéfilo analisa a obra de Hawks montada da forma clássica e elogia o artista. Anos depois, Godard defenderia que montagem e direção são indissociáveis da política de autor. Mas este é um papo para mais adiante. Ainda estamos em meados dos anos 1950 na França. Ali, tarde da noite nas ruas parisienses, Godard e seus colegas debatem os filmes assistidos há pouco na Cinemateca Francesa.
Entre os parceiros de Godard, estavam François Truffaut, Jacques Rivette, Claude Chabrol e Maurice Schérer (que depois adotaria o pseudônimo Éric Rohmer). Eles, que seriam os precursores da Nouvelle Vague, se conheceram frequentando também o cineclube Cinéma-Club du Quartier Latin. Não demorou para começarem a escrever nas revistas La Gazette du Cinéma e, principalmente, na Cahiers du Cinéma. Nesta última, que surgiu em 1951, se aproximaram do fundador do veículo, André Bazin, que inspirou os jovens a deixar as folhas e colocar a mão na massa na criação de um novo cinema. Como explica Guilherme Bryan, doutor em Meios e Processos Audiovisuais e coordenador da pós-graduação em Cinema da Universidade Belas Artes de São Paulo, quando esses jovens deixam a revista e passam a dirigir filmes, levam uma linguagem cinematográfica já amadurecida para a tela, incorporando elementos visuais novos e fazendo referência à cultura pop e aos seus próprios filmes nas obras cinematográficas. “A Nouvelle Vague pode ser definida como um movimento de jovens cineastas franceses que trouxeram uma nova estética para o cinema, sobretudo, por se tratar da primeira geração de cineastas formada pelo próprio cinema. Tendo Bazin como o grande mentor, esses enfants terribles estudaram e escreveram muito antes de começarem a filmar. Quando assim fizeram, reinventaram a sétima arte. O cinema moderno só se instituiu com a Nouvelle Vague”, analisa. Entre os novos recursos visuais dessa geração estão os planos travelling, a técnica do jump cut para indicar passagem temporal, a quebra da quarta parede… enfim, “táticas que hoje em dia vemos como triviais, mas que, naquele momento, foram marcantes, revolucionárias”.
O historiador da arte e crítico de cultura especializado em cinema, Luiz Nazario, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), salienta que o nascimento dessa nova onda do cinema só foi possível por conta do contexto histórico: o pós-guerra. Em todo o mundo, na arte e no consumo, os jovens eram a bola da vez. Assumiam protagonismo na música, moda e cinema. “A Europa estava saindo da Segunda Guerra, mas até então os cineastas eram os mesmos dos anos 30 e 40. Essa nova geração queria fazer algo diferente. Queria romper com o cinema clássico e a trama bem amarrada, com tudo certinho. Romper com aquilo que chamavam de ‘cinema de papai’. Queriam fazer um cinema na rua, mais próximo da vida.”
Ao contestar a forma tradicional e linear de contar histórias, o movimento se articulou para bater de frente com o cinema comercial, o hollywoodiano – o que também foi facilitado pelos avanços tecnológicos. Com o surgimento de gravadores e câmeras mais leves que podiam ser carregadas na rua, os artistas saíram dos estúdios e partiram para o ar livre, tendência que surgiu na Itália. “Isso não começou na França, nasceu do neorrealismo italiano. E não nasceu porque os cineastas queriam inovar. Na guerra, muitos estúdios italianos foram bombardeados e os diretores se viram obrigados a gravar na rua. Já na França, na Nouvelle Vague, essa é uma tendência mais ideológica – não há a condição concreta de destruição dos estúdios, mas de destruição de uma linguagem”, acrescenta Nazario.
Dali em diante, a chamada nova onda do cinema engoliu outros continentes. O cineclubista André Gatti, professor de História do Cinema Brasileiro na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), reforça que, após o neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague se comporta como o mais influente movimento de vanguarda, chegando inclusive ao Brasil. “Os cineastas brasileiros do cinema novo eram leitores assíduos da Cahiers du Cinéma que, na época, eram vendidas em algumas bancas de jornal em São Paulo e no Rio de Janeiro. As publicações demoravam um pouco para chegar, mas chegavam. Eles estavam antenados no que acontecia na Europa. Depois, já no fim dos anos 60, uma distribuidora, a Companhia Cinematográfica Franco-Brasileira, começou a trazer esses filmes da Europa para o Brasil”. Das obras matrizes do movimento, ele cita Nas Garras do Vício, de Claude Chabrol; La Pointe-Courte e Cléo das 5 às 7, de Agnès Varda; Os Incompreendidos, de François Truffaut; Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais; O Signo do Leão, de Éric Rohmer; e O Acossado, Uma Mulher é Uma Mulher e Alphaville, de Godard – um dos principais expoentes do movimento.
Em meio à nova onda avassaladora, em 1972, Godard tenta definir o que é o cinema. “A arte atrai-nos apenas pelo que revela do nosso eu mais secreto. É este tipo de profundidade a que me refiro. […]. Portanto, à questão ‘O que é o cinema?’, responderia primeiro: a expressão de sentimentos sublimes”, escreve à revista de Bazin. As obras da Nouvelle Vague enxotaram príncipes e princesas, grandes vilões e cavalheiros, criando personagens inspirados na vida real que, ao experimentar circunstâncias cotidianas, se deparavam com os mais extraordinários sentimentos, completamente humanos. Mesmo se propondo a fazer um cinema mais realista, mostrando as falhas e expondo feridas com seu propósito de denúncia, há quem diga que o movimento caiu em contradição. “Se você prestar bastante atenção nesses filmes ditos ‘revolucionários’, sempre coloco entre aspas, sempre são retratadas histórias de um homem e uma mulher, casais heterossexuais. São sempre histórias de amor… um casal rompendo, enfrentando crises“, diz Nazario, da UFMG. ”No fundo, são filmes revolucionários no sentido de romper com o que estava posto, mas que escondem um núcleo muito burguês”.
Guilherme Bryan, da Belas Artes, aponta para outro aspecto revolucionário desse grupo de cineastas. “Foram muito importantes em encontrar e definir o que chamaram de política do autor. Tiram da mão do produtor, que era política corrente até então em Hollywood, e transformam os diretores em autores dos filmes que realizam. Desde então, os diretores deixam de ser vistos apenas como funcionários de uma produtora, e passam a ser vistos como autores, artistas e criadores de suas obras. Nesse sentido, esses jovens foram muito revolucionários.” Como concordam os três especialistas, foi um movimento criado por cinéfilos e para cinéfilos. Jean-Luc Godard morreu no dia 13 de setembro, aos 91 anos, na Suíça.