O mito fundador de Brasília

Ele está no meio de nós. Dá nome a colégios, lojas, pizzarias. Tem um bairro batizado em sua homenagem e, por fim, é padroeiro da capital. Mesmo sem sequer ter pisado no Brasil, Dom Bosco é uma figura pulsante no Distrito Federal, tendo diversos devotos nas 153 paróquias da cidade. Em Brasília, tão numerosas quanto as placas com o “JK”, as homenagens ao santo são marca da terra candanga. Italiano, João Melchior Bosco viveu entre 1815 e 1888, tendo passado a maior parte de seus dias em Turim, e, por conta de suas ditas profecias, entrou na história do Brasil, sendo usado por interesses diversos com objetivos distintos, mas todos relacionados à sede do poder nacional. 

Depois das celebrações religiosas em um dia de agosto de 1883, ele se deitou. Acordou num sonho, segundo diz, e um jovem o guiou pela América do Sul enquanto lhe mostrava uma futura civilização, capaz de promover o crescimento daquela região. A princípio, era apenas mais uma dita profecia daquele frade, em meio a tantas que já tivera ou escrevera. É possível levantar dúvidas sobre o sonho de várias formas, ainda que isso represente uma ofensa visceral a qualquer brasiliense. 

Na Europa, já se sabia que alguns membros da elite brasileira debatiam a interiorização com alguma frequência. José Bonifácio o fez em 1821, com instruções à representação paulista que foi às Cortes de Lisboa. O historiador Francisco de Varnhagen escrevia sobre isso de Viena, onde chefiava a diplomacia brasileira. Isso para não falar que a profecia tem buracos comumente preenchidos com a fé, numa espécie de “crer para ver”. Fundador da Ordem Salesiana, D. Bosco foi canonizado duas vezes: a primeira em 1929, por ordem do Papa Pio XIII; a outra em 1956, no interior do Brasil, por obra de políticos audaciosos e determinados em ver os principais prédios da República em seus quintais.

A “Operação Dom Bosco”

Juscelino Kubitschek fora eleito em 1955 com uma meta síntese, como é sabido. A construção da terceira capital resumia os projetos para desenvolvimento do país que JK pensara. Apesar disso, enfrentava forte oposição, com um Congresso dominado pela União Democrática Nacional, a UDN. Em maio de 1956, era difícil crer que aquele novo governo com sérios problemas de articulação passaria propostas para edificar uma cidade em local ermo. O mudancismo, depois de avanços no final do século 19, estava em baixa. Apenas em Goiás ainda se nutria a esperança de, um dia, sediar os prédios da República. Lá, políticos como Venerando Borges — o primeiro prefeito de Goiânia —, Segismundo Mello, advogado, e Juca Ludovico, então governador, militavam contra a vontade de políticos mineiros de levar a sede do poder ao Triângulo Mineiro. 

E aí surgiu um plano. JK e Israel Pinheiro, braço-direito do presidente, visitariam Uberaba no dia 3 para a Exposição de Gado. Essa era a chance dos mudancistas. JK dormiu na casa do prefeito, mas Israel rumou para o Grande Hotel. Venerando Borges entrou no local e esperou, levando a tiracolo um livro intitulado A nova capital do Brasil – estudos e conclusões. A obra reunia artigos defendendo o Planalto Central para a causa. Nesta obra, Segismundo Mello incluiu uma menção ao frade italiano, cujo sonho não era tão conhecido no Brasil. Foi só por meio do petróleo que a tal profecia se fez saber por aqui: o escritor Monteiro Lobato publicou, em 1935, no Diário de São Paulo, um texto intitulado “Até os santos afirmam que há petróleo no Brasil”, onde, numa interpretação larga, ele considerou que a passagem em que o santo europeu afirma que a cidade “verterá leite e mel” referia-se à exploração do óleo. 

Com ajuda do padre Cleto Caliman, um salesiano, eles localizaram o relato do sonho entre os 19 tomos da biografia de D. Bosco. Traduzido, era mais vago ainda. Não dava maiores pistas sobre a localização da dita cidade. Instado a “dar um jeitinho”, o padre declinou. Como manobra editorial, Mello publicou uma foto do santo com uma legenda enviesada: o homem “que profetizou uma civilização, no interior do Brasil, de impressionar o mundo, à altura do paralelo 15”. No hotel, Venerando Borges emparelhou com Israel Pinheiro — e ele era um notório devoto do italiano, pois os salesianos lhe bancaram os estudos depois da morte do pai, o ex-governador de Minas João Pinheiro.

Entraram juntos Borges e Pinheiro no elevador e o goiano deixou o livro à vista do mineiro. Deu certo. Israel pediu-lhe um empréstimo. Fazendo-se de bobo, Borges disse que Israel podia ficar com o livro, pois tinha outros. Era mentira. O exemplar único fora criado justamente para chegar às mãos do governista. O episódio está narrado em Brasília – Memória da Construção (2003), de Lourenço Tamanini.

Israel enlouqueceu. O santo de sua devoção e a principal promessa do governo que compunha estavam unidas por uma foto de legenda tendenciosa. A partir daí, a suposta profecia passou a ser usada para conclamar a população, majoritariamente católica, à meta síntese de Juscelino. Em setembro, o governo aprovou a Mensagem de Anápolis (ou a Lei 2.874/56), que criava as ferramentas para erguer a cidade, como a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), e batizou a futura capital em homenagem a José Bonifácio: Brasília, nome cunhado pelo patriarca da Independência. 

Primeiro presidente da Novacap, Israel Pinheiro mandou erguer a Ermida D. Bosco, primeira obra de alvenaria de Brasília, às margens do que viria a ser o Lago Paranoá. A partir daí, a narrativa do sonho do frade ganhou os corações candangos. Poucos anos depois da inauguração, ela se configurou numa ferramenta do regime militar contra Juscelino. 

O choro do ‘presidente sorriso’

Cassado pela Ditadura em 1964, Juscelino voltou a Brasília em 1972 para um passeio. Sob um chapéu Panamá que lhe garantia anonimato, rodou pela capital e chorou em silêncio. No Eixo Monumental, JK viu a Catedral Metropolitana, que não estava pronta em 21 de abril de 1960. “Que bela obra o Oscar nos presenteou”, disse ele ao motorista. JK, então, ouviu de seu chofer que a igreja jamais havia lotado, não era muito popular. “Mas vai lotar no dia do meu enterro”, profetizou. 

Juscelino morreu em um acidente na via Dutra, em 1976. Como anteviu, a Catedral foi tomada em seu velório. Uma multidão de 200 mil pessoas, quase metade das 550 mil que moravam na cidade, improvisou o cortejo fúnebre até o cemitério. De acordo com relatos da época, o povo, que gritava em prol da Democracia, apontava os dedos aos militares e urrava que os fardados “mataram o doutor Juscelino!”.

Jornalista e professor, Jarbas Silva Marques tem motivos de sobra para desconfiar dos militares. Foi preso e torturado pela repressão. Em depoimento na Câmara, em 2009, contou publicamente “que sentiu no corpo o processo de evolução científica da tortura”. Jarbas não hesita em combater a idolatria a D. Bosco na capital, por motivos menos religiosos que políticos. “Os militares aproveitaram a manobra dos goianos e ficaram falando sobre D. Bosco para fazer esquecer o legado do doutor Juscelino”, conta. 

“Isso se deu através da comunicação, com agentes nas redações dos jornais. A repressão organizou essa história e procurou convencer as pessoas”, lembra. “A ditadura criava pseudônimos e publicava histórias sobre D. Bosco. O Correio Braziliense [um dos maiores jornais do país, à época] publicava e outros jornais, de fora, copiavam. Antes da internet, já tinha desinformação nas redações durante o governo militar”, acrescenta o jornalista. E assim se constróem mitos.

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