O fantasma do comunismo
Terça-feira, 6 de setembro. Exatamente ao meio-dia, na Paróquia Militar São João Arcanjo, Asa Norte de Brasília, começava a missa em memória dos quatro anos da facada. Como diz o presidente Jair Bolsonaro (PL), a celebração de seu “segundo aniversário”. “Afastai para longe de nós a peste do comunismo e toda ideologia nefasta que atenta contra Deus e seus santíssimos mandamentos”, orou ajoelhado diante de Nossa Senhora. Não rogou sozinho. O padre bolsonarista Jean Marcos, que comandava o evento, reiterou o pedido. “Rezemos por nossa pátria, por nossos governantes, por nosso presidente. Pelo futuro do nosso Brasil. Do nosso mundo. Que fiquem longe de nós os perigos do comunismo, os perigos de um falso socialismo.” No fim do mês, a prece foi reforçada por um padre café com leite. Em rede nacional e horário nobre, o Padre Kelmon (PTB) se dirigiu aos universitários. “As universidades hoje no Brasil viraram um ninho, né? […]. A gente chega numa universidade e vê jovens utilizando camisetas com Che Guevara. Aí eu pergunto a você, universitário: Você sabe quem foi Che Guevara? Um assassino de sacerdotes”, afirmou Kelvin, Kerman, Kelmon no debate entre presidenciáveis na TV Globo.
Enquanto isso, na Europa, o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, da revista The New Yorker, deixa para trás a Ucrânia. Durante a viagem para a Geórgia, conversa com o Meio. O correspondente internacional coloca de lado a cobertura da guerra que devasta Kiev para analisar outra batalha, a ideológica. Um vale-tudo para se alcançar o poder estimulando o medo na população. O medo do comunismo aflige, segundo o Datafolha, 44% dos brasileiros. O fantasma segue pairando embora o país nunca tenha estado verdadeiramente à beira do comunismo.
É um fantasma, entre outras coisas, porque os principais líderes dessa ideologia estão mortos. Seu ícone revolucionário, o médico e guerrilheiro argentino Che Guevara, morria com uma rajada de fuzil há 55 anos. Lee Anderson escreveu a biografia definitiva de Che (Che: A Revolutionary Life) em 1997. O controverso marxista dedicou a vida à disseminação, sem sucesso, do regime socialista nos países da América Latina. Unindo-se à Revolução Cubana, foi um dos principais responsáveis pela derrubada, em 1959, da ditadura de Fulgêncio Batista. Parceiro de Fidel Castro, não hesitou em pegar em armas. Por fim, teve seu corpo exposto por três dias e enterrado numa vala comum em Vallegrande sob um segredo: nenhum dos responsáveis por dar fim ao cadáver poderia revelar onde este estava. E assim passaram-se 30 anos. Até que, em 1995, o oficial Mario Vargas Salinas confessou a Lee Anderson, biógrafo de Che, onde estavam os restos mortais do mito. Confira os principais trechos da entrevista:
Para além das mitificações, quem era de fato Che Guevara?
Che era um homem profundamente inteligente, altamente alfabetizado, com um senso de humor sarcástico e bastante curiosidade intelectual, o que o levou a mergulhar na leitura e a estudar muitas das filosofias e religiões prevalecentes no mundo. No que se tornou uma busca pelo seu próprio credo, acabou por adotar o marxismo-leninismo, talvez uma consequência da época em que atingiu a maioridade, a era pós-guerra. Naquele momento, grande parte do mundo se descolonizou e dezenas de novos países se tornaram independentes. Era alguém que procurava um universo moral claro e acreditava tê-lo encontrado no marxismo.
Podemos considerar que Che Guevara foi produto de seu tempo?
Definitivamente, Che era um homem da sua época. Enquanto se destacava, o seu idealismo radical era partilhado por outros revolucionários da mesma idade — homens e mulheres que chegaram à idade adulta durante a Segunda Guerra Mundial, sendo conscientizados desde cedo dos horrores gêmeos da bomba nuclear e do Holocausto. Pessoalmente, acredito que isto criou um laboratório único para a geração de Che e Fidel e outros que passaram a apelar a uma mudança global radical através da revolução armada, um apelo que só pode ser descrito, em retrospectiva, como uma espécie de utopia apocalíptica.
Che Guevara seria considerado revolucionário ainda hoje?
Absolutamente. Che era um revolucionário. Quer concordemos ou não com a sua escolha ideológica, a maior potência de Che como símbolo político é a do indivíduo que ousa peitar todo um sistema, escolhendo neste caso a força das armas, em qualquer altura e em qualquer lugar, considerando sacrificar sua própria vida no processo se necessário. Este é um precedente poderoso que foi estabelecido e tem seu legado vivo.
Se tivesse contato com as atuais experiências, Che ainda acreditaria que a social-democracia está condenada ao fracasso?
Che sempre se manteve fiel ao ideal marxista e, sendo assim, acreditou até a morte que a social-democracia era fraca e condenada ao fracasso. Mas é claro que isso era um reflexo do que via, ou acreditava ver, em sua vida, a sua volta. Por exemplo, ele via isso na Guatemala, onde o governo ‘fraco’ de esquerda de Arbenz não se defendia adequadamente das forças de direita apoiadas pela CIA, que acabaram bem sucedidas contra o governo. Então, tendo testemunhado esse desastre em primeira mão, Che chegou a acreditar que só uma revolução armada, de uma esquerda puro sangue, construída sobre princípios marxistas, poderia defender ‘o povo’ e fomentar uma verdadeira mudança social. Mas, neste mundo mais complicado e politicamente mais cínico em que vivemos hoje, não tenho a completa certeza de que Che teria uma visão tão severa dos social-democratas, que, afinal de contas, são todos aqueles que se situam entre a sociedade civil e o autoritarismo brutal em muitos países.
Como Che Guevara enxergaria a onda da extrema direita que varreu as Américas nos últimos anos?
Che não ficaria surpreso. Ele sempre foi muito claro ao defender que o capitalismo e o fascismo coexistiam como potenciais parceiros e poderiam, em última análise, fundir-se, nas circunstâncias certas — como aconteceu nos anos 1930 e 1940. E, em justiça ao Che, até certo ponto, isso parece ser o que aconteceu no Brasil com o fenômeno que conhecemos como bolsonarismo. Ele sempre considerou que o ‘centro político’, aquilo que no Brasil entendemos como o Centrão, é constituído por partidos moralmente fracos, facilmente manipulados, que acabariam por servir para sustentar o status quo. E olhando para o Brasil de hoje, quem poderia dizer que Che estava errado?
O nome de Che é evocado pela extrema direita para incitar medo na população. Medo do ‘comunismo’.
Não há nenhum partido próximo do comunismo como o conhecemos no Brasil. Mas, dada a atual polarização entre extrema direita e esquerda, e com a miséria e a falta de um estado de direito no Brasil, sem contar a desigualdade e a corrupção, alguns dos princípios do marxismo-leninismo ganhem potência como um caminho de “consertar” as coisas. Nesse sentido, o Brasil, mais do que alguns de seus vizinhos, permanece um lugar onde as mesmas questões que ajudaram a alimentar os conflitos da Guerra Fria ainda estão se desenrolando, com as ideologias opostas de esquerda e direita ainda desempenhando um papel.
Bolsonaro tem uma política pró-armas. Qual a diferença entre ‘pegar em armas’ para iniciar uma revolução e pegar em armas para manter o sistema?
Aqui, falamos essencialmente da diferença entre reação e revolução. Os seguidores de Jair Bolsonaro atuam no campo da reação. Quando pegam em armas para defender seus posicionamentos, querem preservar uma ordem nacional vista como ameaçada pelas forças de mudança – ou, até mesmo, procuram atrasar o relógio para um passado ‘perfeito’ que nunca existiu, um antigo tempo mítico onde supostamente prevaleciam a ‘ordem’ e a ‘tradição’. Já a outra força procura derrubar o status quo ‘podre’ para provocar a emancipação e, então, a mudança.