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Heróis da resistência… em vídeo

Os fins de semana tinham um roteiro fixo: sábado de manhã caminhava pouco menos de um quilômetro para a locadora de filmes. Alugava dois, sempre um de terror para assistir à noite, e outro de aventura ou ação para ver em Blu-ray. Os funcionários sempre sabiam dar boas sugestões e indicavam lançamentos ou mesmo clássicos cults de cada gênero.

Blu-ray lançamento custava R$ 5 cada; não-lançamento, R$ 4; DVD R$ 2. Uma nota de 10 era suficiente para voltar com dois filmes e o troco em um delicioso quebra-queixo.

Os streamings começavam a surgir, mas ainda eram desconhecidos e nem todos sabiam como era possível assistir ao conteúdo. Com o tempo, as plataformas ficaram bem mais populares, e a facilidade de não precisar sair de casa e ter em mãos um grande catálogo foi vencendo. Gastar R$ 10 a cada dois finais de semana era acessível. Mas para assistir a quatro filmes. Menos de R$ 20 pagavam todos os filmes e séries da Netflix. Em 2019, a locadora que frequentei desde a primeira infância em Atibaia (SP) fechava suas portas.

“Senhores clientes, encerraremos nossas atividades no dia 30/11/2019. Aproveitem o grande feirão que acontecerá entre os dias 18/11/2019 e 30/11/2019. TODO NOSSO ACERVO EM PROMOÇÃO!!! (filmes, seriados e games-PS3). Filmes a partir de R$ 5,00. Verifique se não há pendências em seu nome”. De fato, esquecer de devolver um filme foi uma experiência coletiva comum que ficou no passado.

Na publicação, além de perguntas sobre o catálogo de filmes disponíveis para venda, muitos lamentavam a decisão dos donos. Com carinho, mas com realidade, a página da locadora respondia no Facebook “Obrigado pela mensagem, mas infelizmente nostalgia não paga as contas”. Ironicamente, uma das unidades ficava na Avenida da Saudade.

Queda livre

Atibaia não era uma exceção. Se em 1996, havia cerca de 18 mil videolocadoras no Brasil, o número despencou para 3 mil em 2017. Segundo o IBGE, em 2018 apenas 23% dos municípios brasileiros ainda tinham locadoras de vídeo em funcionamento. O Instituto constantemente acrescenta ou exclui setores de seus dados oficiais. Os serviços de locação de filmes, relevantes para o cálculo da inflação e do PIB, acabaram sumindo das estatísticas, conforme a cesta de consumo foi atualizada Apesar de não haver números oficiais sobre quantas locadoras ainda existem no Brasil, o consenso é que haja poucas dezenas. Na capital paulista, reportagens dão conta de menos de dez. Nenhuma grande rede, como a 100% Vídeo ou a Blockbuster, sobreviveu. Todas as remanescentes são negócios independentes, muitas vezes administrados pelos mesmos donos há décadas. Talvez a principal delas seja a Video Connection. Localizada no térreo do edifício Copan, um dos cartões postais da cidade, ela funciona desde 1985 e é gerida por Paulo Pereira.

Na série brasileira de animação Irmão do Jorel, um dos episódios (o 21º da terceira temporada) narra como seria a “última videolocadora do mundo”, ao que se descobre que, na verdade, ela era um portal do tempo, possibilitando ir ao passado e ao futuro. De certa maneira, é assim que alguém pode se sentir entrando na Connection.

Seja pelos dois andares de prateleiras repletas de VHS, DVDs, Blu-rays e boxes especiais de filmes e seriados ou mesmo pela variedade, desde clássicos a lançamentos. Mas somente filmes nem tão recentes, já que as produtoras não trabalham mais com mídias físicas de suas novas produções, o que dificulta as locadoras de atualizarem seus catálogos. Custa R$ 11 alugar qualquer tipo de mídia, e se antes havia um prazo mais curto para ficar com os filmes, hoje é possível negociar uma extensão do aluguel de forma mais fácil. A média de gasto por cliente com aluguel gira em torno de R$ 40. Não é possível pagar no cartão de crédito, já que a taxa da maquininha seria muito alta.

Público especializado

A especificidade de algumas versões de DVDs ainda atrai cinéfilos e colecionadores. Os que mais procuram VHS, no entanto, são os fãs de terror. Seja porque esperam ver documentários dos bastidores ou mesmo porque muitas obras foram feitas direto para o vídeo, sem ir ao cinema. Assistir a um filme em uma fita VHS também possui doses de nostalgia. E o que falar dos filmes “found footage”, em que é simulado justamente ser uma gravação real e caseira de algum evento, como no clássico A Bruxa de Blair.

Ao Meio, Paulo Pereira comenta que a moda retrô, com grande reverência a elementos nostálgicos, como discos de vinil e câmeras de fotografias analógicas, ajudou no aumento da procura pela locadora. Estudantes de cinema também são frequentes na loja, seja pela curiosidade, ou pela busca pelo acervo raro.

“Boa tarde, estou procurando Forrest Gump, mas com a dublagem clássica, o senhor tem aí?”, pergunta um homem de meia-idade, entrando na loja.

“Você tem Laranja Mecânica, mas na edição com Making Off e comentários do diretor?”, pergunta outro, mais jovem, minutos depois.

Em termos de rentabilidade, porém, a Connection há tempos ganha mais dinheiro com os serviços de conversão de VHS para DVDs ou pendrives do que com os aluguéis de filmes. “Isso aqui é tudo serviço que eu estou fazendo de conversão”, diz o dono da locadora apontando para uma pilha de fitas, enquanto liga um aparelho. Uma televisão começa a mostrar cenas gravadas de uma festa junina acontecida há muito tempo. Ele precisa deixar rodar toda a gravação para garantir a conversão do arquivo. “Gravação de até duas horas de VHS custa R$ 40. Em Hi8, que é aquela câmera especial menorzinha, aí custa R$ 60 cada um. E quando a fita tá embolorada, a gente tira o bolor e é um custo a mais”, explica.

Se nos anos 2010 os streamings foram paulatinamente ganhando espaço no Brasil, quando Pereira abriu a locadora, 40 anos atrás, a maior concorrência era a pirataria. Tendo começado justamente no ano da redemocratização, a Connection fez acordo com o Conselho Nacional de Cinema (Concine) para trabalhar sempre com mídias originais.

“Todo lugar, cada feira, cada esquina tinha uma banquinha de pirata. E aquelas coisas irresistíveis de filme que está no cinema. Antes, existia uma janela clara: cinema, depois locadora após 4 meses e, por último, TV e isso beneficiava todos”.

Telona e telinha

O cinema do Copan irá reabrir após estar fechado desde 1986. O espaço, que já foi também uma igreja evangélica, deve voltar a funcionar em 2027. “Antes, havia sinergia: o público do cinema alugava filmes na locadora. Cinema e locadora sempre foram parceiros, não concorrentes. Espero ainda estar aqui quando reabrir”, conta Paulo.

Frequentadores de locadora sabiam inclusive que grandes sucessos das telonas teriam concorrência. Ou então, a frustração de não estar em casa para ver algum filme que passaria na Sessão da Tarde era facilmente substituída por uma ida à locadora. Era um ecossistema de mutualismo, não parasitismo. Isso mudou.

Diversos filmes antes eram feitos para a TV, mas mesmo assim existiam em mídias físicas. Hoje, boa parte dos filmes fica direto no streaming, o que passou a impedir, com o tempo, que as locadoras seguissem atualizadas. Mesmo assim, é justamente o acervo da Connection um dos seus grandes diferenciais. Apesar de vender títulos, hoje Paulo Pereira evita se desfazer dos filmes em VHS. “São raridades! Eu me desfiz de um monte de filmes em 2012, quando eu pensei em fechar e tal. Eu doei para uma ONG francesa que fazia reciclagem. No fim, elas usaram pra passar pros moradores de rua”, conta, contente por conseguir ao menos proporcionar uma diversão com os filmes que iriam ser descartados.

Ainda hoje, emissoras de TV, como a Globo, a Bandeirantes e o SBT por vezes procuram a locadora para encontrar filmes ou trechos de obras que não tenham sido digitalizadas. Ele conta que muitos filmes do acervo nem sequer foram lançados oficialmente no Brasil, pois em seus dois andares de estantes cheias há muitas edições especiais. Comentamos o quanto a digitalização, por mais que facilite à princípio a exibição de filmes e séries, restrinja a possibilidade de assistir filmes às grandes produtoras. Muitas vezes há conteúdos que não estão disponíveis em streaming algum. Westworld, uma série da HBO, começou com grande hype e audiência, que arrefeceu ao longo das temporadas e acabou foi cancelada. Movimento normal. Porém, ela foi removida do catálogo da Max, sendo apenas possível de ser assistida via mídia física — o que é raro. Em uma rápida procura na internet, encontrei mais versões piratas que originais.

Em meio a todos os desafios, ajuda muito o fato de Paulo ter comprado seu espaço. “Se eu tivesse que pagar aluguel, já teria fechado há muito tempo.” Nem mesmo durante a pandemia a Connection fechou. Com a porta semiabaixada e recebendo pedidos por telefone, o volume de locações e conversão de mídias conseguiu ficar estável. “Eu mantenho o negócio por gosto pessoal e para atender clientes que têm dificuldade com streaming ou preferem acervo antigo”. Já tendo se comprometido a manter a Video Connection aberta até pelo menos 2027, quando o Cine Copan estará de volta, Paulo Pereira mantém em um cartão postal de São Paulo, outro lugar que segue atraindo curiosidade e admiração. Se as locadoras fatalmente tiveram o destino selado com o streaming, o mesmo jamais poderá ser dito do cinema e da paixão pela sétima arte.

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